18 Setembro 2015
Quando o Papa Francisco chegar em Washington, grande parte da atenção da mídia, sem dúvida, vai se concentrar no seu discurso a uma sessão conjunta do Congresso – no qual particularmente as autoridades eleitas serão repreendidas pelas palavras do pontífice. Menos atenção será dada à polêmica em torno da canonização de Junípero Serra por parte do papa, que irá ocorrer na noite anterior na Basílica do Santuário Nacional da Imaculada Conceição.
A reportagem é de Jamie Manson, publicada no sítio National Catholic Reporter, 16-09-2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Serra, um frei espanhol do século XVIII, que fundou as primeiras missões na Califórnia, é creditado pela Igreja Católica por fazer proselitismo e batizar os povos indígenas.
Mas a história de Serra está enredada com detalhes perturbadores, muitos dos quais são bem apresentados por Vinnie Rotondaro, do NCR, no seu recente artigo intitulado "Quão manchada está a auréola de Serra?".
Rotondaro entrevistou Elias Castillo, que passou seis anos pesquisando Serra e os registros das missões da Califórnia, antes de escrever o seu recente livro Cross of Thorns: The Enslavement of California’s Indians by the Spanish Missions [Cruz de espinhos: a escravização dos índios da Califórnia pelas missões espanholas].
Para Castillo, assim como para Valentin Lopez, presidente do Grupo Tribal Amah Mutsun dos índios Costanoan/Ohlone, Serra era um fanático religioso, cujo principal objetivo era salvar as almas dos índios, a quem ele via como selvagens em desesperada necessidade de salvação mediante a Igreja.
"As estatísticas mantidas pelos freis eram muito, muito detalhadas", diz Castillo ao NCR. "Registros de punição nomeavam os índios, e quantas chibatadas eles receberam, e por que eles estavam sendo punidos. Alguns deles estavam sendo punidos simplesmente por pedirem mais comida." Eles eram frequentemente chicoteados por tentar fugir das missões.
Os povos indígenas, que sobreviveram mais de 10.000 anos na terra que hoje chamamos de Estados Unidos, viram a sua população dizimada pelas punições, por doenças europeias, pelo trabalho duro e pela desnutrição forjados pelas missões.
Como foi amplamente reportado em maio, durante a sua viagem à Bolívia, o Papa Francisco ofereceu um pedido de desculpas pelo tratamento dado pela Igreja aos índios.
Grande parte do pedido de desculpas de Francisco foi uma repetição das palavras de contrição do antecessor João Paulo II aos povos nativos em 1992 (durante uma viagem à República Dominicana) e durante o Jubileu do ano 2000:
"Eu digo a vocês com pesar: muitos pecados graves foram cometidos contra os povos nativos da América em nome de Deus", disse Francisco durante a sua viagem à Bolívia em julho. "Como São João Paulo II, peço que a Igreja – e cito o que ele disse – 'se ajoelhe diante de Deus e implore o perdão para os pecados passados e presentes dos seus filhos'."
Como muitos dos apologistas de Serra, Francisco insiste que o frei espanhol foi um defensor dos índios contra os colonos e os soldados. É um argumento que, segundo Steven Hackel, biógrafo de Serra, não compensa os danos cometidos em última instância contra os povos nativos.
"Podemos apontar para certos momentos no registro histórico quando Serra realmente protegeu os índios, mas eu acho que a história mais ampla é aquela em que as suas políticas e os seus planos levaram a uma enorme dor e sofrimento, a maior parte dos quais de forma não intencional da sua parte, entre os povos nativos", disse Hackel recentemente à Al-Jazeera America.
"Não há dúvida de que o seu objetivo era alterar radicalmente a cultura indígena, fazer com que os índios não falassem as suas línguas nativas, praticar a cultura espanhola, transformar os padrões das crenças nativas de modo a torná-los muito menos nativos. Ele realmente queria eliminar muitos aspectos da cultura nativa", acrescentou Hackel.
Mesmo diante de uma história tão preocupante, o Papa Francisco fervorosamente apressou o processo de canonização de Serra a tempo para a sua visita aos Estados Unidos.
