“No Sudão do Sul, a maioria dos ataques visa a aquisição de meninos e meninas para exploração militar e sexual por milícias rebeldes”. Um recado para a próxima viagem do Papa

Homens trabalhando no Sudão do Sul. Foto: Rod Waddington | Flickr CC

30 Mai 2022

 

Em razão dos seus problemas de saúde, o Papa Francisco cancelou a viagem ao Líbano. Porém, mantém a viagem de 02 a 07 de julho para a República Democrática do Congo, com visitas às cidades de Kinshasa e Goma, e depois para o Sudão do Sul, com parada em Juba.

 

A reportagem é de Sandro Magister, publicada por Settimo Cielo, 26-05-2022. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.

 

A importância que dá a este destino em particular confiou ao receber em 13 de maio a Comissão Internacional Anglicano-Católica, cujo responsável máximo, o arcebispo de Canterbury, Justin Welby, acompanhará o Papa na viagem. “Rezemos para que esta peregrinação ecumênica da paz inspire os cristãos do Sudão do Sul e de todo o mundo a ser promotores da reconciliação, tecedores da concórdia, capazes de dizer não à perversa e inútil espiral da violência e das armas. Recordo que este caminho começou há anos com um retiro espiritual realizado aqui, no Vaticano, com os dirigentes do Sudão do Sul”, disse o Papa Francisco na ocasião.


Mapa da África, com destaque ao Sudão do Sul Fonte: Map to Chart | Edição IHU

 

Muitos recordam esse insólito retiro espiritual, em abril de 2018, dos líderes das duas facções em guerra, concluído pelo papa com o beijo nos pés. Um gesto que, lamentavelmente, foi seguido por um recrudescimento do conflito entre as respectivas tribos dos Dinka e dos Nuer, ambas católicas.

 


Papa beija os pés das autoridades sul-sudanesas que realizavam um retiro espiritual em 2018, no Vaticano. Foto: Reprodução Twitter Antonio Spadaro

 

Tanto na região leste do Congo quanto no Sudão do Sul, de fato, ferozes guerras vêm ocorrendo há anos, com centenas de milhares de vítimas. A poucos quilômetros de Goma, para onde Francisco irá, o embaixador italiano no Congo, Luca Attanasio, foi morto em 22 de fevereiro de 2021. E no dia 25 de abril seguinte, o recém-nomeado bispo da cidade, missionário italiano Christian Carlassare, foi a vítima de uma emboscada em Rumbek, no Sudão do Sul, atacado com armas de fogo pelo padre e coordenador diocesano John Mathiang – posteriormente preso e sentenciado – e por um grupo de leigos com cargos na diocese, todos revoltados porque o novo bispo não é membro de sua tribo.

 

Carlassare, embora não totalmente recuperado de seus graves ferimentos, anunciou que irá a pé de Rumbek a Juba para encontrar o papa, com dias e dias de caminhada, junto com cem jovens de sua diocese, no barro gerado pela estação de chuvas e pelas estradas muitas vezes inseguras por confrontos armados.

 

Sem dúvida, portanto, a paz é o destino conceitual da viagem de Francisco a esses dois países africanos.

 

Mas não está descartado que o papa possa dedicar igual atenção a outra praga, a escravidão, que em suas formas modernas é desenfreada em grande medida precisamente no Congo e no Sudão do Sul.

 

Nos últimos dias, na revista “Vita e Pensiero” da Universidade Católica de Milão, foi publicado um artigo de uma especialista, Beatrice Nicolini, professora de história africana e relações internacionais, que depois de resumir a história da escravidão no continente negro, com seus apogeus mais cruéis no Congo sob o domínio colonial da Bélgica, mostra o quanto essa praga ainda hoje assola, com suas maiores vítimas entre mulheres e crianças.

 

A parte final de seu ensaio, dedicada aos assuntos atuais e com especial atenção ao Congo e ao Sudão do Sul, é reproduzida abaixo.

 

Mas também é importante notar que na semana passada Francisco se reuniu e deu seu apoio ao Grupo Santa Marta, fundado em 2014 e presidido pelo cardeal e arcebispo de Westminster, dom Vincent Nichols, que durante três dias no Vaticano reuniu chefes de polícia, órgãos governamentais e especialistas de diversos países, com o objetivo de fortalecer o combate às formas modernas de escravidão.

 

O artigo abaixo é de Beatrice Nicolini, publicado por Vita e Pensiero, Março-Abril de 2022.

 

Escravidão e servidão na África: feridas abertas

 

Conflitos e economias seguem sendo a principal fonte de propagação da escravidão no mundo. A transformação da escravidão em servidão e “tráfico de pessoas” leva à identificação de várias macro-áreas na África, as novas rotas, onde tais discriminações e violências são praticadas e difundidas, ainda que incluídas nas sociedades locais.

