23 Julho 2021
Comentaristas católicos questionaram a ética de uma investigação jornalística feita por um site católico, que levou à renúncia do ex-secretário-geral da USCCB [Conferência dos Bispos dos Estados Unidos], Mons. Jeffrey Burrill, cuja orientação gay foi exposta de forma não consensual, usando dados comprados de um fornecedor.
A reportagem é de Liz Dodd, publicada em The Tablet, 22-07-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A The Pillar, um boletim informativo para assinantes na plataforma Substack, fundada pelos advogados canônicos e ex-editores da Catholic News Agency J. D. Flynn e Ed Condon, comprou dados relativos ao aplicativo de namoro gay Grindr e depois comparou os dados de geolocalização coletados pelo aplicativo com as informações que ela já tinha adquirido sobre o dispositivo móvel, o endereço residencial de Burrill e os endereços de membros da sua família, para alegar que ele tinha visitado bares gays.
A The Pillar publicou suas alegações no início desta semana, quando o Mons. Burrill já havia renunciado. Ele e a USCCB foram alertados sobre a investigação antes da sua publicação.
As mídias católicas e seculares reagiram com preocupação à aquisição e à publicação de dados online pela The Pillar, atitude imensamente controversa. O jornalista Steven P. Millies, do Religion News Service, em um artigo de opinião reproduzido no The Washington Post e no National Catholic Reporter, descreveu a investigação da The Pillar como “insinuação antiética e homofóbica”.
Na reportagem original, a The Pillar alegava que o Mons. Burrill havia se “envolvido em más condutas sexuais em série”. Os autores ainda disseram: “Não há nenhuma evidência para sugerir que Burrill estava em contato com menores ao usar o Grindr. Mas qualquer uso do aplicativo pelo padre pode ser visto como um conflito com o seu papel no desenvolvimento e na supervisão das políticas nacionais de proteção infantil, já que as lideranças da Igreja solicitaram nos últimos meses uma maior ênfase na responsabilidade tecnológica nas políticas da Igreja”.
O padre jesuíta e escritor James Martin descreveu a investigação da The Pillar como uma caça às bruxas. Ele disse: “Jornalismo católico de 2021: espionar um padre (mais precisamente, usando dados de uma fonte não identificada que o espionou) por ter quebrado a sua promessa de celibato, misturando depois homossexualidade com pedofilia, sob o disfarce de uma ‘investigação’ jornalística…”.
O Pe. Martin continuou: “Independentemente da atitude do padre que hoje foi forçado a renunciar, há algum indício de que ocorreu uma verdadeira ‘investigação’? Ou esses escritores simplesmente compraram dados de uma fonte inescrupulosa que possivelmente violou a lei? É preciso perguntar: ‘Cui bono?’”.
“E, ainda, por que não espionar todos que trabalham para a Igreja? Por que parar nos padres? Por que não espionar os professores leigos solteiros? Talvez eles sejam sexualmente ativos. Por que não espionar os agentes de pastoral casados? Talvez eles estejam usando medidas de controle de natalidade. E por que parar aí? Por que não espionar os paroquianos? Quem, no fim, restaria na Igreja? Como escreveu o salmista: ‘Senhor, se levares em conta as culpas, quem poderá resistir?’ (Salmo 130,3).”
O Pe. Martin concluiu: “Essas caças às bruxas, geralmente dirigida contra pessoas vulneráveis que trabalham para a Igreja ou contra pessoas com as quais os autores não concordam ou das quais simplesmente não gostam, deve acabar. Elas não vêm de Deus e não são de forma alguma ‘católicas’”.
A autora católica Dawn Eden Goldstein, que escreveu extensivamente sobre o uso indevido de dados e de redes dentro da Igreja Católica dos Estados Unidos, e que é também uma sobrevivente de abuso sexual, publicou uma longa análise da investigação, com foco particular em quem financiou o projeto e em como a The Pillar obteve os endereços pessoais do clérigo. A sua análise completa está disponível aqui [em inglês].
Antes, ela havia alertado que a The Pillar “abriu um terrível novo precedente para a invasão de privacidade”. O site, “ao usar dados móveis para tentar condenar um padre, entrou em um território verdadeiramente novo para um meio de comunicação católico que afirma fazer jornalismo investigativo. Diga o que quiser sobre [os sites] Church Militant e LifeSiteNews; eu mesmo não considero que os seus textos são jornalismo. Mas, apesar de todos os vazamentos e as falsas acusações que eles já compartilharam, eles nunca investiram em um tesouro de dados de celulares com o propósito de ‘fazer uma pescaria’.
“O artigo da The Pillar faz mais do que alegar que um padre usou um aplicativo de sexo ou que ele estava nas proximidades de um lugar onde os gays se reúnem. Ele afirma abertamente que ele estava ‘envolvido em um padrão de comportamento sexual de alto risco’ – sem qualquer evidência além dos dados telefônicos ‘confirmados’. Eu não sei se esse padre fez algo errado. Talvez ele tenha feito. Talvez ele seja um hipócrita e deveria estar fora do ministério. O que eu sei é que nenhuma mídia católica jamais tentou por conta própria tentar condenar um padre usando esse tipo de dados.”
“E – corrijam-me se eu estiver errada – eu também acho que nenhuma mídia tradicional usou tais dados. Esses dados do Grindr já estão disponíveis no mercado há algum tempo. Por que nenhum meio de comunicação os usou para descobrir quais políticos podem estar traindo seus cônjuges? Algo está errado aqui. Então, por que um meio de comunicação supostamente católico, administrado por advogados canônicos (que aparentemente precisam reler o cânone 220), usa dados de celulares (comprados e analisados a um custo de milhares de dólares, financiados por doadores anônimos) de uma forma que nenhum outro meio de comunicação jamais fez? Ninguém quer ver padres abusadores permanecerem no ministério. O que a The Pillar e seus financiadores anônimos estão fazendo apela ao nosso desejo natural de ver pessoas más tornando-se inofensivas. Mas, de fato, esse ‘jornalismo’ abre um precedente terrível. Isso prejudica o processo judicial – e, portanto, prejudica as vítimas.”
Outros jornalistas católicos também criticaram a investigação da The Pillar. O autor Michael J. O’Loughlin escreveu: “A história publicada pela The Pillar, que se apresenta como um site de notícias católico, continha mais de 1.000 palavras insinuando que um adulto gay, usando um aplicativo de namoro, estava de alguma forma propenso a abusar de menores, uma sugestão nojenta”.
O biógrafo papal Austin Ivereigh, respondendo à análise de Goldstein, alertou: “Que novo poder para destruir vidas e carreiras é esse? Quem pode usá-lo? Quem paga? Cui bono? Se eu bem entendi, os católicos de direita estão pagando milhares de dólares em aplicativos de sexo gay. Alguém deveria ficar sabendo disso”.
Mike Lewis, fundador do site Where Peter Is, escreveu: “Se esse é um exercício moralmente correto para servir ao interesse público, estou ansioso para ler a próxima reportagem [da The Pillar] que revelará quem fez e quem pagou por esse conjunto de dados. Como eles foram obtidos, para que outros pudessem prestar esse serviço público?”.
Em uma longa declaração postada no Twitter, os fundadores da The Pillar responderam a algumas das preocupações levantadas por católicos e por outros meios de comunicação. Eles disseram que estavam cientes da seriedade das acusações e do equilíbrio entre a privacidade individual e o interesse e a responsabilização públicos, e “deliberamos sobre isso à luz das questões particulares, da cultura, da estrutura e das normas morais e sociais da Igreja Católica, e confiamos na nossa deliberação”.
Eles responderam às preocupações de que haviam alegado uma ligação entre o fato de ser gay e o abuso sexual infantil, dizendo: “Não há absolutamente nenhuma indicação de que a liderança em questão estava usando o aplicativo para qualquer finalidade relacionada a menores, e não gostaríamos de insinuar qualquer coisa em contrário”.
“Mas as forças da ordem, os defensores da proteção infantil e os acadêmicos têm alertado repetidamente que os aplicativos de relacionamento baseados em localização representam riscos de exploração intencional e não intencional e de abuso de menores. O uso em série e não divulgado de tal aplicativo para qualquer finalidade, por parte de uma pessoa encarregada de ajudar na responsabilidade tecnológica e na reforma, parece ser um assunto que merece a consideração pública, especialmente à luz das promessas da Igreja de transparência, responsabilização e reforma.”
Em um memorando aos bispos, o presidente da USCCB, o arcebispo José Gomez, disse que aceitou a renúncia do Mons. Burrill imediatamente.
“O que foi compartilhado conosco não incluía acusações de má conduta com menores. No entanto, a fim de evitar que isso se torne uma distração para as operações e trabalhos da Conferência em curso, o monsenhor renunciou”, disse o arcebispo.
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EUA. Site católico que usou dados de celular para denunciar monsenhor “abriu um novo precedente terrível” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU