28 Junho 2021
No dia 25 de junho do corrente ano, acontecerá, no Vaticano, um encontro que girará em torno de Martinho Lutero: católicos e luteranos procuram (re)conciliar suas visões sobre esta figura do cristianismo. Nós pedimos a dois especialistas, Michel Deneken e David Gilbert, para que nos apresentassem suas análises.
A reportagem é de Sixtine Chartier e Sophie Lebrun, publicada por La Vie, 24-06-2021. A tradução é de André Langer.
Há 500 anos, em 1521, Martinho Lutero era excomungado. O frade, fundador do protestantismo, é hoje uma figura que os dois ramos do cristianismo percebem de forma diferente. No final de maio de 2021, um grupo de teólogos católicos e luteranos alemães pediu ao Papa Francisco que suspendesse essa excomunhão. Ao mesmo tempo, um pedido foi feito à Federação Luterana Mundial para que retire o termo “Anticristo” usado para designar os papas desde a Reforma.
No dia 25 de junho de 2021, será realizado, em Roma, um encontro entre a Santa Sé e a Federação Luterana Mundial. Nesta ocasião, o Vaticano poderá reabilitar Lutero? Segue a análise de dois especialistas: o teólogo Michel Deneken, sacerdote, especialista nas relações entre a Igreja Católica e as Igrejas da Reforma e presidente da Universidade de Estrasburgo; e David Gilbert, professor do Instituto Católico de Paris e especialista na Reforma.
“Na tradição católica, Martinho Lutero era visto como um rebelde que queimou a bula papal e rompeu conscientemente com a Igreja Católica. Hoje, alguns, mais conservadores entre os católicos, ainda lamentam o fato de que a instituição se aproxime das suas teses e as integre ao patrimônio romano. Mas o julgamento de bruxaria acabou. Nos últimos anos, uma outra imagem de Lutero se impôs, a de um teólogo e testemunha do Evangelho. Em vários textos oficiais escritos por bispos, destaca-se o caráter evangélico de Lutero.
A questão da reabilitação de Martinho Lutero tornou-se lancinante no período recente do cristianismo moderno. Já em 2000, o teólogo Hans Küng havia embarcado na batalha nessa direção porque, para muitos católicos pós-Vaticano II, a Igreja Católica finalmente reconheceu tudo o que Lutero denunciou na época e iniciou reformas nesse sentido.
Devemos ir tão longe a ponto de reabilitá-lo? É mais complicado do que parece... A história mostra que é viável: Galileu foi reabilitado por João Paulo II, mas, neste caso, estamos diante de um processo contra um homem que ia contra a doutrina oficial de sua época, e não diante de um cisma da Igreja.
É possível suspender a excomunhão contra ele? Lutero voltaria então a ser um católico que tinha uma opinião sobre a organização de sua Igreja: menos Papa e mais Evangelho. Na década de 1980, uma comissão luterana-católica trabalhou sobre as excomunhões recíprocas e os anátemas que marcaram a história da separação depois de Lutero: a conclusão foi que ninguém queria um levantamento. Nas suas explicações, os membros sublinharam que o que era condenável no século XVI continua a ser ainda hoje, mas manifestaram o desejo de continuar a trabalhar juntos, para o bem da vida concreta das Igrejas de hoje.
Ainda vemos tibieza entre as autoridades católicas para falar em reabilitação. Em 2017, nos 500 anos da Reforma, assim como no ano anterior, quando o Papa Francisco visitou Lund, na Suécia, nada foi dito especificamente sobre Lutero. O contexto católico também pode explicá-lo: a Igreja Católica vive uma profunda crise de identidade, na qual as questões ecumênicas não são prioritárias, inclusive para o Papa Francisco.
Mas Martinho Lutero não é mais uma figura tão bem definida e reconhecida por todas as correntes do protestantismo como no passado. Uma parte dos luteranos de cultura germânica, mais conservadores, continua a se agarrar a ele, mas no lado evangélico, principalmente na França, onde essa corrente está em plena expansão, não há referências a ele. Certos aspectos de seus discursos são questionados em uma perspectiva histórica, como sua atitude em relação às mulheres ou aos judeus.”
“Hoje, fala-se de uma ‘reabilitação’ de Lutero. Mas o que se quer dizer com essa expressão? Martinho Lutero, batizado e ordenado na Igreja Católica, não foi excluído da Igreja por sua excomunhão. Na época, como agora, a sanção da excomunhão não pretendia ‘afastar manu militari da Igreja’ um fiel, mas induzi-lo a se retratar! Mas Lutero não podia, explicou na época: ele estimava que teria pecado contra Deus e sua consciência. Lutero nunca considerou seu gesto como uma falta, nem sentiu que devia se arrepender: portanto, não se pode imaginar o levantamento da sua excomunhão, o que aliás não teria sentido, uma vez que está morto.
Também não se pode esconder certas palavras de Lutero: suas invectivas contra o papado de Roma ‘inventado pelo Diabo’, seus comentários inflamados contra outros protestantes, seus escritos sobre os judeus...
Mas, em ambos os lados, católicos e protestantes buscam uma convergência em uma apreciação matizada do personagem e de sua obra. O julgamento de Lutero, do lado católico, amenizou-se no século XX, particularmente graças a Yves Congar, teólogo dominicano, excelente conhecedor da história das Igrejas na Alemanha.
Após a Segunda Guerra Mundial, os pesquisadores protestantes se debruçam de maneira nova sobre esta figura, propondo uma abordagem menos hagiográfica do que no passado, especialmente porque o regime nacional-socialista tinha se apoiado sobre uma visão heroica de Lutero, “profeta para os alemães”, segundo o título que deu a si mesmo, bem como seu antijudaísmo teológico.
O documento mais marcante dos últimos anos é o texto Do Conflito à Comunhão, da Comissão Luterana-Católica Romana (2013): ele apresenta uma interpretação histórica e teológica da Reforma que integra os aspectos positivos e negativos do processo de Lutero. Escrevê-lo juntos foi em si um ato poderoso.
No entanto, a relação que protestantes e católicos têm com Lutero permanece divergente, mesmo entre os mais comprometidos com o ecumenismo: os católicos podem se sentir mais livres em relação a ele, enquanto os protestantes podem ser sobrecarregados por certos aspectos do seu ensino ou de sua personalidade, por exemplo, a sua tendência em ver o Anticristo em ação entre os papistas, entre outros protestantes, entre os judeus, entre os turcos...
O que os católicos podem aprender com Lutero? Talvez a sua insistência no primado absoluto da graça, que hoje faz eco à importância dada à misericórdia pelo Papa Francisco. Os papas recentes, especialmente Bento XVI e Francisco, voltaram às intuições espirituais de Lutero. Em 2011, em um discurso em Erfurt, na Alemanha, o primeiro enfatizou sua contribuição para a importância vital da graça e da misericórdia. O segundo fez um gesto forte ao ir à Suécia em 2016 para preparar a comemoração comum da Reforma Luterana.”
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500 anos após sua excomunhão, a Igreja Católica pode reabilitar Lutero? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU