"A nova realidade será fruto de um aprendizado; de contemplar, observar, discernir e ponderar aquilo que vivemos e estamos vivendo como religiosos em um tempo de pandemia".
A opinião é de José María Arnaiz, padre marianista espanhol e ex-presidente da Conferência dos Religiosos da Argentina e do Chile e ex-secretário-geral da União de Superiores Gerais (USG). O artigo foi publicado por Settimana News, 22-08-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A reflexão e o título são, sem dúvida, uma provocação, mas são também uma proposta de compromissos que vêm de algo que quer nascer e que deve nascer: um novo rumo para a humanidade e a vida consagrada.
Para nos orientarmos rumo a essa grande alternativa e a esse objetivo, é preciso ler a realidade da vida religiosa em tempos de pandemia de um modo diferente e, naturalmente, de um modo novo.
O mundo neste momento precisa de uma mudança que, de fato, já começou: “Eis que faço novas todas as coisas (...) Elas se realizaram” (Ap 21,5). Sim, percebe-se isso.
No contexto da América Latina, a vida consagrada também está se preparando para esse novo rumo.
Naturalmente, como ponto de partida daquilo que está acontecendo, é necessário descrever o evento presente, do qual tudo deriva: a pandemia. Para alguns, foi – e é – um gigantesco tsunami; um tsunami veloz e invasivo; entrou nas casas e alcançou as pessoas.
No início, não achávamos que fosse tão ameaçador e devastador. É visível e invisível ao mesmo tempo. Pede uma profunda reação. Coloca-nos em um permanente estado de alerta. Por que requer uma mudança de rumo?
A nova realidade será fruto de um aprendizado; de contemplar, observar, discernir e ponderar aquilo que vivemos e estamos vivendo como religiosos em um tempo de pandemia.
Mas deve ser algo vivido, não um ponto final e em frente, mas um ponto final e novo parágrafo, um ponto que leve ao início de uma nova etapa na história da humanidade; uma verdadeira mudança de rumo para todos os seres humanos e para as diversas instituições e as pessoas que as compõem.
É assim que o Papa Francisco vê. “Muitas coisas devem reorientar o seu rumo, mas, acima de tudo, é a humanidade que deve mudar. Falta a consciência de uma origem comum, de uma pertença recíproca e de um futuro compartilhado por todos. É preciso desenvolver novas convicções, novas atitudes e novas formas de vida. Decorre daí um grande desafio cultural, espiritual e educacional que exigirá longos processos de regeneração de uma consciência de base e permitirá o surgimento de uma nova humanidade” (Papa Francisco, 29 de março de 2021).
Não podemos ignorar que vivemos em uma situação inusitada, desconcertante, sem precedentes e surpreendente por aquilo que a pandemia traz consigo e porque afeta o mundo inteiro ao mesmo tempo; é global.
Como seres humanos, cristãos e religiosos, ela nos pegou desprevenidos e quase sem recursos, mas felizmente dispomos de dois grandes meios: a fé, que nos lembra que Deus é nosso pai, e a proximidade de pessoas cheias de esperança e de amor que nos dizem que, se buscarmos o Reino de Deus e a sua justiça, tudo o mais nos será dado em excesso.
Estamos nos dando conta de que, com o passar dos dias e meses desta pandemia, amanhã nada mais será como antes. Para que assim seja, devemos criar e, por isso, abrir espaço para o incerto, o imprevisível, o mágico, o poético e o milagroso... e também para o trágico porque – como estamos constatando – são muitas as realidades que morrem e matam.
Mas Deus está perdidamente apaixonado pela sua criação, aquela que vem do Espírito do seu amor, e vai levar a cabo o projeto do Reino.
Ao mesmo tempo, algo “velho” tem que acabar. Não há dúvida de que a cultura consumista atentou contra a qualidade das relações humanas ou, mais ainda, a qualidade da vida humana. É urgente que a dignidade de cada ser humano prevaleça sobre os interesses materialistas e consumistas que o conhecido e persistente neoliberalismo nos trouxe.
É oportuno se servir das crises de grande porte para promover políticas que aprofundem a igualdade, questionem as elites e fortaleçam todos os outros. A confiança deve passar daqueles que estão no poder para o povo. É hora de aprofundar o desastre do capitalismo e fazer desaparecer todos os anticorpos da solidariedade.
Aquilo que vai começar já havia sido intuído por alguns estudiosos do futuro e para um deles – Alvin Toffler – isso ocorreria com a chegada da “terceira onda”. A humanidade, depois da primeira fase, que foi a revolução agrícola, viveu a segunda, a chamada revolução industrial e depois começou a navegar para aquela que Toffler chama de terceira revolução, em que a força mental do ser humano aumentará com os produtos computacionais, cibernéticos e outros novos instrumentos.
Esse novo rumo da humanidade é como o tesouro escondido no sofrimento de tantas pessoas, famílias e consagrados; e seus bons frutos. Está brotando a partir desse sofrimento profundo e fecundo; já estamos começando a desfrutá-lo. Não temos dúvidas disso. Devemos ter a coragem de voar, e as asas despontarão.
