01 Setembro 2021
"O nosso Talibã, aqui, é um homem e um movimento. Ele penetrou o cerne do Estado e vem alimentado, grão por grão, em parte do povo, um espírito miliciano", escreve Tarso Genro, ex-governador do Estado do Rio Grande do Sul, ex-prefeito de Porto Alegre, foi ministro da Justiça, da Educação e das Relações Institucionais do Brasil, em artigo publicado por Sul21, 28-08-2021.
Bolsonaro vem a público, ri de quem tem fome e diz no “cercardinho” de idiotas que lhe cultuam, que representam uma pequena parte do nosso povo: “não comprem feijão, comprem fuzis!”. Repetindo a fórmula fascista degradada pelo seu projeto de poder miliciano – sem partido, sem ideias, sem compaixão -recomenda, como queria o Duce, o “armamento geral do povo”. Quer substituir as Forças Armadas, cujo dever constitucional é defender a soberania nacional e a estrutura republicana de Governo, por milicianos dispersos sem lei e fora da ordem.
Bolsonaro dissolve o Estado e os poderes soberanos com a frase letal: “comprem fuzis, não feijão !”. É a fórmula pela qual ele assenta a barbárie no território e alimenta a utopia de direita, que supõe um país sem Direito e sem Estado, só um espaço do mercado amarrado pelos milicianos criados nos porões clandestinos da ilegalidade. As Forças Armadas não dizem nada. Quem dirá?
No apogeu da Europa democrática e burguesa, sua civilização pensava a si mesma como a vanguarda (Mattei) em que “a ignorância se dissiparia à medida das luzes do conhecimento, o desejo se curvaria a ordens da razão, e a barbárie se submeteria à civilização numa conversão de todo o seu ser…”. Esta encarnação da razão democrática pela Europa civilizada não prosperou e estão em xeque os fundamentos do Estado público assediado pelos bárbaros.
Os reflexos tênues de tal civilização bateram por séculos nas praias da América Latina, numa gigantesca sucessão de convulsões. Seus desdobramentos bárbaros e civilizatórios persistem: os bárbaros, entranhados pelo fascismo, transmutado pelas elites locais em autoritarismo oligárquico; e os reflexos civilizatórios sobrevivendo, pelos resquícios da vida democrática que persistiram em vicejar. É preciso pensar em Kabul, não como um elo perdido deste processo, mas como uma metáfora do desastre histórico que põe em crise o que resta da democracia liberal.
O Aeroporto de Kabul é o pequeno espaço global onde, hoje, civilização e barbárie estão dos dois lados da cerca. Num lado, os soldados americanos que cumprem as ordens de sustar os caminhos de fuga, que são demasiado estreitos; e, no outro, o Talibã vitorioso, que tolera os “ultra-radicais” explodindo pessoas em fuga, desesperadas pelo abandono. Os bebês entregues aos soldados do Tio Sam sobre os espinhos de aço das cercas de Kabul marcam o século que começou em crise e se aproxima do desastre.
Os soldados americanos são do mesmo país que armou e organizou o Talibã e que, em 1994, permaneceram imóveis – na administração Bill Clinton – quando do assassinato programado em Ruanda, de 800 mil Tutsis, em 100 dias de chacina. Não podemos esquecer que uma boa parte dos iluministas de direita na Europa sempre pensou o colonialismo como um “processo civilizatório.”
A barbárie pela imobilidade, no caso de Ruanda, foi um reflexo tardio do pensamento crítico das classes dominantes do mundo, por parte de quem se apresentava como “estado-polícia” do mundo, exclusivamente para proteger seus interesses no domínio da terra e das riquezas minerais. Estes espaços coloniais e neocoloniais tinham policiamento desde que o custo da intervenção valesse o retorno para a taxa de felicidade imperial.
O acordo com os Talibãs - no Afeganistão – todavia, tem o mesmo sentido, coerente para quem, por décadas, seguiu atuando em território latino-americano apoiando as ditaduras terroristas que nos infestaram no Século XX. O Talibã era constituído e apoiado para se voltar contra os soviéticos, não para organizar um “estado de direito”, num país ainda fortemente tribal. A reflexão que os acontecimentos de Kabul ensejam no nosso país infeliz, que agora até o “Estadão” considera governado por um energúmeno (a Zero Hora ainda não) é todavia mais complexa.
O nosso Talibã, aqui, é um homem e um movimento. Ele penetrou o cerne do Estado e vem alimentado, grão por grão, em parte do povo, um espírito miliciano: não é uma organização política assentada numa estrutura de classes, nem um núcleo de poder formal, sustentado por dinheiro dos ricos tradicionais. É um grupo de aventureiros amparado por recursos de uma “lumpen” burguesia” sem grande riqueza mas que é “expert” em vigarices rentáveis.
Quando Bolsonaro tem a coragem de dizer que os fuzis são mais importantes que o feijão, que a arma é mais importante do que o alimento, que a guerra é mais importante do que a paz, seu governo não é mais apenas ilegal e ilegítimo. Ele então se identifica com as duas barbáries de Kabul: a que explode bombas sobre o povo indefeso e atira crianças sobre as cercas de aço, e a que organizou os Talibãs para voltarem ao poder em nome da civilização, com seus ritmos de fracasso e sangue derramado.
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Crianças de Kabul sobre espinhos de aço e a barbárie que nos assola - Instituto Humanitas Unisinos - IHU