26 Abril 2021
Hoje na Catedral de Santa Cruz de Quiché a beatificação de dez outros sacerdotes e leigos mortos em Quiché durante o período do genocídio. Enquanto, 25 anos após o fim do conflito, a pobreza e a migração continuam semeando a morte.
A reportagem é de Daniela Sangalli, publicada por Mondo e Missione, 23-04-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
A Guatemala celebra hoje a beatificação de um novo grupo de mártires de nosso tempo. São eles o Padre José Maria Gran Cirera, o Padre Faustino Villanueva, o Padre Juan Alonso Fernández, sacerdotes espanhóis da Congregação do Sagrado Coração de Jesus e sete leigos, incluindo um menino de 12 anos, cujos decretos sobre o martírio foram promulgados pelo Papa em janeiro de 2020 e agora são assim propostos à veneração da Igreja universal, por sua fidelidade ao Senhor, a serviço e defesa dos mais pobres.
Los Mártires de Quiché, Guatemala (Foto: Vatican News)
“Eu absolutamente não quero que me matem, mas não estou preparado, por medo, para deixar essas pessoas. Mais uma vez, penso: quem poderá nos separar do amor de Cristo?”. Assim, o padre Juan Fernández escreveu a seu irmão em 28 de janeiro de 1981. Depois de apenas 15 dias, ele foi capturado, torturado e assassinado com três tiros na cabeça.
Há alguns anos, durante uma viagem à Guatemala, fui a Quiché, na região montanhosa chamada “triângulo Ixil”; queria conhecer aquela área devastada pela guerra civil, encontrar os sobreviventes que ainda têm feridas profundas na pele e na alma e rezar nos túmulos das testemunhas da fé que ali foram assassinados. Foi uma espécie de peregrinação nas dobras da morte e da dor, mas também da resistência e da esperança de uma Igreja jovem, indígena, fiel até ao dom da vida. Uma homenagem à Igreja dos mártires, o mais conhecido dos quais era o então bispo Juan José Gerardi, assassinado em 1998 pelo precioso trabalho de resgate da memória histórica.
Na igreja de Chajul lembro-me de um simples túmulo com três nomes: Domingo, José Maria, Tomas, com a referência ao Evangelho de João: "Ninguém tem maior amor do que este: dar a vida pelos seus amigos" (Jo 15,13). O padre José Maria Gran Cirera foi assassinado junto com seu sacristão, Domingo del Barrio Batz, ao retornar de uma visita às comunidades indígenas em 4 de junho de 1980. Tinha 35 anos. Ele escreveu sobre sua missão: “Estou redescobrindo o Natal. Jesus veio para dar voz e esperança a todos os seres humanos, especialmente aos mais pobres e desiludidos da vida. Desde que estou entre essa população de Quiché, entendo isso cada vez mais. As pessoas me ajudaram a viver a esperança e a alegria que vêm de Jesus”.
Essas palavras haviam me impressionado muito, pensando no clima muito pesado em que viviam a população e os missionários, quando possuir uma Bíblia ou rezar o terço significava arriscar a vida. A diocese de El Quiché havia publicado em 2003 o livro "Dieron la vida", que recolhia os testemunhos de numerosos cristãos assassinados nos anos terríveis vividos pela Guatemala entre 1980 e 1991: catequistas, líderes comunitários, sacristãos, membros da Ação Católica, promotores de saúde, leigos engajados na evangelização e promoção humana, ajudando o povo a carregar a cruz e a manter viva a chama da fé e da esperança.
O que resta deste grande martírio na Guatemala de hoje? As pessoas ainda vivem na pobreza desumana, parece que não mudou muito desde que os acordos de paz encerraram a guerra interna em 1996. A violência não é mais tão evidente, mas ainda está presente na sociedade. Segundo dados do UNICEF, 49,8% das crianças guatemaltecas sofrem de desnutrição crônica, o que torna a Guatemala o primeiro país da América Latina (o 6º do mundo) com esse problema; enquanto dados oficiais do Ministério do Desenvolvimento Social indicam que a pobreza atinge mais de 60% da população.
Em novembro, a América Central foi atingida pela passagem devastadora de dois furacões tropicais, Eta e Iota. A Guatemala foi o país mais afetado: segundo cálculos oficiais foram mais de 150 desaparecidos, com a aldeia indígena de Quejáj totalmente arrasada pela lama, algumas avalanches devidas à fúria do furacão destruíram pontes e estradas, cortando o acesso às comunidades por muito tempo.