Pela mesma razão, essa grande convicção está levando muitas pessoas e instituições a rezarem e a verem Deus presente nessa realidade; pessoas convencidas de que mesmo nesta circunstância pode-se afirmar que não há mal que não venha para o bem; que não há cruz que não leve à Páscoa.
Por isso, nos últimos meses, começou-se a fazer de tudo para que não se apague o fogo da memória e, sobretudo, para que busquemos com todos os meios sair melhores desta pandemia; para que se tomem decisões pascais. Da cruz e do Crucificado, veio um grande bem: “A vida tirada, destruída, aniquilada na cruz despertou e volta a palpitar de novo” (R. Guardini). Essa é a nossa esperança, aquela que não pode ser roubada, calada ou contaminada. Se na nossa vida voltarmos a nos colocar a serviço, o amor voltará a pulsar.
O fundamento ou a razão mais profunda para fazer essa grande proposta está no fato de que quem não muda, enquanto tudo muda, fica no passado, no ontem; permanece mudo e surdo. Mas a vida não para nesse ontem. Ela vai rumo a um novo horizonte; assim projetamos a história.
Precisamos de clareza e de coragem para aceitar aquilo que aconteceu e para poder inovar os nossos estilos ou nos condenarmos a uma normalidade que esquece aquilo que ocorreu. Temos que forçar o surgimento de uma nova aurora que seja serena. É preciso fazer isso sem misturar o velho e o novo. Vinho novo requer odres novos.
“Se pudemos aprender alguma coisa em todo esse tempo é que ninguém se salva sozinho. Caem as fronteiras, desmoronam os muros, e todos os discursos integristas se dissolvem diante de uma presença quase imperceptível que revela a fragilidade de que somos feitos” (Papa Francisco). Sem dúvida, a solidariedade é melhor do que o isolamento. A colaboração não pode faltar.
Para alcançar esse objetivo, o que nos ajuda é a consciência de uma origem comum, de uma pertença recíproca e de uma posição compartilhada por todos.
Esse novo rumo da humanidade por ocasião da pandemia oferece respostas e também perguntas. A vida humana, cristã, religiosa e a de cada um de nós é vida e, como tal, é crescimento, risco, ameaça, oportunidade, amadurecimento; por isso, a vida é verdadeira luz e sal.
Tudo isso é fruto de uma reflexão pessoal, e não se oferece tanto uma previsão do futuro, mas sim uma esperança que não nasce primeiro a partir daquilo que estamos passando, mas a partir daquilo que vai nos acontecer.
Um drama dessa magnitude traz à tona o pior e também o melhor do gênero humano. Uma tarefa importante é encontrar e dar nome aos tesouros escondidos e envoltos no sofrimento de tantas pessoas e famílias, para que se tornem fecundos e se multipliquem em um amanhã incerto.
Para alcançar esse objetivo, devemos aprender a viver mais unidos e ter muita paciência, com um isolamento suportável e uma atividade limitada e muito diversa.
- A vida consagrada hoje se encontra “bloqueada” e não se coloca à prova para ser parte viva das grandes transformações que a humanidade está vivendo por ocasião desta pandemia.
- Ela deve descobrir como característica principal o fato de ser nômade e em busca, pois seremos fiéis pela eternidade somente quando formos fiéis no tempo atual.
- A vida consagrada está abandonada pela mão de Deus; ela deve se abrir para a nova consciência que bate às nossas portas. Os dias da pandemia provocaram uma certa perturbação; um fato providencial para marcar um novo rumo, o do futuro. Assim, evitaremos a vertigem de um recuo invernal.
- A vida consagrada indica uma primavera que consiste principalmente em saber estar no coração do mundo e colocar o mundo no coração de Deus. Por isso, é importante voltar ao “primeiro amor”, que deve ser uma mistura de gratuidade, solidariedade, disponibilidade, esperança, confiança, perdão, trabalho pela justiça, conversão, comunhão, todos sinais de uma vida renascida.
- A vida consagrada tem um papel importante a desempenhar, deve despertar o mundo e convidar a uma forma diferente de operar, agir e viver. Por isso, é importante ser profecia do Reino e, para conseguir isso, devemos ser profetas, como o Papa Francisco nos pediu com insistência.
- As comunidades religiosas serão lugares onde a humanidade é refeita e se vive um amor atento a cada necessidade.
- Diante da crise da pobreza e de tantas pessoas em uma situação de extrema necessidade, a vida consagrada tem muito a dizer e a fazer. Há um vírus que nunca desaparece e é aquele que fomenta o poder e o ter, o da ânsia de riqueza e da sexualidade descontrolada. É tarefa da vida consagrada mostrar qual é o antivírus autêntico: a partilha, a compaixão, o amor, o desapego, a generosidade, as palavras positivas, os vínculos reais e a alegria autêntica. Ela deve conseguir fazer reviver e testemunhar o amor que vence a morte.
- O vírus nos mostrou que há coisas na vida consagrada que deixaram de ser importantes. A atual realidade estrutural da vida consagrada foi posta em questão, sobretudo o fato de não se cultivar e se cuidar daquela que podemos chamar de pedra angular da vocação religiosa: a felicidade. É preciso sair desse cerco que multiplica as verdades e os costumes intocáveis e, em vez disso, buscar novas formas para chegar a expressar os valores evangélicos.
Tudo isso se transforma em grandes oportunidades para os religiosos. O desafio de enfrentar a pandemia para as nossas comunidades religiosas nos pede para transformar essa experiência em grandes oportunidades para a nossa história pessoal e comunitária. Devemos vivê-la como uma grande oportunidade que nos é oferecida e ajudar os outros a fazer o mesmo.
Se a vida religiosa se descobre hoje “bloqueada” é porque ela não se desafiou a ser parte viva das grandes transformações pelas quais a humanidade está passando. Trata-se de reavivar uma fé que atue mediante a caridade e sustente a esperança do mundo. Esperança que se encarnará no fato de viver as oportunidades que aqui nos limitamos a elencar:
Para isso, não é necessário fazer desaparecer a ritualidade, mas sim criar uma nova; aquela que sai e chega onde habita aquele que espera o Evangelho. “Quando a pandemia acabar, não devemos voltar a restaurar a Igreja sacramentalista do passado. Saiamos às ruas para evangelizar, sem proselitismo, para anunciar com alegria a boa nova de Jesus a quem não entra no templo. Assim, terá pleno significado celebrar na comunidade cristã a fração do pão e os outros sacramentos” (Victor Codina, SJ).
Uma vez, na vida consagrada, o rito marcava tudo; começando pela habitação que era o mosteiro, o convento, a casa religiosa… agora é a nossa casa, uma casa; a mesma coisa aconteceu com o hábito que era a veste; o mesmo com as normas de comunicação que eram marcadas e caracterizadas pelo silêncio, pelo sigilo e pela confidencialidade... É claro, porém, que o cristianismo não é uma religião, mas uma fé. Com base nesse princípio, nascerá a nova ritualidade.
Atualmente, na Igreja, boa parte da ritualidade foi interrompida. Não há dúvida de que vai nascer outra ritualidade nova e talvez um pouco diferente do velho ritual. É preciso reinventar a nossa ritualidade. O Espírito quer que ela brote bem perto da vida e para multiplicar a vida. Sem dúvida, é preciso crescer no sentido da família e da fraternidade.
A noite está terminando, e o sol volta a nos iluminar. Um novo dia está nascendo. Mas ainda não tem data: “É belo que na noite creiamos na luz... É preciso forçar a aurora a nascer, crendo nela” (G. La Pira). Para que isso ocorra, precisamos de criatividade, imaginação, novidade, unir as mãos e os esforços. Devemos lutar juntos e realizar essa grande mudança cultural, pois estamos passando por uma autêntica crise sociocultural.
O discurso racional parece não ter efeito. A arte, a cultura e, em última instância, a educação podem ter sucesso ao ativar instrumentos simbólicos que tocam a fibra emocional; podem permitir a recuperação e a reconstrução da tão importante confiança cívica e a colaboração de todos. É necessário construir um senso coletivo de identidade e de pertença a uma unidade maior. Assim poderemos cantar com a grande poeta Violeta Parra: “O canto de todos é o meu próprio canto”. Isso nos leva a medidas compartilhadas e, por assim dizer, a medidas realizadas.
Os instrumentos dessa mudança são as pessoas que despertaram, que abriram olhos e ouvidos, e sentiram a necessidade e a possibilidade da mudança pessoal e grupal, social e cultural que começaram a viver.
Para alguns, chegou a hora de serem sábios. Isso nos levará a viver com base naquilo e por aquilo que é importante e a sair melhores da pandemia. De uma forma ou de outra, veremos esta crise como uma oportunidade para sair da hipocrisia, do ritmo frenético do consumismo e da produção, humanizando-nos e sentindo-nos todos irmãos.
Desse modo, alcançaremos uma humanização imaginada, tornando realidade um novo rumo para a humanidade. Para Mahatma Gandhi, chegou a hora de sermos lúcidos e audazes como as águias: “Quando há uma tempestade, os pássaros se escondem, mas as águias se animam a voar mais alto”.
Para Santo Alberto Hurtado, a preocupação seria: o que Jesus faria neste lugar e neste momento? E se dispor a fazer o mesmo. Procedamos como Jesus procederia e encontraremos a melhor forma para reinventar a nossa vida consagrada.
Não podemos esquecer que Deus é nosso aliado, não do coronavírus. A partir daí ele fala e nós devemos escutá-lo; por isso, não precisamos tanto de silêncio. Agora, o lugar privilegiado onde podemos escutar Deus são as vítimas.
De 04 de junho a 10 de dezembro de 2021, o IHU realiza o XX Simpósio Internacional IHU. A (I)Relevância pública do cristianismo num mundo em transição, que tem como objetivo debater transdisciplinarmente desafios e possibilidades para o cristianismo em meio às grandes transformações que caracterizam a sociedade e a cultura atual, no contexto da confluência de diversas crises de um mundo em transição.
XX Simpósio Internacional IHU. A (I)Relevância pública do cristianismo num mundo em transição