O papa programou a canonização antes que a Congregação para as Causas dos Santos tivesse concluído o seu processo de habilitação de Serra e antes que um segundo milagre fosse atribuído à sua intervenção.
O escritório de criação de santos do Vaticano aprovou a canonização Serra quatro meses depois que o papa declarou que faria dele um santo. De acordo com a Associated Press, "um oficial da Congregação reconheceu que seria difícil para os membros fazer de outra forma, já que a cerimônia de canonização já estava agendada".
Por que o Papa Francisco, defensor dos pobres e sofredores, demonstra um desejo tão forte de canonizar um homem que, como a história sugere fortemente, abriu as portas para tanto abuso e opressão?
Falando aos seminaristas do Colégio Norte-Americano em Roma, em maio, Francisco elogiou Serra como "parte de um corpo missionário que 'saiu para todas as periferias geográficas, sociais e existenciais' para espalhar o Evangelho".
"Tal zelo nos emociona", acrescentou Francisco.
Francisco deixou claro o seu desejo por uma nova forma missionária do catolicismo desde o primeiro parágrafo da sua exortação apostólica Evangelii gaudium ("A alegria do Evangelho"):
A Alegria do Evangelho enche o coração e a vida inteira daqueles que se encontram com Jesus. Quantos se deixam salvar por Ele são libertados do pecado, da tristeza, do vazio interior, do isolamento. (…) Quero, com esta Exortação, dirigir-me aos fiéis cristãos a fim de os convidar para uma nova etapa evangelizadora marcada por esta alegria (...).
Depois, no texto, o papa claramente expressa a sua preocupação com a crescente "desertificação espiritual", que é o resultado da tentativa por parte de algumas "sociedades que querem construir sem Deus ou que destroem as suas raízes cristãs. Lá, 'o mundo cristão está se tornando estéril e se esgota como uma terra excessivamente desfrutada que se transforma em poeira'".
A preocupação de Francisco sobre a eliminação da identidade cristã foi levantada novamente na Bolívia, no mesmo discurso em que ele pediu desculpas pelo tratamento aos povos indígenas.
"Alguns poderes se empenham em apagar" o cristianismo, disse ele, "talvez porque a nossa fé é revolucionária, porque a nossa fé desafia a tirania do ídolo dinheiro."
Francisco advertiu ainda mais contra a "nova forma de colonialismo" que tem fomentado a desigualdade, o materialismo e a exploração dos pobres.
A estranha ironia é que Francisco está usando Serra, um missionário que procurou apagar a cultura e a religião de um povo, para tentar combater o apagamento do cristianismo. Ele está usando o pai fundador do colonialismo religioso para combater o colonialismo secular.
Na preparação para a canonização de Serra, alguns têm argumentado que, para ser santo, você não precisa ser perfeito, você tem que ser apenas santo.
Mas somos duramente pressionados para encontrar muita graça ou santidade na história de Serra. No Evangelho de Mateus, Jesus diz: "Pelos seus frutos vocês os conhecerão". Quais são os frutos do trabalho de Serra e dos freis que o seguiram?
Os povos nativos de hoje sofrem níveis desproporcionais de pobreza, depressão e dependência. Especialistas dizem que isso é uma prova de que o trauma infligido há séculos tem sido passado de geração em geração. A perda das suas identidades, culturas e espiritualidades é uma "ferida da alma" causada em grande parte pelas ações da Igreja. Esse é o "bom fruto" que Jesus nos chamou a encontrar?
Certamente, o Papa Francisco poderia ter encontrado um modelo melhor para a evangelização, que pudesse falar para os anseios e as agonias contemporâneos das Américas. Por que não levar em consideração a Ir. Dorothy Stang, cujo amor pelo Evangelho chamou-a a defender os povos indígenas do Brasil e que foi martirizada enquanto lutava contra as forças capitalistas que continuam devastando a Amazônia?
A canonização de Serra remonta a uma piedosa, se não perigosa, compreensão da evangelização e oferece provas dolorosas de que a Igreja institucional ainda não consegue aprender com os seus erros.
Pior de tudo, ela vai traumatizar novamente um povo já despedaçado e abandonado.
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O que leva o Papa Francisco a canonizar Junípero Serra? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU