O livro “Sapere e fede”, de Angelo Vianello, além de analisar diferentes pontos de vista que surgiram no variado universo das ciências biológicas, cada vez mais necessitadas de aprofundamentos histórico-epistemológicos, dada a dimensão planetária dos problemas enfrentados, é um texto muito rico em ideias destinadas a criar as bases de uma estrutura conceitual capaz de tornar cada vez mais “fecundo” o diálogo entre teologia e biologia.
O comentário é de Mario Castellana, filósofo italiano e ex-professor da Universidade de Salento e da Faculdade Teológica da Puglia, na Itália. O artigo foi publicado em Settimana News, 07-06-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
As primeiras décadas do século XXI veem o pensamento filosófico-científico que, embora comprometido, em primeiro lugar, nos vários níveis, com o enfrentamento de diversos e inéditos desafios, por sua natureza cada vez mais planetários, não ignora aquele tema não secundário herdado da modernidade, o debate entre ciência e fé, ou, melhor, entre o saber científico e o saber derivado da experiência da fé. Um debate que contou como protagonistas com os próprios fundadores da ciência moderna.
Se, com Galilei, como é mais conhecido, ele assumiu implicações dramáticas, com Newton foi menos dilacerante e, ao mesmo tempo, mais construtivo, como amplamente documentado por Hélène Metzger na ainda quase único trabalho do seu gênero de 1938, “Attraction universelle et religion naturelle chez quelques commentateurs anglais de Newton” (cf. “Hélène Metzger, vittima della Shoah, filosofa della scienza”, 27-01-2021 [disponível em italiano aqui]).
O debate entre ciência e fé também foi considerado crucial por diversas figuras do século XX, começando por cientistas-filósofos como Max Planck, Albert Einstein, Pierre Teilhard de Chardin, Stefan J. Gould até João Paulo II, cujo papado, no rastro das indicações do Concílio Vaticano II, caracterizou-se, entre outras coisas, por uma atenção nada comum a esse problema considerado crucial por evidentes razões pastorais, voltadas a iniciar sobre novas bases a relação com a contemporaneidade, uma vez identificadas algumas causas do conflito secular, graças a uma corajosa abordagem do “caso Galilei”.
Nesse campo, os próprios cientistas, crentes e não crentes, ainda estão envolvidos em primeira pessoa, auxiliados pelo fato de que, por um lado, a partir dos anos 1970, aquelas imagens unilaterais da ciência de marca vetero-positivista desapareceram, graças aos desenvolvimentos dos estudos histórico-epistemológicos que nos deram contribuições nada secundárias para enfrentar sobre novas bases os valores cognitivos nela implícitos; e, por outro, especialmente em área anglo-saxônica e no âmbito da tradição teológica liberal reformada liberal, foi se consolidando a chamada Theology and Science, onde figuras como Ian Barbour, primeiro, e Robert J. Russell, físico e teólogo, depois, implementaram proficuamente aquela que chamamos de “creative mutual interaction” (“Quando cosmologia ed escatologia si incontrano”, 09-12-2021 [disponível em italiano aqui]).
Tudo isso, junto com a plena metabolização das consequências do “caso Galilei” no campo católico, que levou ao nascimento de várias iniciativas, como o Centro de Pesquisa DISF e a associação Nuovo SEFIR, lançou as bases para iniciar um diálogo renovado entre ciência e fé, uma vez que elas foram, segundo o Papa Bento XVI, libertadas das respectivas “restrições ideológicas” herdadas do passado.
Isso foi possível após o seu recíproco e salutar banho de humildade epistemológica no sentido levantado por várias figuras de filósofos da ciência como Federigo Enriques, Gaston Bachelard, Karl Popper e Edgar Morin, cujos trabalhos tiveram o mérito de demolir os “absolutos terrestres” e de nos despojar do mito da onisciência, para usar os termos de Dario Antiseri e Mauro Ceruti.
Nesse contexto, caracterizado pela presença majoritariamente de físicos, insere-se o trabalho original, definido como “muito rico e felizmente interdisciplinar” pelo falecido jornalista científico Pietro Greco, do bioquímico Angelo Vianello, intitulado “Sapere e fede: un confronto credibile. Per un dialogo possibile tra biologia e teologia” [Saber e fé: um debate credível. Para um possível diálogo entre biologia e teologia] (Udine: Forum Edizioni, 2018) com o prefácio de Federico Vercellone e o posfácio de Alessandro Minelli, que ilustrou alguns aspectos salientes.
Autor de outros importantes trabalhos sobre a evolução da vida, a biodiversidade, o altruísmo e os desafios do Antropoceno (cf. “Per una visione agapica dell’Antropocene”, 03-03-2022 [disponível em italiano aqui]), Angelo Vianello, como savant ou cientista em ação e engagé no sentido bachelardiano do termo, oferece-nos um percurso histórico-epistemológico incomum, caracterizado, por um lado, por uma verdadeira tomada de consciência do continente-ciência e, em particular, do universo composto das ciências da vida, graças também a uma plena metabolização dos resultados alcançados no âmbito do pensamento complexo; e, por outro, pela abordagem de algumas propostas de teólogos como Hans Küng e Jürgen Moltmann.
Não por acaso, graças à experiência amadurecida mediante o estudo da evolução do ser humano, Vianello nos oferece uma leitura particularmente interessante da “Teologia da esperança”, de Moltmann, assumindo também algumas indicações expressadas em “Ciência e sapiência”, que lhe permitiram olhar para o mundo de fé a partir de diferentes perspectivas abertas ao debate crítico com outros saberes a fim de “salvar a experiência humana e, mais em geral, a biosfera”.
Munido com essa dupla consciência epistêmica, nos é oferecido, assim, um caminho voltado ao debate com um novo esprit, no sentido de Gaston Bachelard, com os dois “pilares do tempo”, como S. Gould os chamava, com o objetivo teórico-existencial de “encontrar sínteses que possam facilitar, no nível cultural, o respeito pelas recíprocas diversidades”.
Até porque, como Galileu já havia diagnosticado, e depois João Paulo II reiterou, não pode haver conflito entre duas verdades, mas ele se verifica quando se propõem interpretações falsas e enganosas de ambas, como historicamente ocorreu e ocorre muitas vezes por motivos ideológicos.
É preciso ter em mente, para entender melhor o percurso de Angelo Vianello, que as ciências da vida, ao contrário da física, que, para se afirmar como saber autônomo, teve que levar adiante uma contextual e difícil “filosofica militia”, como Federico Cesi e o próprio Galilei a chamavam, desenvolveram-se na segunda metade do século XIX – de Darwin e Bernard a Mendel e Pasteur – quando o saber científico estava bem consolidado com suas “razões” específicas, nas palavras de Federigo Enriques.
Por isso, os maiores protagonistas não se empenharam particularmente no campo epistemológico para esclarecer as suas modalidades de ser, o que seria sempre uma operação necessária para evitar falsas interpretações, que muitas vezes disseram respeito, como se sabe, à teoria da evolução. Enquanto os físicos que estavam lidando com outras mudanças radicais continuaram durante o início do século XX a produzir um rico corpo de debates sobre a natureza do real físico, no campo biológico, excluindo-se as importantes contribuições de Teilhard de Chardin, Stephen J. Gould, Ernst Mayr e Jean Piaget, não se verificou algo assim e tivemos que esperar pela reflexão produzida pelo pensamento complexo, que, não por acaso, se nutriu sobretudo dos conteúdos de verdade implícitos no universo das ciências do vivente.
Tudo isso determinou, até algumas décadas atrás, a falta de um “diálogo” construtivo por parte desse âmbito do pensamento científico com o saber teológico, dada também a complexidade das ciências da vida, para as quais João Paulo II já havia chamado a atenção em seus dois discursos sobre a teoria da evolução, com a insistência na necessidade por parte dos próprios protagonistas de abordar as suas respectivas questões metodológicas e as implicações teológico-filosóficas para entender as “origens” e as próprias “razões da vida”, questões que estão cada vez mais no centro das atenções hoje.
Esse é um dos objetivos e dos méritos não secundários do percurso de Angelo Vianello, que, colocando-se no rastro de tais indicações, assim como dos trabalhos mais recentes de Christian de Duve, Stuart Kauffmann, Fiorenzo Facchini, Francisco Ayala, Francis Collins, Giuseppe Tanzella-Nitti e Mauro Ceruti, se engaja quase em uma renovada “filosofica militia”, voltada, por um lado, a trazer à tona os valores de verdade intrínsecos das ciências do vivente e, por outro, graças a eles, a dar novamente à experiência de fé um reforçado dinamismo escatológico ao assumir proficuamente as propostas de Teilhard de Chardin e de Moltmann.
