30 Novembro 2021
"A juventude politizada foi às ruas, mas não às urnas. Já o que resta do Chile estabilizado social e economicamente é bombardeado por uma mídia nociva e oligárquica, com pedidos permanentes de “mão pesada” contra a delinquência social e política", escreve Bruno Lima Rocha, cientista político, pós-doutorando em economia política, professor de relações internacionais e jornalismo, em artigo publicado por Sul21, 29-11-2021.
No domingo, 21 de novembro de 2021, o Chile foi às urnas para o primeiro turno de uma esperada eleição presidencial. O país transandino vive o limite de seu sistema político e tensões sociais. Desde outubro de 2019, uma rebelião popular colocou o sistema contra a parede. Tendo como estopim o constante aumento das passagens de metrô da região metropolitana de Santiago, a juventude chilena se rebela e atrai um conjunto de classes sociais oprimidas e deixadas às margens da transição negociada.
Ao deixar o poder em 1990, o tirano Augusto Pinochet deixou uma Constituição redigida em 1980, no auge da ditadura, onde simplesmente os direitos sociais inexistem. Após a saída do general ditador, seu legado político marca de 20 a 25% do eleitorado chileno (por vezes chegando a 30%). É o mesmo índice do atual candidato da extrema direita, apontado como o mais forte à corrida presidencial.
Os totais do primeiro turno apontam José Antonio Kast (29,31%, pela extrema direita, Partido Republicano); Gabriel Boric (25,83%, pela esquerda, coalizão do Partido Comunista com a Frente Ampla); Franco Parisi (12,80%, independente pela direita, mais um cavalo de Troia do império, fazendo campanha cibernética a partir dos EUA); Sebastián Sichel (representando o pacto da direita chilena, UDI e RN, representante de Sebastián Piñera na disputa); Yasna Provoste (democrata cristã aliada do OS de Bachelet, representa o que sobra da Concertación que governou o país por quatro mandatos) e os independentes mais à esquerda Marco Enríquez Ominami (7,61%) e Eduardo Artés (1,47%).
O perigo da guinada à direita no eleitorado não tem relação direta com a mobilização da sociedade chilena. O índice de abstenção nas eleições presidenciais foi de 53%, sendo que nas inéditas eleições regionais (que no Brasil equivalem aos pleitos para os governos estaduais), este índice bateu 62%. Pela lógica da luta popular, era para dar vitória ao candidato da esquerda em primeiro turno. Mas, como há mais crença no jogo eleitoral pela direita, seguindo os herdeiros do legado de Pinochet, a mobilização conservadora é maior nas urnas, enquanto a das esquerdas é nas ruas.
Dois fatores importantes agravam o discurso de violência e repressão de Kast. Na Grande Santiago e no norte do país, os números de imigrantes são percebidos como um fator a mais de distúrbios e desemprego. Diante do eterno sufoco econômico e a ausência de garantias de direitos sociais, é preciso gerar “bodes expiatórios” para uma parcela do ódio popular. A juventude politizada foi às ruas, mas não às urnas. Já o que resta do Chile estabilizado social e economicamente é bombardeado por uma mídia nociva e oligárquica, com pedidos permanentes de “mão pesada” contra a delinquência social e política.
O artista gráfico e analista da política latino-americana Ignacio Munhoz traz dois aportes para tentarmos interpretar o Chile além da composição progressista da Assembleia Nacional Constituinte, como fruto indireto das lutas de rua e os enfrentamentos ao Corpo Nacional de Carabineros (a política nacional militarizada, que recebe privilégios de salários e pensões).
O tema da migração no Chile foi expressivo em números nestes últimos quatros anos (2017-2020). Para um país que tinha uma taxa de migração anual em média de um pouco mais de cem mil pessoas, segundo registos do serviço nacional de migrações, esta realidade teve uma mudança desde 2017 quando o número de pedidos de vistos superou os duzentos e cinquenta mil, chegando a seu pico no ano 2018 com mais de quatrocentos e trinta oito mil vistos outorgados e posteriormente em 2019, com mais de trezentos e vinte oito mil vistos….; no olhar xenofóbico de uma parte da população, a migração trouxe mais violência e novas formas de delinquência, que segundo os chilenos tinha como evidentes responsáveis à população colombiana e venezuelana.