Aqueles que sobreviveram perderam tudo: casa, campos e animais. Em um comunicado da Conferência Episcopal, os bispos apresentaram a situação do país: “Contemplamos a dor de tantos irmãos, com seus sofrimentos e dores, seus sonhos destruídos pela pandemia, as catástrofes naturais, a pobreza crescente, o constante drama migratório regional. Junto com esses males, sentimos a deplorável e persistente corrupção administrativa, a crescente falta de confiança nas instituições e em seus funcionários, o mau exemplo de real desinteresse pelo bem de nossa nação. Tudo isso suscita incerteza e desânimo para pensar o futuro que espera a maioria dos jovens”. Perante estas emergências, no entanto, os bispos também evocaram uma nota de esperança: “Ao mesmo tempo, contemplamos o testemunho de generosidade e caridade cristã de muitas pessoas para com as vítimas das tempestades tropicais Eta e Iota, e da ainda presente de emergência sanitária da pandemia".
O ano de 2020 terminou com protestos generalizados causados pela aprovação da Lei do Orçamento de 2021, duramente reprimida pela polícia. Até os bispos manifestaram preocupação com uma decisão que fará aumentar a dívida do país, com cortes nos programas sociais e de saúde, incluindo hospitais e centros de saúde, precisamente no momento da pandemia.
Beatos Mártires de El Quiché (Foto: Missionários do Sagrado Coração)
“O endividamento do país está atingindo níveis francamente preocupantes, e a dívida de hoje é a fome do amanhã”.
“O Senhor identifica-se a tal ponto com o seu povo que tudo o que fazemos aos pobres, fazemos a ele. Partindo da nossa opção preferencial pelos pobres, e em solidariedade com eles, damos razão de nossa esperança em Jesus Ressuscitado, porque o reconhecemos presente no nosso povo”. Assim escreveram os agentes pastorais de Quiché na década de 1980, sabendo que eram enviados como cordeiros entre lobos, segundo o ícone do Evangelho de Mateus. Palavras atuais ainda hoje e que se resumem no lema episcopal de Álvaro Ramazzini, bispo de Huehuetenango, que foi nomeado cardeal no consistório de outubro de 2019: "¡Ay de mí si no evangelizo!" ("Ai de mim se não evangelizo!").
Ao receber a púrpura cardinalícia, Ramazzini afirmou considerá-la um sinal do amor do Papa pela Guatemala, país que sofreu muito na sua história recente, e sobretudo que a considerou uma oportunidade de dar voz a tantos esquecidos e pessoa pobre. O bispo de Huehuetenango é conhecido na Guatemala e na Europa como um pastor atento às situações de pobreza e injustiça e defensor dos direitos humanos, a partir da Palavra de Deus. Uma das questões que o preocupam mais especificamente o coração é o problema da migração, que ele conhece muito bem por ter sido bispo por 24 anos em San Marcos, na fronteira com o México. Há tempos empenhado com a defesa dos migrantes que buscam uma vida digna nos Estados Unidos, Ramazzini denunciou também as condições de miséria em que vivem os camponeses guatemaltecos e as injustiças sociais de que são vítimas e que os levam a partir.
Ele sempre repete que conhecer a realidade e o sofrimento dos migrantes nunca o deixou indiferente, porque nos migrantes ele vê a própria presença de Jesus e considera sua proteção como parte integrante de sua pastoral. Por isso, também se empenhou com os bispos do México e dos Estados Unidos, pedindo que a reforma migratória se torne uma realidade.
Diante do massacre de 19 migrantes guatemaltecos, mortos a tiros em 23 de janeiro em Taumalipas, no México - e cujos corpos foram encontrados carbonizados - o cardeal Ramazzini, juntamente com a rede Clamor (que reúne os órgãos eclesiais latino-americanos que tratam de migração), expressou dor e indignação com este novo ato de violência perpetrado por grupos do crime organizado. Na carta enviada aos presidentes do México e da Guatemala e aos ministros do exterior dois países, ele expressa "grande preocupação pela situação de todos os migrantes que atravessam o território nacional mexicano, uma vez que a política migratória e sua gestão atual até agora não impediram que migrantes e refugiados fossem vítimas do crime organizado em sua tentativa de atravessar o território mexicano, quando por motivos de pobreza e perseguição tentam sair de seus países de origem e salvaguardar suas vidas e de suas famílias”.
Assim como os mártires que em breve serão beatificados não abandonaram sua missão mesmo diante das ameaças das forças militares e paramilitares, também hoje o cardeal Ramazzini, ameaçado de morte ao longo dos anos, leva adiante corajosamente a evangelização e denuncia as injustiças. “Ai de mim se não evangelizo!”
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Guatemala, os mártires e o país de hoje - Instituto Humanitas Unisinos - IHU