21 Agosto 2020
"A vida consagrada, é desafiada a superar a 'utopia retroativa' uma vez, que esse 'olhar retrotópico não nos permite ir em frente, exatamente porque voltado para trás, comprometido numa comparação certamente perdedora e talvez com a ilusão de restabelecer um passado que não existe mais, mas que exerce uma notável atração em tempos de desorientação como os nossos'", escreve Eliseu Wisniewski, presbítero da Congregação da Missão Província do Sul (padres vicentinos), mestre em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR) e professor na Faculdade Vicentina (FAVI), Curitiba, PR.
Lucidez! Essa palavra define bem a reflexão de Pe. Amedeo Cencini acerca do futuro da vida consagrada no livro: Abraçar o futuro com esperança. O amanhã da vida consagrada. Suas reflexões chamam a atenção para a necessidade de “aprender a conjugar bem os tempos da nossa vida, da vida de nossos institutos, da vida consagrada mesma. Ou buscar e encontrar o vínculo entre o que fomos, o que somos e o que seremos” (p. 13).
Essa preocupação surge não pela preocupação de nossa sobrevivência ou pelo direito de imortalidade de nossas instituições (elas pertencem às realidades passageiras deste mundo, mesmo se anunciam as realidades definitivas do outro), mas porque cremos na estabilidade da vida consagrada em si mesma e pelo significado que tem nessa peregrinação no tempo”(cf. p. 14).
Para isso, a vida consagrada é desafiada a superar a “utopia retroativa” uma vez, que esse “olhar retrotópico não nos permite ir em frente, exatamente porque voltado para trás, comprometido numa comparação certamente perdedora e talvez com a ilusão de restabelecer um passado que não existe mais, mas que exerce uma notável atração em tempos de desorientação como os nossos” (p. 15). A vida consagrada é chamada “a coragem do futuro” (p. 17), vivendo “aqui e agora com responsabilidade a nossa existência; comprometendo-nos aqui e agora para que o passado seja sem lamentos e o futuro sempre mais rico de promessas e esperanças” (p. 17).
O futuro é o “habitat natural de esperança e de expectativas legítimas” (p. 16) não o “lugar dos pesadelos”, ou seja, o “pesadelo da carência das vocações ou da perda de certo espírito e da possibilidade de transmiti-lo às gerações jovens de chamados (que não há), o pesadelo da insignificância da sua presença e do seu testemunho, o pesadelo desse verbo que figura sempre mais nas “ordens do dia” de tantos conselhos provinciais ou gerais: fechar, fechar obras, atividades, serviços que marcaram a vida de tantos consagrados, contribuindo para dar um rosto não só à Igreja, mas também a Deus para tantas pessoas. É o pesadelo não tanto da possibilidade de desaparecer como comunidade e instituto, mas de que um certo sonho, que entusiasmou o coração e multiplicou as energias, hoje não atraia mais algum sonhador, se ainda os há...” (p. 16). Abraçar o futuro com esperança significa, portanto, “olhar o futuro com uma atitude diferente daquele olhar pessimista com o qual costumeiramente observamos gráficos e projeções e fazemos nossas previsões certas e deprimentes” (p. 22).
Diante deste transtorno nasce a profecia: uma vida consagrada de minoria que reencontrará a si mesma e renascerá mais espiritual e simplificada (cf. p. 21). Uma vida religiosa sem poder, pequena e pobre que redescobrirá e fará redescobrir o seu verdadeiro rosto, aquela que quer oferecer resposta para a solidão do homem/mulher e para a sua necessidade de relação (cf. p. 23). Uma vida consagrada fecunda que aprendeu a não corromper sua autoridade no poder (cf. p. 24) e restabelece suas relações com a Igreja e com o mundo (p. 25-35). Vida consagrada que saberá abraçar as pessoas, os homens e as mulheres que vivem neste mundo, nesta sociedade na qual nos é dado por graça viver (cf. p. 38), estimando essa sociedade como locus theologicus, terra para nós do encontro com Deus (cf. p. 39).
Por certo, uma vida consagrada conectada com o mundo (pós-capitalista, pós-marxista, pós-moderno, pós-verdade, etc) e com as pessoas concretas encontrará sua essência dizendo a cada uma destas pessoas que: “no coração do ser humano, há este irreprimível desejo-expectativa de ver o rosto divino, de escutar a sua Palavra, a única que fala de vida eterna, de experimentar o seu amor, o único que pode matar totalmente a sede infinita de amor do coração humano; de gozar daquela felicidade plena e estável que pode ser dada e garantida apenas por Deus, aquele Deus que não quer soldadinhos obedientes, mas filhos felizes. Essa é a essência da vida consagrada: revelar ao homem esse desejo, reconhecê-lo e fazer com que surja também quando é ignorado, perdido, sufocado, contradito, negado, zombado” (p. 43). O “desejo de Deus está presente no mais profundo do coração humano” (p. 65).
Esclarece o autor que abraçar o futuro em relação a esta história e as pessoas concretas que aqui vivem significa: 1) não se sujeitar ao futuro, antes de tudo, nem ir em frente passivamente, sem prepará-lo, deixando que o amanhã caia sobre nós ou nos encontre despreparados (cf. p. 45-46), 2) abraçar o futuro em função das pessoas quer dizer não se preocupar demasiadamente como a nossa sobrevivência ou com os nossos números (cf. p. 46-47); 3) abraçar é sinal de amor, o que significa relação positiva recíproca: é amar este mundo, os homens e as mulheres de hoje (cf. p. 47-48); 4) a convicção de que nesta cultura há potencialidades e intuições fecundas e empenho de nossa parte para compreender bem os valores desta cultura, as aberturas positivas, as passagens abertas para esse advento, uma sensibilidade atenta ao espírito, os vestígios dos sinais dos tempos (cf. p. 48); 5) evitar, de maneira absoluta, os pessimistas, lamurientos, coveiros, profetas de desventura, terroristas do espírito, analfabetos, incapazes de ler no presente a direção do futuro, saudosistas do passado e enraivecidos com o presente e com o mundo inteiro, desiludidos com a Igreja e com seus pastores (cf. p. 48-49); 6) aprender a língua falada hoje: falar a língua de hoje, ou dizer o Evangelho e a nossa espiritualidade em língua e dialeto locais (cf. p. 49); 7) saber que a busca sincera de Deus, passa pela dúvida, pela incerteza, pela luta, até pela rejeição e pela negação ou pela sensação da ausência e do silêncio do Deus misterioso: o consagrado deverá ser um perito nesse tipo de discernimento espiritual (cf. p. 51).
A vida consagrada entende que não é perfeita nem melhor que os outros, apenas destinatária de um dom extraordinário belo e de uma notícia estrepitosa, que não poderá reter para si: a alegria do Evangelho que enche o coração e a vida daqueles que se encontraram com Jesus: com Jesus renasce sem cessar a alegria (cf. p. 52): “a nossa alegria está toda ali, na consciência não só do dom recebido, mas também da graça de poder transmiti-lo aos outros, a graça que se torna paixão e dá coragem e criatividade” (p. 53). Essa paixão “é tão intensa que torna o semeador livre não só da pretensão do resultado, mas livre para não impor nada para ninguém, muito menos a conversão; livre da ânsia de obter, da dependência da resposta, da psicose do sucesso; livre porque esse semeador é muito consciente de que o espírito sabe com abrir um caminho no coração das pessoas” (p. 53). A vida consagrada existe para “semear na alegria, com coração apaixonado e criativo, para que a todos chegue o amor de Deus, a sua amizade, a sua misericórdia” (p. 55).
A vida consagrada do amanhã prepara/forma os consagrados do amanhã, pois, serão estes os “anunciadores do mistério” (cf. p. 63). Trata-se de uma formação misteriosa ou mistagógica, que tem o mistério pascal como ponto de partida e objetivo final e que alcança e muda o coração (cf. p. 65). Formar consagrados que “saibam reconhecer aquele desejo divino sobretudo na própria experiência espiritual, e em todas as formas nas quais ele se apresenta ou se esconde, se declara de modo explícito ou parece ausente, no consciente mas também no inconsciente, na força virtuosa mas também na fraqueza sofrida quando Deus é esperado e, também, quando é temido” (p. 66).
Levando em consideração que o “espiritual está dentro do psicológico” (p. 66), será preciso rever uma ideia de espiritualidade que identifica rápido demais o encontro com Deus com a própria honestidade moral, com as próprias conquistas, com a própria perfeição (cf. p. 68), sabendo que a “graça está nas periferias da vida de cada um” (p. 68) e, entendendo que “há uma ligação sutil e tenaz entre as periferias da vida de cada um: as internas a nós e estritamente pessoais, que são parte de cada um, mesmo se nunca ou pouco visitadas; e aquelas em redor de nós, lugares, ambientes e pessoas mais ou menos distantes de nós: o tipo de relação que alguém estabelece com a sua periferia interior pessoal inspirará de algum modo também a relação com as periferias exteriores a si e ao seu mundo. Se rejeito uma parte de mim, serei levado a fazer o mesmo com qualquer um ou com qualquer situação da minha vida pessoal, social e comunitária” (p. 69). Assim “a não integração interna provoca, antes ou depois, a desintegração externa” (p. 70).
Tendo-se tudo isso em conta, a vida consagrada do amanhã precisa, também, fazer escolhas estratégicas para construir o futuro, escolhas que pareçam não dar resultado de imediato, mas que preparam pessoas sólidas e consistentes, que aprenderam a captar o mistério dentro e fora de si, na força e na fraqueza, capazes de enfrentar o amanhã neste tipo particular de sociedade, livres para escolher o caminho do coração para comunicar-se com o homem e a mulher de hoje (cf. p. 72-73): 1) concentrar o caminho de crescimento na formação da sensibilidade (cf. p. 73); 2) preparar os formadores para serem peritos no percurso educativo-formativo (cf. p. 74); 3) fazer bem os discernimentos vocacionais atentos ao fenômeno da seleção adversa (cf. p. 74); 4) propor caminhos pedagógicos que unam o caminho de busca pessoal da própria verdade com estar diante do mistério de Deus (cf. p. 75); 5) criar projetos de verdadeira formação permanente para a relação, como itinerários formativos para as diferentes idades de vida (cf. p. 76).
Num mundo desesperado, a vida consagrada do amanhã “não estrangula a profecia” (p. 88), mas se faz “construtora da esperança” (cf. p. 77-79), aprendendo a derramar “lágrimas ruidosas” diante de tudo o que ofende o ser humano e diante da qual a ninguém é lícito ficar indiferente, muito menos para quem quer anunciar àquele mesmo ser a sua dignidade, ou seja, que o torna precioso aos olhos de Deus (cf. p. 80). Não podemos ser “silenciosos e cúmplices pela falta de coragem da denúncia” (p. 83), permitindo-nos “ficar de fato neutros e inertes, sem fazer praticamente nada, sem levantar a nossa voz nem nos sentir no dever de criar ou sustentar uma cultura, uma mentalidade e sensibilidade ou percursos pedagógicos, individuais e comunitários sociais, que vão numa direção precisa” (p. 81). Essa “responsabilidade é de todos, ainda que de modos diferentes, pois a queda escandalosa de poucos é comumente consequência da mediocridade de muitos” (p. 84-85). Isto “decidirá se somos missionários ou demissionários” (cf. p. 77-78).
Uma vida consagrada que “educa para a indignação” (p. 87) e é animada por uma verdadeira “sensibilidade missionária capaz de chorar com quem chora, especialmente se esse choro não é de um indivíduo, que faria pouco barulho, mas assume sempre mais as dimensões de um lamento coral e universal, a mais vozes e em plena harmonia, alto e forte do que quem ou que o desejaria calar, lamento de toda a vida consagrada, masculina e feminina, jovem e idosa, de vida ativa ou contemplativa, das grandes ordens e das pequenas comunidades, dos institutos tradicionais às novas formas de vida consagrada até de quem vive consagrado no mundo, como os membros dos institutos seculares” (p. 87).
A vida consagrada do amanhã abraçará uma “formação dramática” (p. 89), ou seja, “a formação para ter em si os mesmos sentimentos, as emoções, os desejos, os pensamentos, os gostos, a sensibilidade, a paixão e com-paixão do Filho obediente, do Servo sofredor” (p. 89). Esse tipo de formação dramática em perspectiva pascal forma o coração que sente compaixão, infunde coragem e confiança e prepara-nos para o futuro. É diferente de uma formação de fachada que forma monstros com corações duros como pedra (cf. p. 89-90).
A vida consagrada do amanhã sabe que a autoridade não poderá mais se corromper em poder. Será a autoridade “da” e “na” compaixão, da com-paixão, da sensibilidade compassiva, na partilha do sofrimento, no efetivo sofrer a dor do outro (cf. p. 90-93), deixando-se “sacudir pelo sofrimento que há em torno de nós, até pelo desespero, a ponto de deixar-se dar uma bofetada pela vida, pela missão, pelos outros” (p. 94). Enquanto, não “há liberdade e capacidade de compaixão, a autoridade se deforma fatalmente em poder” (p. 93).
O futuro não vai cair pronto... O futuro da vida consagrada acontece já, agora fazendo já hoje as escolhas precisas e visadas, dispondo-nos diante do futuro de modo inteligente, rico de esperança e de criatividade, com espírito de empreendimento e de responsabilidade. Para isso, a vida consagrada é chamada a ser caminho de liberdade: a vida consagrada pode esperar ter futuro apenas se demonstrar ser um caminho de liberdade (cf. p. 95); se as comunidades religiosas souberem dar espaço para uma diversidade inteligente: não fazendo das novas gerações enfermeiros e cuidadores dos idosos, nem sendo mimados como filhos únicos, nem asfixiados e obrigados a viver um ritmo frenético das atividades e obras (cf. p. 96-97); sendo a vida consagrada capaz da profecia e da novidade de vida revelando a verdade daquilo que somos e do que deveríamos ser (cf. p. 97-99), pelo trabalho do aprofundamento carismático traduzível em novidade de vida, em estilo relacional, em calor emotivo, em traço humano compreensível por todos (p. 99-100), pela superação de todo sonho de glória e grandeza e pela capacidade de conviver com a menoridade da sua presença (cf. p. 100-102); na superação da clericalização e da paroquialização da vida consagrada e resgate de sua identidade (cf. p. 102-103); pela fidelidade criativa não só pela perseverança repetitiva (cf. p. 103-104), pelo espírito com o qual assumimos as obras (cf. 105-107), pela qualidade do envolvimento com os leigos (p. 107-109).
A salvação da vida consagrada é o Pentecostes, o dom do Espírito que nos abre para o mundo e nos faz aprender línguas novas, para dizer aquela palavra na qual estão contidas as bem-aventuranças e a salvação de cada homem e mulher. Para isso a vida consagrada se vê desafiada a superar a tentação de Babel: o medo defensivo em relação ao mundo, na ilusão de manter sua identidade e de alcançar as alturas de uma perfeição improvável (cf. p. 114-115).
Nestas transições a vida consagrada se verá em menor número, menos obras, menos poder social, menos visibilidade... mas isto será um bem... Cremos nisto!!! (cf. p. 117).
CENCINI, Amedeo. Abraçar o futuro com esperança. O amanhã da vida consagrada. São Paulo: Paulinas, 2019, 120 p., 210 x 140mm – ISBN 9788535645491
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
O amanhã da vida consagrada - Instituto Humanitas Unisinos - IHU