As pessoas consagradas e a pandemia. Entrevista com José Rodríguez Carballo

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06 Mai 2021

José Rodríguez Carballo, OFM, arcebispo secretário da Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica, descreve um amplo panorama sobre alguns temas relativos à vida religiosa, em tempos de coronavírus, mas não só.

 

Em uma próxima intervenção, ele abordará a vivência dos votos religiosos em relação à pandemia.

 

A entrevista é de Lorenzo Prezzi, publicada por Settimana News, 02-05-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

 

Eis a entrevista.

 

Dom Carballo, a pandemia e o seu confinamento interpelam a vida consagrada em muitos aspectos. Até no carisma. Um dom espiritual que não pode se expressar ainda tem serventia? O desaparecimento da ação tornou visível uma inconsistência já precedente? A partilha intracomunitária do dom fundacional pode alimentar o tema da fraternidade de todos?

 

Certamente. A pandemia interpela a vida consagrada, assim como toda a Igreja e toda a sociedade. As pessoas consagradas como tais, mas também como cidadãs e membros da Igreja, não podem deixar de se fazer esta pergunta: o que o Senhor está nos dizendo por meio da pandemia? Que mudanças devem ser feitas na nossa vida, nos nossos estilos de vida como pessoas consagradas, para poder responder à nova situação criada pela pandemia?

 

Nesse contexto, há outra pergunta que não podemos deixar de levar em consideração: como expressar os nossos carismas para que continuem sendo atuais no momento histórico em que vivemos? Como podemos nos recolocar neste novo contexto social, econômico e religioso que emerge a partir da pandemia?

 

São perguntas profundas. Ela não dizem respeito apenas àquilo que nós, consagrados, fazemos, à funcionalidade da nossa vida, mas também àquilo que a vida consagrada é em si mesma, como sinal e profecia, na Igreja e no mundo. O significado da vida consagrada no presente e no futuro está em jogo na resposta que damos a essas perguntas.

 

Na vida consagrada, assim como na vida da Igreja e da própria sociedade, estamos atravessando a estação invernal. Essa situação pode nos ajudar a transformar o nosso hoje em um kairós, um tempo favorável para cuidar das nossas raízes, para trabalhar naquilo que é essencial.

 

Por outro lado, estamos vivendo uma crise que, levando em conta o significado etimológico desse termo, pode ser de crescimento. É hora de tomar decisões. Se forem as certas, será uma crise de crescimento; se não forem as certas para o momento atual, poderia ser uma crise de morte, não para a vida consagrada como tal, mas para algumas formas de vida consagrada.

 

Por outro lado, não basta mais guardar o carisma, se por “guardar” se entende conservar, manter; não basta mais repetir ou fazer arqueologia. O carisma não é um sítio arqueológico, mas uma realidade viva, uma fonte da qual jorra água fresca e limpa.

 

Por isso – como nos lembra o Papa Francisco – o carisma precisa ser purificado de todos aqueles elementos que, como a poeira que gruda, se acumulam com o passar do tempo e não nos permitem encontrar a linfa originária do carisma, nem manifestá-lo com o frescor e a beleza com que os nossos fundadores o viveram. O carisma é como a água: se não flui, apodrece. Por outro lado, assim como a água toma a forma do recipiente que a contém, assim também o carisma se adapta aos tempos, aos lugares e aos contextos históricos.

 

A vida consagrada, desde as suas origens, demonstrou que sempre respaldou, mesmo nos tempos “duros” (Santa Teresa d’Ávila), a criatividade do Espírito, de modo que muitos carismas permaneceram vivos durante séculos, assim como, em outros casos em que esse movimento criativo não ocorreu, alguns carismas também desapareceram.

 

Esta é a grande responsabilidade que a vida consagrada tem diante de si neste momento: unir-se à criatividade do Espírito, revisitar o carisma para recriá-lo e revitalizá-lo, para que, apesar do passar dos séculos, continue conservando a juventude que vem do Espírito que faz novas todas as coisas e, com a sua força, nos impulsiona a encontrar novas formas que expressem esse dom – o carisma é um dom – nestes tempos “delicados e difíceis” (São João Paulo II), que são também os tempos de Deus.

 

E, quando falamos em encontrar novas formas (e não me refiro aos novos institutos de vida consagrada) que expressem o carisma, não podemos pensar apenas naquilo que é funcional. Não podemos confundir o carisma com as obras de um instituto. Julgar a vida consagrada somente com base no que ela faz é um erro e nos leva a pensar que, com o desaparecimento da visibilidade da ação por causa da pandemia, se revelou uma certa inconsistência que já existia antes.

 

Neste tempo de pandemia, é verdade que algumas atividades diminuíram ou pararam, como no caso das escolas ou dos grandes encontros eclesiais. Mas também é verdade que outras continuaram, graças – por exemplo – aos meios de comunicação, ou até aumentaram: a formação permanente, os encontros online dos conselhos gerais e provinciais, os encontros entre comunidades e os encontros intercarismáticos.

 

Eu acho que a vida consagrada, assim como tantas outras realidades eclesiais e sociais, soube se mover ao ritmo da epidemia, respondendo a essa triste realidade com grande criatividade.

 

Em todo o caso, não podemos esquecer que o que dá consistência à vida consagrada não é apenas o que ela faz, o que se vê, mas também a forma de vida evangélica que as pessoas consagradas professam e vivem. Nesse sentido, talvez a pandemia, ao evidenciar as nossas fraquezas, pode nos ajudar a superar um certo triunfalismo que, no fim, poderia parecer mais mundanidade, também espiritual, do que Evangelho.

 

Por outro lado, também é claro que, a partir de uma profunda atitude de discernimento evangélico e eclesial, a pandemia nos obriga a mudar o modelo e as estruturas da vida consagrada, começando pelas estruturas de formação e de governo, também devido à diminuição das vocações. Uma mudança que diz respeito também às diaconias, às relações e às linguagens, se não quisermos que as ideias ou as ideologias acabem nos separando da realidade e mutilando o próprio Evangelho.

 

Apesar dos passos de gigante que demos no amplo e rico processo de accomodata renovatio realizado no pós-Concílio, a vida consagrada, sendo uma realidade dinâmica, tem desafios abertos que devem ser enfrentados “com determinação e clarividência” (Evangelii gaudium, n. 58), “vinho novo em odres novos” (Mc 2,22). A vida consagrada precisa da parresia para encontrar odres adequados para conter o vinho novo que o Espírito continua doando à Igreja.

 

E algo que sem dúvida ajudará na renovação profunda dos nossos carismas é a partilha intracomunitária, a comunhão intercarismática, o sentimento de que estamos todos no mesmo barco, o fato de viver a comunhão em todos os níveis: com os membros da própria comunidade/fraternidade, com os membros do próprio instituto, com as outras pessoas consagradas, com todo o povo santo de Deus e com os homens e as mulheres da nossa sociedade. Desse modo, formaremos uma grande fraternidade, com uma missão compartilhada, que vai muito além da minha casa, do meu instituto e que se estende a todos, sem distinção de credo ou de cultura.

 

 

Discernimento e elaboração do luto

 

 

 

A Covid entrou com prepotência em algumas comunidades, principalmente nas enfermarias. Como celebrar a morte de coirmãos e coirmãs? Como elaborar o luto? O que o trauma deixa para a nossa oração e reflexão?

 

A Covid pegou a todos nós de surpresa e despreparados. Muitas das nossas seguranças foram submetidas a dura prova, como a própria vida. Para muitos, foi uma verdadeira “noite escura” (São João da Cruz). O Santo Padre expressou isso muito bem naquela memorável tarde/noite na Praça São Pedro, onde o silêncio gritava, e o som das sirenes das ambulâncias nos levava a pensar no pior: dor, morte...

 

Quando a Covid arranca de nós aquilo que mais amamos, a vida de um ente querido, de um conhecido, de um coirmão/coirmã, parece-nos uma tirana e uma prepotente que nos rouba uma parte de nós mesmos. Nessas circunstâncias, não é fácil saudá-la como “irmã morte corporal” (São Francisco de Assis).

 

Repentinamente, vimo-nos privados da sabedoria de muitos idosos e dos sonhos de irmãos/irmãs mais jovens. Para a maioria das pessoas consagradas, essa foi uma experiência muito dolorosa, sobretudo pela solidão e pelo isolamento que implica, pelo fato de ter que dizer adeus à distância.

 

E ainda surge a pergunta: por que, Senhor, por quê? E a resposta esperada não chegou, pelo menos nem sempre a entendemos, talvez porque nós também não compreendemos o significado profundo da morte e do sofrimento, assim como muitos dos nossos contemporâneos não entendem. Talvez porque maquiamos aquela realidade da vida humana que é a morte e, contra todas as evidências, queremos bani-la da vida cotidiana.

 

Em outros casos, com o passar dos dias, muitos podem ter se acostumado a ver o número dos mortos aumentando, montanhas de caixões empilhados à espera de serem enterrados, valas comuns que se alongavam cada dia mais, rostos umedecidos pelas lágrimas derramadas por um ente querido que se foi na solidão e sem o conforto de uma presença amiga, a ponto de não se sentir mais afetado por tanta morte e tanta dor. Certamente, houve quem pensasse que “isso não me diz respeito”.

 

A presença da dor e da morte nas nossas casas, em muitos outros casos, serviu para tomar consciência de que estamos aqui de passagem, de que somos “estrangeiros e peregrinos” sem morada fixa aqui embaixo (cf. 1Pd 2,11). Pouco a pouco, até mesmo com o coração sangrando, passamos de sentimentos de injustiça, raiva, tristeza para a aceitação da realidade, acostumando-nos a fazer uma leitura cristã da morte, à luz da morte e ressurreição de Cristo, e a nos centrar na vida que vem.

 

A partir dessa leitura cristã da dor e da morte pela perda de um irmão ou de uma irmã, podemos transformar o luto pelos nossos falecidos em uma confissão de fé que nos leva a proclamar que a morte deles é fecunda como o grão de trigo (cf. Jo 12,24). Se, na vida terrena, entramos na lógica do dom total a Cristo e aos irmãos, morrer pode trazer o sinal da consumação final desse dom. Portanto, celebrar a morte dos irmãos e das irmãs é celebrar a sua vida doada, a sua Páscoa com Cristo.

 

Na fé e somente a partir da fé podemos acolher a morte corporal dos nossos irmãos “cantando” (São Francisco) e com palavras de consolação. Só a fé nos dá a certeza de que os nossos irmãos vivem, e vivem para sempre, e que nós continuamos em comunhão. Isso alivia a dor que provém da separação física, porque sabemos que um dia todos nos reencontraremos na Pátria celeste.

 

E o luto se torna uma oração de ação de graças e de restituição ao Senhor por tudo o que eles foram e fizeram, mas também uma invocação porque sabemos “contar os nossos dias” (Sl 90,12), porque sabemos viver na lógica do Evangelho, no estilo de Jesus de Nazaré, que “passou fazendo o bem” (At 10,38), amando, porque só o amor nos acompanhará depois da morte (Madre Teresa).

 

Por outro lado, essa experiência pode nos ajudar a nos sentirmos solidários com os homens e as mulheres do nosso mundo, com tantas pessoas que morrem sozinhas e sem experimentar a fraternidade que nos sustenta. Desse modo, o luto pode ser transformado em uma experiência de proximidade e de solidariedade com todos aqueles que perderam os seus entes queridos em circunstâncias iguais ou semelhantes.

 

 

Fraternidade realizada

 

O pós-Covid deixará muitos descartes e muitas fraturas na vida civil. O que os religiosos e as religiosas deveriam fazer para alimentar a fraternidade?

 

Sobretudo os religiosos e religiosas e as pessoas consagradas, sempre, mas talvez hoje mais do que nunca, devem trabalhar intensamente pela construção de uma sociedade fraterna. Podemos fazer isso se realizarmos a nossa vocação profética com tudo o que ela envolve: denúncia das “nuvens” que obscurecem a nossa sociedade; convite à conversão, a mudar as estruturas de pecado, e anúncio de um futuro animado pela fraternidade e pela amizade social.

 

Eu acho que nessa tarefa, que é sempre paciente e delicada (ser profeta nunca foi fácil e também não o é hoje), a encíclica Fratelli tutti pode nos servir de guia. Neste momento, nós, pessoas consagradas, não podemos prescindir dessa encíclica no nosso agir, dentro da Igreja e no mundo a que pertencemos.

 

Mas esse trabalho exterior deve ser animado e autenticado por um trabalho ad intra: construir comunidades que sejam verdadeiras fraternidades proféticas. E aqui também a Fratelli tutti pode ser um guia para nós. A vida fraterna em comunidade é um elemento essencial da vida religiosa e uma profecia viva para esta sociedade contraposta, dividida e fragmentada. Mas isso não é automático, deve respeitar algumas “regras do jogo”.

 

Uma vida fraterna em comunidade que queira ser profecia viva no nosso tempo:

 

1) não pode se refugiar no “sempre se fez assim”, nas meras tradições da comunidade ou do instituto, nem mesmo na memória histórica. A memória é fundamental para um presente a ser vivido com paixão e para poder abraçar o futuro com esperança, mas só se for uma memória deuteronômica, como nos pede o Papa Francisco: só assim será uma memória fecunda.

 

A memória está a serviço da vida. O carisma precisa ser podado (purificado). Não podemos ser vítimas de uma “memória arqueológica”. A vida consagrada não é uma “peça de museu” colocada em uma vitrine para ser contemplada e admirada, mas uma realidade viva. Se não fosse assim, não seria nem vida, nem vida consagrada.

 

Nesse contexto, acho muito apropriada uma expressão do Papa Francisco, que cita Gustav Mahler, e a aplico às nossas comunidades/fraternidades: devemos nos comprometer a manter o fogo e a não ceder à tentação de adorar as cinzas. “O hoje é o presente, e é aqui que devemos responder com o nosso carisma”, diz o papa. Por isso, é fundamental que a comunidade/fraternidade entre em um processo de discernimento pessoal e comunitário.

 

2) Assumir sem preconceitos que o seu caminho é o caminho da inserção eclesial, com categorias eclesiais, com vida espiritual eclesial. Uma comunidade/fraternidade fora da Igreja ou em paralelo nunca poderá ser considerada profética. Poderá ser contestatária, em um extremo ou outro, mas nunca profética. “A vida consagrada é um dom para a Igreja, nasce na Igreja, cresce na Igreja, deve tudo à Igreja” (Bergoglio, Sínodo de 1994).

 

3) Deve saber integrar a sabedoria dos idosos e a paixão dos jovens, a profecia dos últimos e os sonhos dos primeiros (cf. Gl 3,1). Saber integrar as diversas culturas que compõem essa comunidade/fraternidade ou instituto. Poder viver com alegria o processo de internacionalização e a multiculturalidade das nossas comunidades/fraternidades, até converter a multiculturalidade em interculturalidade.

 

4) Que os seus membros vivam comprometidos com a história, sem nunca perder de vista aquele ao qual se consagraram: Jesus. Sem a paixão pela história, uma comunidade/fraternidade jamais dirá nada aos seus contemporâneos; sem a paixão por Jesus, a vida consagrada não tem futuro, e as nossas fraternidades não poderão dar frutos: “Sem mim, nada podeis fazer” (Jo 15,5). A paixão por Jesus é aquilo que lança uma comunidade/fraternidade na profecia e no compromisso no momento presente.

 

Essa paixão exige entrar em um constante processo de conversão ou, se quisermos, de formação integral que abrace todas as dimensões da pessoa: a humana, a espiritual, a comunitária, a intelectual e a apostólica. Neste momento, sem descuidar de nenhuma dessas dimensões, devemos cuidar muito da dimensão humana.

 

5) Que os irmãos e as irmãs se sustentem e se ajudem mutuamente. As pessoas não podem caminhar sozinhas, não podem crescer. Aqui é necessário conjugar em todos os casos o “juntos” de que tanto fala o papa na Fratelli tutti: sonhar juntos, construir juntos, planejar juntos, discernir juntos... Para isso, é necessário fomentar a cultura do estar juntos, a comunicação profunda, a livre circulação da palavra... Uma comunidade que queira ser fraternidade e profecia deve caminhar junto e fortalecer a comunhão entre todos os seus membros.

 

6) Que as crises sejam enfrentadas à luz do Evangelho. Então, serão vistas como etapas obrigatórias na história pessoal e na história de uma comunidade, como oportunidades de crescimento, como um kairós propício para limpar o grão depois da colheita. A vida consagrada, assim como a própria Igreja, é um corpo em crise permanente e, por isso, pode ser profética, pode trazer sempre algo de novo que brota do velho e que o torna sempre fecundo. Se as crises forem enfrentadas a partir do Evangelho, então sempre surgirá uma adequada necessidade de renovação.

 

Em uma comunidade/fraternidade assim, o serviço da autoridade desempenha um papel importante. A autoridade nunca pode ser autorreferencial nem pode se considerar autossuficiente. O superior deve criar um ambiente de confiança ao qual ele mesmo pode se confiar e no qual os irmãos e as irmãs podem confiar uns nos outros.

 

O autoritarismo nunca pode ser uma solução, nem mesmo em situações de conflito. Só gerará desconfiança, colocará a autoridade a serviço de interesses pessoais, autoridade que, ao invés disso, deve assumir a “cultura do encontro”, cultivar relações humanas, alimentadas pela escuta atenta dos irmãos, sem excluir ninguém, pelo respeito das ideias dos outros. Nesse sentido, não hesito em afirmar, com base na minha experiência, que, em muitos casos, é necessário “evangelizar” o serviço da autoridade: menos autoridade segundo a lógica do mundo, mais autoridade na lógica do Evangelho.

 

A vida religiosa na rede

 

As famílias religiosas internacionais passaram para a web. Quais vantagens e quais limites?

 

Acho que já respondi a essa pergunta, pelo menos em parte. Todos conhecemos as vantagens da web, especialmente uma comunicação mais rápida. Em tempo real, podemos nos conectar com o outro lado do planeta. Mas isso nunca poderá substituir a relação pessoal e, portanto, a presença pessoal.

 

Por outro lado, para nós da Congregação, complica um pouco o trabalho. Muitos querem a resposta imediatamente ou, como digo brincando, na véspera da pergunta. As respostas, especialmente algumas delas, devem ser pensadas antes de serem dadas. Estamos perdendo a “paciência” e a “beleza” da espera e caímos na lógica do consumismo: tudo e já. Isso não é bom na vida consagrada. Devemos recuperar, se o perdemos, o verdadeiro sentido do tempo.

 

Novo documento sobre as “mutuae relationes”

 

Estamos à espera das novas “mutuae relationes”. Quais serão os princípios inspiradores?

 

Conheço bem a expectativa por esse documento. Infelizmente, a sua elaboração está demorando muito. Em parte, esse atraso se deve à necessidade de consulta, tanto dos bispos quanto das conferências dos religiosos e religiosas. Em parte, deve-se também ao trabalho nada fácil com o qual a comissão nomeada pela Congregação para os Bispos e pela Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica se encontrou. Em parte, enfim, o atraso também se deve ao trabalho que ambas as Congregações têm e que faz com que nem sempre seja fácil encontrar o tempo para refletir juntos sobre os esboços apresentados pela comissão de redação. Se bem me lembro, estamos no quarto esboço.

 

De todos os modos, parece que estamos quase no fim. Salvo imprevistos de última hora, este esboço que as duas Congregações terão em mãos muito em breve deverá ser o último, antes que o texto seja apresentado ao Santo Padre.

 

Os critérios que guiam a redação das novas mutuae relationes podem ser sintetizados assim:

 

- o novo texto se ocupa das relações de todos os consagrados, homens e mulheres, com os bispos e vice-versa. Antes, como bem sabemos, não era assim, pois se referiam apenas aos religiosos homens com atividade pastoral, particularmente nas paróquias. Pensamos que, deste modo, se faz justiça ao serviço pastoral, em sentido amplo, que as consagradas realizam na Igreja local.

 

- Consequentemente, o novo texto contempla todas as atividades que as pessoas consagradas fazem na Igreja local. A relação das pessoas consagradas com o bispo e vice-versa não pode se reduzir à atenção às paróquias, mas se estende a tudo o que contempla a missão de um instituto.

 

- Sem esquecer a parte teológica e canônica, insiste-se muito na parte pastoral, sendo este o campo onde se apresentam as maiores dificuldades nas mutuae relationes.

 

- Insiste-se na valorização da presença da vida consagrada nas Igrejas locais, não só a partir da sua funcionalidade, mas também a partir daquilo que ela é e significa para a Igreja. Consequentemente, insiste-se no fato de que o bispo deve respeitar os carismas e a sua missão.

 

- Leva-se em conta que a vida consagrada faz parte do povo santo de Deus, e, portanto, mesmo que de forma mais breve, fala-se das mutuae relationes dentro do povo santo de Deus e da comunhão entre as diversas vocações.

 

- Por fim, o novo texto recolhe, como é normal, todas as alterações que ocorreram recentemente no Código de Direito Canônico.

 

Carismáticos e eremitas

 

O dicastério é solicitado por formas originais e renovadas de vida consagrada, como as “famílias carismáticas” e a vida eremítica. O que elas podem dizer ao conjunto da vida consagrada?

 

A vida consagrada é um mosaico. Como tal, a sua beleza é constituída pelas várias peças. Em um mosaico, não deveria haver nem sobras nem faltas. Na vida consagrada, há formas novas e formas históricas, não formas tradicionais como dizem alguns : entre as formas históricas, está a vida eremítica, muito florescente nos primeiros séculos da Igreja, mas que, com o passar do tempo, se reduziu a uma minoria.

 

Hoje, ela está voltando a florescer e requer um adequado enquadramento teológico e jurídico, como se fez com a Ordo virginum. Atualmente, o dicastério está pensando em uma “Instrução para a vida eremítica”. Para esse propósito, já realizamos um seminário online em que se estudou a história e a teologia na base dessa forma de sequela Christi. Estamos bem encaminhados.

 

Como já fizemos em outras ocasiões com outras formas de vida consagrada, também desta vez serão os próprios eremitas (homens e mulheres) que prepararão o texto-base da Instrução, levando em conta as conclusões do seminário que mencionei. Essa forma de vida consagrada lembra aos outros o valor da solidão vivida e o valor da contemplação.

 

Por sua vez, as “famílias carismáticas”, como agrupamento de institutos pertencentes à mesma inspiração carismática, testemunham que, na Igreja, é possível fazer um caminho juntos, a sinodalidade. A sinodalidade é algo que deve caracterizar fortemente a vida consagrada e a Igreja, um antídoto para o individualismo e o isolamento.

 

Há algumas “famílias carismáticas” caracterizadas por uma vida e missão mistas, homens e mulheres. Como se pode realizar isso? É algo que o dicastério está estudando, porque é preciso conjugar o desejo, que certamente é bom, com a vida real, que muitas vezes apresenta alguns problemas. Queremos fortalecer a intuição que nos parece muito válida e evitar os perigos que poderiam desqualificar a chamada “família carismática”.

 

 

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