 

A primeira é a África Mediterrânea, onde numerosos representantes governamentais participam, inclusive ativamente, na venda e exploração de seres humanos.

 

Mais ao sul, o Sudão e a Mauritânia são países onde frequentes conflitos e golpes de estado levaram à escravidão centenas de milhares de pessoas, a maioria não-brancas e não de religião muçulmana. Só na Mauritânia, cerca de um milhão de escravos são propriedade dos senhores e constituem o dote nos contratos de casamento (a Mauritânia decretou a abolição da escravatura em 1981, mas a legislação adequada não estava em vigor até 2015).

 

Em Madhol, no Sudão do Sul, na década de 1990, um mercador árabe vendeu 132 escravos, homens, mulheres e crianças, por um total de 13,2 mil dólares estadunidenses pagos por um membro de uma organização internacional de solidariedade cristã. Na região, ainda é possível comprar uma criança da família de origem e revendê-la com um bom lucro. E é precisamente no Sudão do Sul que o grupo Dinka é o mais atingido pelo tráfico de seres humanos. Aqui, a maioria dos ataques visa a aquisição de meninos e meninas para exploração militar e sexual por milícias rebeldes. Essa prática ocorre na região sul do país, nas fronteiras com Uganda, Quênia e Etiópia, uma área tradicionalmente negra e não muçulmana.

 

Na África Ocidental, no Senegal, a UNICEF estimou que cerca de 20 mil crianças com idades entre nove e doze anos são reduzidas à escravidão a cada ano. Na Libéria, o fenômeno da exploração infantil continua.

 

No leste da África, no Chifre da África, muitas crianças são compradas por países árabes para corridas de camelo e muitas jovens como amantes “exóticas”. Aqui as mulheres africanas são consideradas entre as mais belas do mundo e são conhecidas por sua “doçura”, muito desejada por árabes e centro-asiáticos ricos. Uma africana atraente pode ser avaliada em até 10 mil dólares: ela é drogada e usada para fins sexuais e, normalmente, sua vida nessas condições não dura mais de dois anos.

 

Na África equatorial, a escravidão é encontrada nos campos e minas da República Democrática do Congo e nos estados contíguos. No norte de Uganda, tantas crianças quanto possível são levadas à noite para hospitais e locais protegidos por homens armados para que não sejam sequestradas para se tornarem crianças-soldados. A doutora Colette Kitoga (graduada pela Università Cattolica - Policlinico “Gemelli” de Roma), diretora do centro de reabilitação de crianças-soldado “Mater Misericordiae” em Bukavu, República Democrática do Congo, diz que “seus” filhos - mais de 3.000 desde 1997, quando o centro foi criado, até hoje – nunca levantam os olhos: estão convencidos de que assim se presenciassem um assassinato ou um ato de violência não seriam acusados e perseguidos como testemunhas inconvenientes.

 

Na Tanzânia, a exploração de menores envolve a mineração de diamantes, coltan – mineral essencial para componentes de computadores e telefones celulares – e tanzanita. Esta última é uma gema semipreciosa, de cor azul-violeta intensa e muito brilhante, única em todo o mundo e em alta demanda. A tanzanita foi descoberta pelos Masai no Quênia e seu valor agora é igual ao dos diamantes; essas pedras são encontradas perto do Monte Kilimanjaro, e as crianças cavam o dia todo com suas mãozinhas. Eles são feitos para descer a uma profundidade de trezentos metros com sistemas de ventilação inadequados. Nesses túneis estreitos as crianças podem se movimentar melhor e os pais incentivam seus filhos a trabalhar nas minas porque não há escolas perto dos centros de mineração.

 

Nas minas da África do Sul, muitos trabalhadores podem ver suas famílias apenas uma vez por ano. As condições de isolamento e alienação levam inevitavelmente à proliferação de fenômenos como o alcoolismo, a drogadição e a contração de doenças de alto risco como tuberculose e AIDS. O fenômeno da migração para os principais centros de mineração da África do Sul por trabalhadores de Moçambique, Zimbábue, Botswana e Lesoto muitas vezes também causa surtos de rivalidade entre os grupos. Para os mineiros que morrem no trabalho, a pensão é para as viúvas, mas poucos conseguem obtê-la devido às dificuldades burocráticas intransponíveis – os moçambicanos precisam de autorização de residência para a África do Sul –, além de dificuldades logísticas e econômicas.

 

Nos últimos quinze anos, mais de 10 mil mineiros moçambicanos morreram na África do Sul. O fim do apartheid deu início a pequenos, mas significativos, projetos de construção de casinhas próximas às minas para as famílias dos trabalhadores, justamente para reduzir a taxa de mortalidade por AIDS e tornar as condições de vida menos duras. É verdade que na África Austral as condições sócio-políticas são diferentes das de outras áreas do continente; o exemplo da África do Sul tem contribuído para a cobertura midiática de situações dramáticas e, em alguns casos, para a sua consequente diminuição.

 

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