16 Fevereiro 2022
“É urgente mudar o exercício do primado romano, para convencer mais do que mandar, para também recuperar o controle em assuntos como os abusos contra menores, onde os bispos às vezes têm mais poder do que os próprios órgãos de investigação ou o Pontífice. Porque desde a época de Gregório Magno, o título mais expressivo do papa é 'servo dos servos de Deus', bispo de uma Igreja 'que preside na caridade', como destacava Inácio de Antioquia já em inícios do século II”, escreve Giovanni Maria Vian, especialista em História da Igreja e ex-diretor do L’Osservatore Romano, o jornal do Vaticano, em artigo publicado por El País, 13-02-2022. A tradução é do Cepat.
Quem manda na Igreja Católica? A pergunta é clara e quase todos respondem que é o Papa que manda, uma autoridade moral única no mundo, em uma instituição que tem quase 2.000 anos. Mas hoje a Igreja está em crise profunda, sobretudo devido ao escândalo dos abusos sexuais contra menores e mulheres, incluindo religiosas, cometidos por membros do clero, em vários países, durante décadas e que ainda continuam.
Esse vergonhoso drama foi enfrentado pelos dois últimos papas, com poucos resultados. Mas, por que duas figuras como Ratzinger e Bergoglio, personalidades muito diferentes, mas influentes e ouvidas, não conseguiram mudar essa situação? Por que tantas vezes suas ordens e regras não foram ouvidas e acatadas? As razões são muitas, mas entre elas se destaca a questão da autoridade, que na história do cristianismo sempre foi central.
Em sua pregação revolucionária, Jesus descreve a autoridade como um serviço e escolhe 12 apóstolos (em grego “enviados”), mas ao longo dos séculos a autoridade na Igreja varia muito. Quando as comunidades cristãs, já separadas do judaísmo, começam a se organizar, são estabelecidos dois modelos: a autoridade colegial dos “anciãos” (os presbíteros) e, a partir da primeira metade do século II, o episcopado monárquico, baseado na sucessão dos apóstolos.
Na comunidade cristã de Roma, o modelo monárquico se impõe com o africano Vítor, bispo de 189 a 198, embora sejam conhecidos os nomes de uma dezena de seus predecessores, considerados sucessores de São Pedro, o primeiro dos apóstolos, enterrado no Vaticano.
A memória de Pedro, sua sucessão e a importância da capital do império explicam o papel especial que a Igreja de Roma logo assume e que é reconhecido progressivamente pelas outras comunidades: são os primeiros passos do primado romano, inicialmente honorífico, depois mais efetivo, mas nunca absoluto. Na diocese de facto, a autoridade é exercida pelos bispos, considerados sucessores dos apóstolos e, portanto, todos investidos de autoridade “apostólica”.
A partir do século IV, com a cristianização oficial do império, no oriente, o poder exercido pelos bispos na Igreja é condicionado pelos soberanos, como muito mais tarde acontecerá na ortodoxia russa. Na Itália e na Europa ocidental, o nascimento dos reinos bárbaros, o declínio da presença bizantina e grandes papas como Leão Magno e Gregório Magno favorecem o desenvolvimento do poder papal.
A partir do século VIII, o pontífice também se tornou soberano de um Estado no coração da Itália central, que duraria dez séculos. Reconhecido como a cabeça da Igreja no ocidente, no entanto, o Papa precisa lidar com o poder do Império Germânico e depois dos Estados nacionais.
A autoridade dos bispos se mantém fundamental e efetiva na Idade Média, negada pelos protestantes, mas conservada na tradição anglicana. Seu poder é muito alto. Por sua vez, o papado, fortalecido pelo Concílio de Trento, concluído em 1563, busca manter o controle sobre os bispos e enfrenta os soberanos dos Estados católicos como Espanha, Portugal, França, Áustria, mas também as tentativas de autonomia dos diferentes episcopados. Vicissitudes que explicam as dificuldades que os papas possuem para impor sua autoridade, também em assuntos urgentes como os abusos contra menores.
Em 1870, com o Concílio Vaticano I e a queda do estado papal, o primado romano alcança seu apogeu. Contudo, já em 1875 os bispos alemães afirmam, em polêmica com o estado prussiano, que o reconhecimento da autoridade pontifícia não os reduz a “meros funcionários do Papa”, e o próprio Pio IX apoia essa interpretação moderada das afirmações conciliares.
Finalmente, o Concílio Vaticano II (1962-1965) desenvolve o papel do bispo e a dimensão colegial do episcopado. Isso se expressa em reuniões como os sínodos locais, ou em novos organismos como as conferências episcopais, que atuam eficazmente só quando alcançam a unanimidade. Além disso, desde a Idade Média o Papa exerce seu poder por meio da Cúria Romana, reformada várias vezes, mas sempre objeto de críticas.
O peso da história explica por que o poder está tão distribuído na Igreja e nunca possui um foco claro: o Papa, a cúria e os bispos (cerca de 5.000). Compreende-se, então, a contínua necessidade de reformas. É urgente mudar o exercício do primado romano, para convencer mais do que mandar, para também recuperar o controle em assuntos como os abusos contra menores, onde os bispos às vezes têm mais poder do que os próprios órgãos de investigação ou o Pontífice. Porque desde a época de Gregório Magno, o título mais expressivo do papa é “servo dos servos de Deus”, bispo de uma Igreja “que preside na caridade”, como destacava Inácio de Antioquia já em inícios do século II.
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Quem manda na Igreja Católica? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU