01 Julho 2021
No museu etnológico do Vaticano está preservado o mais antigo artefato ameríndio de arte cristã: um púlpito de madeira em forma de concha que pertencia a Bartolomeu de Las Heras, o frade que evangelizou as tribos caribenhas com Cristóvão Colombo. O sincretismo desse artefato incorpora o papel ambíguo da Igreja Católica em relação aos nativos americanos. Isso também foi tratado na cúpula dos bispos católicos estadunidenses, embora ofuscado pela questão da coerência eucarística de Biden.
Depois de três dias de debates, em 18 de junho os bispos autorizaram a publicação de novas diretrizes para um ministério reservado para os nativos americanos e do Alasca: "Os líderes dos nativos têm manifestado até agora sua preocupação com a falta de interesse para um ministério dedicado a eles”, declarou James Wall, bispo da diocese de Gallup, Novo México. A voz de Mons. Wall se junta ao dos bispos canadenses que recentemente convidaram o Papa Francisco a apresentar um pedido formal de desculpas após a descoberta dos restos mortais de 215 menores nativos encontrados no jardim de uma escola residencial católica em Kamloomps, na Columbia Britânica. Segundo os nativos e alguns bispos, o "caminho de reconciliação e cura" mencionado pelo Papa Francisco no Angelus de 6 de junho é inútil sem as desculpas formais do chefe da Igreja Católica.
A reportagem é de Marco Grieco, publicada por Domani, 30-06-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Sue Caribou, 50, sofre de pneumonia crônica. Ela tinha sete anos quando foi abusada por missionários que deveriam educá-la em um colégio residencial católico em Manitoba: "Eu era jogada em uma ducha fria todas as noites, depois de ser estuprada", ela confessou ao Guardian em 2015. Os corpos recentemente desenterrados são mais uma confirmação de uma vertente de violência e abusos que atingiu os nativos desde o século XVIII, com a complacência dos missionários católicos.
Segundo a Comissão para a Verdade e Reconciliação (TRC), pelo menos 6 mil menores morreram em colégios residenciais canadenses entre 1867 e 1996: uma estimativa para baixo de acordo com as autoridades, a ponto do presidente da TRC, o magistrado Murray Sinclair, não ter escrúpulos em falar de "genocídio cultural" perpetrado pelo governo e pela Igreja: "Aqueles momentos difíceis representam um forte apelo para nos afastarmos do modelo colonizador e também das colonizações ideológicas de hoje", lembrou o papa em 6 de junho. No entanto, já seis anos atrás, a TRC havia pedido ao pontífice um pedido de desculpas, que nunca chegou.
É para virar a página que agora alguns bispos juntam-se à voz dos nativos após uma primeira justificativa de silêncio. Se no passado, D. Lionel Gendron, então presidente dos bispos canadenses, havia adiado um pedido formal de desculpas para uma visita apostólica nos moldes do que Bergoglio já havia feito a Santa Cruz na Bolívia em 2015, por enquanto ainda não há uma viagem programada. Também falou em pedido de desculpas D. Thomas Dowd, bispo de Sault Sainte Marie, que está trabalhando na criação de uma delegação que possa se encontrar com o papa no final do ano.
A Ministra canadense Carolyn Bennett disse sem panegíricos: "Devemos assumir a responsabilidade pelos danos que foram feitos, não apenas às crianças que foram levadas, mas também às famílias deixadas para trás e o que aconteceu com elas". Os Jesuítas do Canadá são da mesma opinião: “Reconhecemos que é importante para a igreja compreender a história e o legado dos conflitos religiosos nas famílias e comunidades indígenas. A igreja tem responsabilidades para mitigar os conflitos e prevenir a violência espiritual”, explicam a Domani.
Nove anos após a canonização de Kateri Tekakwitha, a primeira santa ameríndia, a igreja ainda precisa acertar as contas com um passado em que a evangelização era o léxico de um colonialismo espiritual. A conferência dos bispos estadunidenses e os pedidos dos canadenses mostram a decepção com um pontífice que, devido às suas origens argentinas, supunha-se mais resolvido sobre o tema. No entanto, os primeiros a reconhecer as limitações de seu passado foram os jesuítas, admitindo, por exemplo, sua responsabilidade na venda de 272 escravos em 1838 para pagar as dívidas da nascente Universidade de Georgetown: hoje seus descendentes foram simbolicamente ressarcidos por um fundo criado ad hoc como um ato de reparação e tomada de consciência da própria responsabilidade: "Desde o final dos anos 1980, quando os jesuítas tomaram consciência dos abusos físicos perpetrados em sua escola residencial, muito foi feito", explicam os jesuítas canadenses a Domani.
“No evento nacional em Montreal em 25 de abril de 2013, o Padre Winston Rye fez um pedido de desculpas e entregou uma declaração de reconciliação aos sobreviventes das escolas residenciais espanholas presentes”. No Canadá, os Jesuítas não só colaboram em estreito contato com a TRC, mas também apoiam a recuperação das línguas e culturas indígenas: “Também estamos empenhados em respeitar a espiritualidade indígena, conforme solicitado pela comissão. A igreja deveria desempenhar um papel importante na educação da história dos nativos”.
Para a companhia no Canadá, portanto, um pedido de desculpas formal é necessário: “Acreditamos que o pedido de desculpas coletivo de toda a igreja no Canadá seria uma contribuição importante para a cura dos impactos da colonização. O presidente nacional da Assembleia das Primeiras Nações, Perry Bellegarde, disse que seria um sinal de respeito. O sincero pedido de desculpas do Papa Francisco ajudaria os sobreviventes e suas famílias a realizar os passos em direção à cura”, explicaram.
Para a Igreja Católica estadunidense, no entanto, nem sempre é possível separar o preto do branco. O Papa Francisco viveu isso pessoalmente, às vésperas de sua primeira viagem apostólica aos Estados Unidos, com a polêmica canonização de Frei Junipero Serra. O missionário do Novo Mundo, que pontilhou a Califórnia com missões ao longo de todo o século XVIII, não só ostentava o primado de ter batizado mais de 6.000 nativos, mas também de ter aberto o caminho para os ataques e violências dos conquistadores espanhóis e portugueses nas terras virgens: dos 80.000 nativos batizados até o século XIX, 60 mil morreram de dificuldades e doenças, e um terço eram crianças. A polarização que paira em torno da figura do religioso de San Diego é suficiente para tocar a complexidade do papel da Igreja Católica nas Américas.
Bergoglio sabe bem que, como lembra Austen Ivereigh em Tempo di Misericordia, na época em que era arcebispo de Buenos Aires era "profundamente engajado a favor da unidade do continente" na linha da utopia da pátria grande teorizada pela filósofa argentino Amelia Podetti. Essa busca de unidade na multiplicidade será depois encarnada no Conselho dos Bispos latino-americanos (Celam), criado pelo Papa Pio XII para superar a atrofia das várias igrejas nacionais. Fortalecido por essa ideia “poliédrica” da Igreja Católica, em Santo Domingo (1992) o Celam fechou o parêntese da teologia da libertação, à qual, entretanto, cabe o mérito de ter dado um novo impulso à renovação das relações entre as hierarquias eclesiásticas e os povos autóctones.
Em abril passado, a Santa Sé beatificou os mártires de Quiché: dez testemunhas religiosas e leigas mortas na guerra civil que devastou a Guatemala entre 1980 e 1991. Naqueles anos, a Igreja Católica pagou para ter assumido as instâncias e os direitos dos povos nativos. A irmã Dianna Ortiz era o rosto daquela igreja combativa a serviço dos pobres e em 1989 pagou com a tortura e as violências a sua filiação aos movimentos indígenas. A religiosa carregou um peso tão grande que somente anos de terapia conseguiram trazer à tona aquelas memórias trágicas que sua mente havia temporariamente removido: "Depois de fugir, ela dedicou o resto de sua vida na defesa dos direitos humanos na Guatemala", lembra a Domani a sua amiga Marie Dennis, até 2019 co-presidente da Pax Christi International: “A irmã Dianna viveu com a lembrança da tortura pelo resto de sua vida. Naqueles anos, a Igreja Católica estava ao lado das comunidades indígenas das ilhas, e, portanto, era considerada subversiva pelo governo. Muitos líderes católicos e missionários perderam sua vida por isso”, admite.
Para relembrar aquelas páginas sombrias, as dioceses da Guatemala instituíram o Remhi, um projeto de resgate da memória histórica que analisa os testemunhos de sobreviventes das torturas, reconstruindo vozes e rostos. Hoje, diante da escola Kamloops, uma cerca reúne 215 laços vermelhos, um para cada criança desenterrada da vala comum. Da mesma forma, os californianos estão lutando para erguer cruzes na baía de San Diego e restaurar a dignidade aos rostos sem nome dos indígenas que morreram nas missões. O pedido de desculpas apresentado ao papa pode, portanto, ter um poder taumatúrgico sobre as feridas das minorias, que nem as canonizações nem as vagas condenações das ideologias poderão jamais curar.
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A igreja de Francisco tem uma conta a acertar com os povos nativos da América - Instituto Humanitas Unisinos - IHU