05 Agosto 2019
Depois da contribuição de Christoph Theobald sobre o “Futuro do cristianismo na Europa”, Heiner Wilmer (ex-superior geral dos dehonianos, bispo de Hildesheim na Alemanha) toma a palavra com uma intervenção que traça o perfil “político” da vida consagrada como possível ponto nodal de interlocução com as gerações europeias mais jovens.
O artigo foi publicado por Settimana News, 01-08-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O crédito e o mandato com que o Papa Francisco investiu a vida consagrada desde o início do seu ministério parecem ser pelo menos anacrônicos.
Não só pelo redimensionamento que as ordens e as congregações estão experimentando nas últimas décadas, mas também com relação à própria relação conflitante que caracterizou as épocas eclesiais anteriores à dele.
Por outro lado, tem-se a clara impressão de que esse crédito, e a tarefa inscrita nele, vai muito além de simples razões biográficas – ou seja, do fato de ele ser jesuíta. Nas palavras de Francisco, assim como nos seus gestos, há uma persuasão profunda que investe sobre a vida consagrada precisamente quando esta parece ter superado há muito tempo o ápice da sua presença na Igreja Católica e no mundo cotidiano.
Francisco, como muitas vezes ocorre, não enche de palavras e instruções precisas a anacrônica confiança com a qual ele olha para a vida consagrada. Gerando assim aquele espaço imaginativo mediante o qual ela mesma é chamada a identificar as razões da sua decidida tomada de posição na prática da fé da Igreja proposta por Francisco.
É um exercício estimulante e, ao mesmo tempo, muito difícil, porque demanda liberdade de espírito e coragem evangélica para redesenhar o sentido e o destino de um carisma dentro da história da vida dos homens e das mulheres de hoje. Mas, além disso, a razão do carisma em torno do qual se articula a vida consagrada não se enraíza precisamente nessa liberalidade dos espíritos e no risco de imaginar o cristianismo sempre de novo a partir do Evangelho de Jesus?
Exatamente a figura elementar dos conselhos evangélicos, em torno dos quais converge a boa e necessária pluralidade dos carismas que articulam a vida consagrada, mostra esse laço constitutivo entre a atestação do Evangelho e o desdobramento cotidiano da história humana como “lugar” não só da sua contínua atualização, mas também da sua descoberta pela fé.
Na minha opinião, é nessa perspectiva que se poderia enquadrar fecundamente, e não sem algumas surpresas, a vida consagrada na Europa que bate hoje em nossas portas. Que é predominantemente a Europa dos jovens, das gerações das quais estamos erodindo o futuro da habitabilidade da terra e das quais estamos embolsando ilicitamente os dividendos, deixando-as sem recursos para enfrentar dignamente os seus dias pela frente.
A vida consagrada nessa Europa que virá poderá ter um sentido e, portanto, poderá honrar o crédito recebido de Francisco se souber estreitar um pacto com as gerações mais jovens, aproveitando o potencial evangélico das suas justas aspirações e da sua revolta contra um sistema tecnofinanceiro que monopolizou o poder, abandonando todo dever cívico e civil do seu exercício.
Para tecer a trama desse pacto geracional, a vida consagrada pode recorrer ao tesouro da própria tradição. Uma tradição que conserva potencialidades inesperadas (e talvez esquecidas) que não têm só a capacidade de interagir com os jovens europeus, mas também representam verdadeiros polos de atração.
Em torno desses polos, os nossos jovens podem dar forma concreta ao seu desejo de uma justiça que não se consome e se destina a todos, sem exceção, de relações em que o outro não é, desde a infância, um concorrente a ser eliminado no caminho para o sucesso, e de uma política que redescubra o seu dever de cuidar da qualidade humana da convivência plural de muitos na socialidade em que todos habitamos.
A aposta, na minha opinião, é justamente esta: se a vida consagrada souber criar as condições para esse pacto com as jovens gerações europeias, então o substrato evangélico que flui nesse desejo de justiça, de relações boas e confiáveis, e de compromisso apaixonado por aquilo que é de todos e não só de um ou de alguns retornará em benefício de toda a Igreja do nosso continente.
Precisamente, a vida consagrada não deve fazer piruetas mágicas para poder recorrer às razões que podem tornar plausível o desejo desse pacto para as gerações mais jovens dos nossos concidadãos europeus. Estou convencido de que ela já traz em si um perfil “político” que certamente é de interesse para eles, mas que foi deixado definhando no esquecimento de uma excessiva preocupação consigo mesma.
