28 Junho 2021
"As últimas semanas dão a impressão de que a coalizão de Bolsonaro - exército, centrão, corporações da área de segurança e mercado financeiro - finalmente se desfez", afirma Leonardo Avritzer, professor titular do departamento de Ciência Política da UFMG, em artigo publicado por A Terra é Redonda, 26-06-2021.
Jair M. Bolsonaro formou a coalizão de apoio mais heterogênea e mais heterodoxa da história recente do Brasil. Me explico. É sabido que exército, centrão, corporações da área de segurança e mercado financeiro, além da legião de motociclistas incomíveis (de acordo com a camiseta que um deles vestia), têm pouco em comum quando pensamos em termos de projeto político.
Mas deve-se reconhecer que esses grupos constituíram uma base de apoio relativamente estável para um presidente que, ao que parece, ainda não se dedicou um dia inteiro à tentativa de governar o país. Pelo contrário, desde o início da pandemia tudo indica que ele entende o seu mandato como a arte de desfazer políticas públicas na área de saúde, boicotar a compra de vacinas e apostar em remédios sem eficácia. Supreendentemente, até algumas semanas atrás, parte significativa da sua base de apoio demonstrava aderir a esse projeto político heterodoxo. Foi até possível encontrar um general que se divertia em desorganizar a política de saúde no país, em nome da logística e da legitimidade das Forças Armadas.
As últimas semanas dão a impressão de que essa coalizão finalmente se desfez. Desde que demitiu o ministro da Defesa, Fernando Azevedo, em abril deste ano, Bolsonaro parece não ter o mesmo apoio naquela instituição que ele insiste em denominar de “meu exército”’. Entenda-se o “meu” como mais uma evidência de que o presidente do Brasil tem uma visão Ancien régime sobre o funcionamento das instituições do Estado brasileiro. Para ele, que já falou em “minha constituição”, o exército é uma instituição que ele trata de forma pessoal, como um pai: garante os soldos, os planos de aposentadoria generosos, marca presença em formaturas irrelevantes como a dos especialistas da Aeronáutica em Guaratinguetá nesta semana. Exige, porém, uma contrapartida que o “meu exército” está cada vez menos disposto a oferecer: a fidelidade absoluta, até mesmo comprometendo a ideia de hierarquia. Aí parece, finalmente, residir a resistência das forças que acreditam que corporativismo e hierarquia têm que ser minimamente compatíveis.
O segundo problema do presidente chama-se centrão. Jair Bolsonaro considera o sistema político um bando de leprosos, mas assume a máxima do ex-presidente dos Estados Unidos, Richard Nixon: entre eles existem os seus leprosos, a quem recorre quando enfrenta problemas no Congresso. Essa estratégia funcionou até o início de 2021. Sempre que Bolsonaro precisou construir maiorias no Congresso ele o fez e por duas vezes conseguiu fazer o presidente das duas casas. Até que a oposição conseguiu, por meio do Supremo, não apenas instalar uma CPI, como também ter maioria nela.
E aí começaram os problemas de Bolsonaro, que não acreditava na capacidade do sistema político e da oposição obrigarem o seu governo a prestar conta dos seus atos na pandemia. Ainda mais surpreendente foi a situação em que um deputado do Democratas e seu irmão colocaram o presidente, ao produzirem fortes evidências de que o capitão sabia de um esquema de compra de vacinas superfaturadas – a Covaxin.
Todos esses fatos em conjunto apontam em duas direções: em primeiro lugar, que o arranjo político que estabilizou Bolsonaro além das normalidades do sistema político chegou ao final. Isso é, aplica-se agora ao capitão presidente as mesmas regras que se aplicaram a todos os membros do sistema político desde a democratização. Bolsonaro esteve acima dessas regras porque a ampla coalizão que o levou ao poder acabou tendo que se comprometer com o desgoverno que ele instituiu. Esse momento parece ter passado, na medida em que o bolsonarismo passou a ameaçar a existência da democracia e dessas forças ao centro.
Nada melhor para exemplificar esse ponto do que a patética entrevista de Onyx Lorenzoni na quarta-feira (23 de junho) ameaçando o servidor do Ministério da Saúde e seu irmão deputado. Em segundo lugar, parece claro que a estratégia de ameaçar o sistema político com as forças da coerção militar também parece estar chegando ao fim e até mesmo as coerções feitas pelo Gabinete de Segurança Institucional cessaram devido à depressão do ministro de plantão. O presidente parece estar com medo de fazer mais uma viagem irrelevante e se encontrar ali com o Brasil real que morre de Covid.
Assim, centrão e militares parecem estar se dissociando, por fim, da aventura bolsonarista da qual foram participantes de primeira hora. Afora todos os motivos elencados acima, parece existir um terceiro, que tem nome e CPF. O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva está sendo capaz de montar uma aliança extremamente ampla que, ao que parece, irá envolver as principais lideranças políticas da oposição. De um lado, Lula foi capaz de se aproximar de políticos do centro com o prefeito de Belo Horizonte Alexandre Kalil, de montar uma chapa viável em torno de Marcelo Freixo no Rio e de reorientar o PSB e suas alianças na região Nordeste.
Evidentemente esse cenário aponta para uma vitória eleitoral de Lula no ano que vem e preocupa justamente aqueles que achavam que poderiam empurrar a aventura Bolsonarista até 2026. Não parece ser mais possível e a questão é o que fazer com o capitão reformado.
Para entender essa nova configuração entre centro político, ruas e oposição vale a pena analisar como outros presidentes a enfrentaram. Um presidente enfrentou mais protestos na rua que oposição no Congresso, caso de FHC, e outro enfrentou mais oposição no Congresso do que nas ruas, caso de Lula durante o mensalão. Finalmente, outra recente mandatária enfrentou oposição nas ruas e no Congresso e não resistiu, caso da ex-presidente Dilma. Jair Bolsonaro adentrou, nas últimas semanas, o mesmo campo pantanoso que derrubou Dilma Rousseff e perdeu apoios que essa nunca teve, como o das corporações militares.
Ao mesmo tempo, Hamilton Mourão – que não parece ser afeito a cartas – foi ao programa do Roberto D’Ávila desfilar suas intenções em um possível governo de transição. Estão jogados os dados sobre o futuro do capitão, a não ser que o grupo de motociclistas incomíveis consiga mantê-lo no poder.
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É cedo demais para dizer “adeus Bolsonaro”? Artigo de Leonardo Avritzer - Instituto Humanitas Unisinos - IHU