Emerge daí um sólido quadro epistemológico-hermenêutico para lançar as bases de “um debate credível”, de um “diálogo possível entre biologia e teologia”, considerado cada vez mais “inevitável”, até porque, como muitas vezes se reitera, encontra as suas razões de ser nos “fundamentos na liberdade de pensamento, entendida como o maior recurso do ser humano”.
E, como homem de ciência que estudou a evolução do ser humano, “as nossas origens distantes”, “as principais etapas do Homo sapiens”, “o enigma da agressividade”, “o desafio ambiental”, Angelo Vianello nos alerta que situar no terreno mais justo a desejada síntese entre o saber científico e o saber da fé, além de construir juntos uma “concepção laica da sociedade”, é um percurso aberto a diversas possibilidades, como a de “abrir cenários de esperança úteis para nos orientar no agir de todos os dias e para construir um futuro que possibilite a sobrevivência desta nossa frágil experiência terrena”.
Como cientista em ação, ele pôs em prática de modo profícuo aquela magistral “síntese”, exposta nos seus inúmeros escritos, a começar pelo “O fenômeno humano”, de Teilhard de Chardin, que sempre insistiu no fato de que, se as verdades científicas forem bem compreendidas, são o próprio alimento da pessoa de fé.
Essa abordagem, graças à sua imersão nos debates epistemológicos e teológicos de hoje, levou-o depois a uma leitura diferente dos respectivos conteúdos de verdade e mais atenta à sua autonomia, junto com a consciência teórica do fato de que, quando ciência e fé se encontram e dialogam de modo construtivo, ambas se enriquecem com novos horizontes cognitivo-existenciais hoje mais do que nunca necessários em um mundo globalizado cujas dinâmicas requerem planos de intervenção não mais sustentados por lógicas unidimensionais, mas interdependentes para os diversos desafios que nos esperam.
À luz dessas indicações, “Sapere e fede”, além de analisar diferentes pontos de vista que surgiram no variado universo das ciências biológicas, cada vez mais necessitadas de aprofundamentos histórico-epistemológicos, dada a dimensão planetária dos problemas enfrentados, é um texto muito rico em ideias destinadas a criar as bases de uma estrutura conceitual capaz de tornar cada vez mais “fecundo” o diálogo entre teologia e biologia.
Ele “valoriza”, no sentido bíblico do termo, o “cenário que emerge do ‘debate na mesa alta do evolucionismo’”, sem cair em posições naturalistas graças ao fato de que agora, no reino do vivente e do próprio universo, a história da vida é concebida “como uma história de possibilidades, para explorar aquilo que Kauffman define como ‘o adjacente possível’, onde a contingência e a causalidade desempenham um papel estratégico, como bem analisado por Gould e, em “Origini di storie” [Origens de histórias], por parte de Gianluca Bocchi e Mauro Ceruti.
O livro de Angelo Vianello não cai em um sincretismo ou concordismo fácil, já definido por João Paulo II como uma verdadeira “armadilha epistemológica”, pois assume de modo programático o ponto de vista expressado pelo próprio Gould, que considerava a vida cheia de diferentes potencialidades e emergências contínuas, de tal forma que não pode “ser abraçada a partir de uma única perspectiva”, com a consequente necessidade de ser não um “relativista” em relação à verdade, mas um “pluralista” em relação a esse real.
Angelo Vianello nos oferece esse seu percurso com mais uma indicação, que lhe provém da longa peregrinação pelos tortuosos caminhos da evolução humana, marcada – como dizia Teillhard de Chardin – por contínuos “tormentos”, mas arauta de novas possibilidades, na qual foi estratégica, e ainda é, a cooperação entre os seres vivos.
Esse percurso, que também se nutre da contribuição de experiências poéticas como a de Mario Luzi, é enriquecido pelo convite de Moltmann a “contrastar o cinismo do aniquilamento da vida, hoje difundido no nosso mundo”, a não “negligenciar o sofrimento da natureza” e a dar a devida escuta ao “gemido da criação oprimida” para lutar “por um futuro comum”, condição indispensável para a “possibilidade de um novo nascimento da humanidade”, proposta compartilhada no rastro das indicações de Ernesto Balducci e de Mauro Ceruti.