A reativação convicta desse perfil é a pré-condição para interceptar, no seu campo, as gerações dos jovens e oferecer-lhes práticas concretas para experimentar, debater e pôr à prova o seu desejo.
Um primeiro núcleo “político” poderia ser elaborado em torno da figura da pobreza. Entrarei brevemente em algum exercício de uma possível elaboração, sem a pretensão de ser exaustivo. Acredito que subestimamos a capacidade de interlocução com as gerações mais jovens que está encerrada na crítica à obsessão pela posse como propriedade exclusiva, privada, cultivada para si mesma, que é um dos eixos da vida consagrada.
Os laços fraternos da comunidade religiosa se enraízam nessa disponibilidade a tornar inoperante a posse como instrumento de exercício do poder que estabelece hierarquias e subjugações. Dentro da vida consagrada, se e quando ocorre, a posse nunca é um assunto privado, precisamente nunca acessa ao grau de propriedade exclusiva, mas só é possível na medida em que tem um caráter eminentemente público: isto é, de todos. Precisamente nesse ser-de-todos que, na vida consagrada, com as suas práticas comuns de vida, a posse (como propriedade, privacidade, exclusividade) se torna inoperante dentro de uma sociedade que acabou tornando-o um ídolo ao qual se deve sacrificar tudo.
Não acredito que, na nossa sociedade europeia atual, existam muitos lugares em que se pratique essa radical suspensão da posse e do poder que ela concede, como ocorre cotidianamente na vida consagrada. E é (também) assim que deveremos aprender a apresentá-la aos nossos jovens: como o aguilhão de uma crítica radical ao ídolo que gera separação, para dividir aquela solidariedade original que nos liga uns aos outros no comum da nossa humanidade.
O ser-de-todos é o antídoto mais eficaz contra essa máquina de partição e separação que quer nos fazer acreditar que o outro é principalmente um concorrente e uma ameaça à nossa afirmação.
Os nossos jovens são extremamente sensíveis a isso; eles intuem a urgência disso, mas custam a encontrar modos para tornar concreta essa aspiração deles por uma justiça para todos na destinação das coisas, dos recursos, do ambiente e assim por diante. A inoperância da posse, possibilitada pelo vínculo fraterno da vida consagrada, é exatamente uma daquelas práticas cotidianas (talvez a mais importante hoje) que eles estão buscando e tentando realizar de muitas formas extemporâneas.
A posse tornada inoperante pelo ser-de-todos abre não só a uma destinação pública, não privatista das coisas e das relações, mas também é possível unicamente através de uma reescrita contínua da forma compartilhada e igualitária do viver juntos entre pessoas que não se escolheram.
Nesse sentido, manter a posse inoperante, ou seja, não fazer com que ela se torne chave exclusiva para o acesso e a gestão do poder, implica o envolvimento ativo de cada um daqueles que dão corpo ao ser-de-todos.
Nisso, a vida consagrada aprendeu às próprias custas que o ideal da partilha e da igualdade entre irmãos e irmãs unidos por um mesmo carisma, em vista de uma prática comum de um estilo de vida próprio a cada ordem e congregação, não é um “direito” que se gera por si só como que por mágica. Para esse direito, é preciso lutar e se comprometer pessoalmente, também e principalmente dentro desse espaço comum que é chamado a garantir como tal.
Esse risco e a exposição que ele acarreta exercem hoje nos nossos jovens um fascínio esquecido há muito tempo. E eles estão em busca de práticas de vida que o coloquem em prática cotidianamente. Aqui a vida consagrada, no contexto europeu, tem a sua grande chance de se pôr em jogo, apostando o seu próprio futuro.
De fato, a vida comum representa uma prática de laços e de relações que, na sua fraqueza, vulnerabilidade e conflitualidade, busca dar corpo a uma efetiva partilha de vida dentro da qual se realiza uma circulação de laços igualitários. A vida comum religiosa tem acesso ao seu sentido evangélico quando, entre mil fadigas e pequenezas humanas, pode dizer a si mesma com profunda persuasão: “Não quero viver sem o outro” – esse indivíduo concreto, outro, que eu não escolhi, mas que, a cada dia, posso reconhecer e aceitar como indispensável para o sucesso da obra comum do viver.
É assim que a comunidade religiosa se educa, dia após dia, para se tornar uma célula (imperfeita, certamente, mas real e concreta) de práticas democráticas do estar-juntos e da decisão compartilhada sobre a orientação de uma vida que, sem perder a cor individual daqueles que compõem a comunidade, só pode ser um percurso compartilhado de destinos e de experiências.