Da mesma forma que a chegada de cerca de um milhão de novos moradores no país (com menos de 20 milhões de habitantes) gera o argumento para ampliar o medo em sociedade, assim como a herança maldita da história chilena também. Munhoz nos lembra da militarização das regiões com forte presença mapuche (Araucanía e BioBío) que haviam sido militarizadas em outubro de 2021, em função dos protestos promovidos por entidades ligadas ao povo originário, liderada pela Coordenação Arauco-Malleco, classificada como “terrorista” pelo mesmo Estado que pagou pensão e salários para Pinochet até seu último dia de vida. A população indígena é outro tema de tensão na “unidade nacional”, considerando que somam cerca de 12,8% dos habitantes, sendo que mapuches são 9,9%. Considerando que a bandeira de Lautaro (herói da epopeia arauco) é mais popular que a tricolor da estrela solitária criada pelo prócer Bernardo O’Higgins, cada vez mais o aparelho de Estado neoloconial se assemelha a uma ocupação pós-colonial, em que o braço estatal só serve para espoliar o povo, não garante direitos fundamentais, nem vida digna.
Ao ler e acompanhar comunicados, ações políticas e posicionamentos públicos de dirigentes da importante comunidade palestina no Chile, vemos que há um problema direto caso a extrema direita ganhe. Apesar de Kast ter uma família com membros nazistas, o peso político da aliança ocidental pende mais para seu irmão economista (um dos Chicago Boys, Miguel Kast, ex-ministro de Pinochet), a tendência é ser ainda mais pró-Israel que os governos antecessores. O presidente da Comunidade Palestina no Chile, Maurice Khamis, afirma que La Moneda repete a “teoria do empate” entre a entidade sionista e o povo que foi expulso e está sob a ocupação. Nesse ponto, os dois governos de Bachelet e de Piñera se assemelham. Caso o ex-deputado pinochetista ganhe o pleito, o alinhamento com o Apartheid na Cananeia vai ser ainda maior.
Khamis e a direção palestina viam com enorme simpatia a possível candidatura de Daniel Jadue, que perde a vaga para Gabriel Boric nas prévias da ampla coalizão Apruebo Dignidad, que além da Frente Ampla e do histórico Partido Comunista de Jadue, também conta com organizações da sociedade civil emergentes nos últimos anos. Já José Antonio Kast é aliado de Santiago Abascal – líder do Vox, da extrema direita espanhola – que por sinal é aliado do Likud e apoiou Benjamin Netanyahu até seu último momento no poder. Como se não bastasse, o Vox recebeu enormes quantias da direita opositora iraniana. Ou seja, além da projeção de poder de Washington e Tel Aviv, a aliança internacional de Kast é a mesma de Bolsonaro e outras parcelas do sionismo. Abordaremos esse tema com profundidade no próximo artigo.
No plebiscito de 26 de outubro de 2020, 78,27% aprovaram uma nova constituição, sendo que 79,18% votaram por uma constituinte exclusiva – que se encerra somente em outubro de 2022. Nesse pleito, a abstenção foi de 49,2%, enquanto no primeiro turno presidencial foi de 53%. Essa diferença de votos dá pouco mais de 300 mil eleitores e revela a diferença entre a luta popular e a participação na urna. A mais nova batalha do Chile será em 19 de dezembro, no segundo turno, mas a guerra pode se dar na aprovação ou no rechaço à Nova Constituição e na luta por vida digna. A única certeza que temos é de que não vai dar “empate”. Não mais.
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O primeiro turno no Chile e o risco da guinada à extrema direita - Instituto Humanitas Unisinos - IHU