Há hoje uma urgência incomum dessas pequenas implementações práticas de uma cultura democrática do viver-juntos entre diferentes. A vida consagrada, com todos os seus limites que ninguém quer negar, é uma célula preciosa dessa tentativa de atualizar cotidianamente uma partilha igualitária que honre a vivência específica de cada pessoa envolvida na vivência comunitária.
Entendida a partir dessa perspectiva, a vida consagrada pode ter um fascínio próprio para os jovens de hoje, na medida em que ela não esteja obcecada com a sua própria sobrevivência, mas saiba se gastar em favor de uma qualidade humana mais elevada do laço democrático entre muitos e as suas inegáveis diferenças. Nisso, ela pode se tornar uma espécie de ginástica, um atravessamento feito junto aos jovens para entregá-los, bem equipados, para a concretização cotidiana do seu desejo de um viver-juntos compartilhável realmente por todos, porque todos podem efetivamente se reconhecer e se sentir reconhecidos nele.
O último aspecto do perfil “político” da vida consagrada na Europa que eu levarei em consideração aqui diz respeito ao poder. O tema é claramente muito vasto e extremamente complexo. Interessa-me destacar alguns aspectos específicos da relação e da gestão do poder na vida consagrada que impactam em uma demanda sincera e, ao mesmo tempo, em um desafio para as instituições do nosso continente por parte das novas gerações.
Mesmo nas suas expressões de proximidade mais radical ao Evangelho de Jesus, a vida consagrada parte da consciência de que o poder existe (também na Igreja e na vida cristã) e não pode ser ignorado como se não existisse. Porque isso significaria derrubar toda barreira de controle e de limitação do próprio poder.
Ao mesmo tempo, porém, a vida consagrada representa na Igreja uma espécie de permanente inquietação que nunca aceitou o poder e o seu exercício como algo meramente óbvio e neutro em relação à palavra evangélica de Deus. De muitos modos e em diversas formas históricas, a vida consagrada buscou formas eficazes de limitar o poder; não deixando nunca de se interrogar sobre o que é e como ele deve ser exercido na comunidade dos discípulos e das discípulas do Senhor.
Os limites dessas tentativas são conhecidos, do paternalismo ao patriarcado – passando por todas as modulações de conivência com os lados mais obscuros do poder hierárquico da Igreja. Menos conhecidas e menos consideradas na economia global da implementação da comunidade cristã, são as formas virtuosas de um confronto à altura do Evangelho com a questão do poder dentro das práticas comunitárias da vida consagrada.
Parece-me possível condensar essas múltiplas formas, ligadas aos lugares e aos tempos da sua idealização, em torno da busca contínua por um modo não hegemônico de exercer o poder (incluindo aqui tanto o fato de que os/as superiores/as não podem agir em solidão, mas estão vinculados/as a um exercício compartilhado de poder através de formas de aconselhamento; quanto a limitação temporal dos mandatos de exercício de posições de poder e o retorno a ser simplesmente um entre todos os outros ao término do mandato).
Desse modo, a vida consagrada busca sempre de novo formas de limitação e controle do poder, pondo-se constantemente dentro do horizonte daquele ato de tornar inoperante a posse (também das posições de poder) através da partilha radical do ser-de-todos, que caracteriza o núcleo profundo da vida comunitária dos religiosos e das religiosas.
Entre milhares de contradições, é claro, a vida consagrada, no entanto, conseguiu manter viva a possibilidade (na Igreja e na sociedade) de uma gestão não hegemônica e sistemicamente provisória do poder. Como algo do gênero é concretamente possível e quais as práticas necessárias para colocar em prática esse modo de exercer poder são um ponto de real interlocução e atração em relação àquelas que são as idealidades e os impulsos mais altos dos nossos jovens quando se trata de imaginar uma comunidade humana (europeia) que possa ser realmente de todos, sendo sentida e praticada por cada um como tal.
A vida consagrada traz em si, querendo ou não, esses traços “políticos” que hoje são capazes de falar (evangelicamente) às gerações mais jovens; seria um pecado epocal não levar isso em conta na reconfiguração que toda ordem e congregação está implementando para enfrentar uma nova época da sua história.
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A vida consagrada na Europa do futuro. Artigo de Heiner Wilmer - Instituto Humanitas Unisinos - IHU