23 Mai 2021
"Pazuello insiste em mentiras estapafúrdias, mas emparedado, sutilmente compromete o presidente no colapso no Amazonas e na criação de entraves à compra de vacinas. Em ato falho, desvela: governo apostou na imunidade de rebanho", escreve Raquel Torres, editora do portal OutraSaúde, em artigo publicado por OutrasPalavras, 21-05-2021.
Se na quarta-feira Eduardo Pazuello ficou mais ou menos livre para falar o que quis à CPI da Pandemia, pondo em prática o extenso treinamento que recebeu do Palácio do Planalto, ontem alguns senadores conseguiram dele respostas mais comprometedoras para o governo – muito embora ele não tenha sido tão pressionado quanto poderia. Em um ato falho, ele disse que gostaria que o Brasil contasse hoje com “200 milhões de recuperados” da covid-19. A demonstração explícita de sua crença na imunidade coletiva (via contaminação) acabou não sendo explorada pelos senadores.
Há um ponto relevante sobre a falta de oxigênio no Amazonas: ao senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), Pazuello afirmou que Jair Bolsonaro participou da decisão de não aprovar um pedido de intervenção na saúde pública do estado naquela época, em janeiro.
Ele disse, porém, que a decisão foi tomada em conjunto após o governador Wilson Lima (PSC-AM) argumentar “que o Estado tinha condição de continuar fazendo a resposta dele”. Só que Lima – um aliado do presidente – o desmentiu: “Nunca houve recusa do Estado para qualquer tipo de ajuda relacionada às ações de enfrentamento à covid-19. Além disso, o Governo do Amazonas sempre pediu a colaboração federal para auxiliar no combate à pandemia”, disse ao Estadão. A intervenção foi pedida pelo senador Eduardo Braga (MDB-AM) no dia 15 de janeiro, logo que estourou a crise.
A referência à reunião em que se decidiu sobre o Amazonas foi a primeira vez em que Eduardo Pazuello implicou Jair Bolsonaro diretamente em uma decisão desse porte. Mas houve outro momento em que ele se viu enredado pelas perguntas de Randolfe Rodrigues, quando tentava explicar mais uma vez a demora nas negociações com a Pfizer.
Ele sustentava que havia um entrave jurídico por conta das malfadadas cláusulas leoninas. Rodrigues apresentou então a minuta de uma Medida Provisória elaborada por vários ministérios, inclusive o da Saúde, com um artigo que resolveria o problema; estava assinada por todas as autoridades do governo responsáveis, menos o presidente da República, pois era ainda uma proposta. Então ele presentou seguida o texto que foi efetivamente aprovado (a MP 1.026/2021). Era praticamente idêntico à minuta, com duas diferenças. Uma: o dispositivo havia sumido. Outra: a assinatura de Jair Bolsonaro. Pazuello precisava explicar, então, quem tinha eliminado o dispositivo que poderia ter resolvido rapidamente a aquisição das doses.
O general tentou argumentar que a supressão do artigo teria sido decidida por não haver “consenso” sobre ele. Como todos os ministros haviam assinado a minuta, infere-se que, entre eles, estava tudo bem. Segundo esse raciocínio, o dissenso só poderia ter sido fruto de uma pessoa: Jair Bolsonaro. Mesmo assim, o general conseguiu não dizer, letra por letra, que o texto havia sido modificado a pedido do presidente. “Não pelo presidente, mas pelo governo”. De todo modo, o termo serviu.
Na véspera, o ex-ministro havia dito que pareceres do TCU, da AGU e da CGU eram contrários à assinatura do contrato. Isso poderia ter motivado essa decisão “do governo”, mas, ao que parece, não foi assim. O TCU desmentiu Pazuello ainda na quarta-feira, durante a sessão. Quanto aos demais órgãos, O Globo analisou documentos indicando que o governo começou a se posicionar contra a negociação em dezembro, mas só pediu pareceres à AGU e a CGU em fevereiro. Eles ficaram prontos apenas em março. Já a MP 1.026 foi publicada antes, em janeiro…
A explicação de Eduardo Pazuello para o episódio do TrateCov é digna de um filme de péssimo roteirista: ele disse que o aplicativo foi “roubado” por um hacker durante o lançamento, quando ele e Mayra Pinheiro o apresentaram em Manaus. O hacker teria sido a pessoa responsável por colocar o aplicativo no ar: “ele alterou, com dados lá dentro, e colocou na rede pública”. Pazuello disse ter até um boletim de ocorrência disso, uma informação que nunca havia sido dada, apesar da chuva de críticas que o Ministério recebeu em janeiro, quando o app foi anunciado. Pazuello disse ainda que a ferramenta nunca chegou a ser usada – e sustentou suas posições mesmo diante da reprodução de uma reportagem da TV Brasil que apresentava a ferramenta e trazia o relato elogioso de um médico sobre seu uso. “O hacker é tão bom que conseguiu botar o programa numa matéria extensa na TV Brasil”, ironizou o presidente da CPI, Omar Aziz (PSD/AM).
Tem mais. Apesar de a ferramenta se chamar “TrateCov”, Pazuello quis emplacar a ideia de que o objetivo era o de apenas realizar o diagnóstico, e não a indicação de tratamento. E que teria sido lançado em Manaus por conta do colapso: “O diagnóstico clínico, naquele caso, em Manaus, era muito necessário, pela velocidade com que as coisas estavam acontecendo, pela contaminação excessiva e pelo risco de nós termos diagnósticos diferentes de doenças que estavam acontecendo em paralelo. Então, o diagnóstico era muito importante. Tem que se compreender que nós temos que separar o que foi feito, o resultado final do projeto com ideia do projeto. A ideia do projeto é uma calculadora que facilite o diagnóstico. Eu acho que ninguém é contra…”.
A narrativa é a de que esse aplicativo ainda não estava “completamente desenvolvido” quando foi lançado. Coube ao senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE) confrontar Pazuello com uma prova inequívoca da mentira: um documento do dia seis de janeiro, assinado pelo ex-ministro, estabelecendo que seria disponibilizado ao Amazonas o “aplicativo desenvolvido” (e não “em desenvolvimento”) para “diagnóstico e consequente receitamento”, o que não deixa dúvidas sobre a intenção, desde o começo, de apresentar uma lista de remédios.
De modo geral, Pazuello continuou empenhado em sua missão de blindar Bolsonaro. Depois de ter justificado suas aglomerações como um “zelo ao psicossocial”, ontem ele disse que não se deve levar o presidente a sério: “Sabemos como é o nosso presidente da República, ele fala de improviso, fala de pronto. Essa é a verdade, não podemos esconder o sol com a peneira”.
Numa fala que ficou de fora dos registros oficiais, o senador Alessandro Vieira comparou o general o oficial nazista Adolf Eichmann, responsável pela logística da deportação de judeus para campos de extermínio durante o Holocausto: “‘Analisado o cidadão, se dizia que ele não possuía histórico ou traços preconceituosos. Não apresentava características de um caráter distorcido doentio. Agiu no que acreditava ser o seu dever, cumprindo ordens de superiores e movido em se ascender em sua carreira profissional. Cumpria ordens sem questioná-las, com a maior zelo e eficiência, sem refletir sobre o bem ou mal que pudessem causar’. Essa análise foi feita em relação a Eichmann. Faço essa referência porque, muito claramente nos contatos em que tivemos, o senhor não se portou com desrespeito à vida. Mas dentro do conjunto da obra, na perspectiva de política pública, o senhor falhou. E eu tenho convicção que o senhor não falhou por convicção sua. Não consigo entender que diabo de lealdade o senhor acredita ter que o leve a acobertar o verdadeiro autor das ordens que o senhor seguiu”.
O governo do Maranhão confirmou ontem seis casos de covid-19 provocados pela variante B. 1.617 – a que foi identificada primeiro na Índia e que a OMS classificou recentemente como variante de preocupação. Todos estavam no navio MV Shandong da Zhi, posto em quarentena no último sábado depois que um tripulante indiano testou positivo para o vírus.
Segundo o secretário de Saúde do estado, Carlos Lula, os 24 tripulantes do navio foram testados e 15 estavam infectados. Entre eles, 12 permaneceram assintomáticos, dois apresentam sintomas leves e um (o que precisou de atendimento primeiro e levantou a preocupação com a variante no sábado) ainda está internado em UTI. Ainda de acordo com Lula, apenas seis amostras tinham carga viral suficiente para o sequenciamento genômico, e todas elas tinham a nova cepa.
A B.1.167 se divide em três sub-linhagens: B.1.167.1, B.1.167.2 e B.1.167.3. Para as duas primeiras já há evidências moderadas de que a transmissibilidade é maior (o Reino Unido, por exemplo, viu um crescimento repentino da B.1.167.2 na semana passada). E, no caso da B.1.167.1, as evidências preliminares sugerem um possível escape imunológico. Por enquanto não há, para nenhuma delas, indicativos de maior letalidade.
Pois bem: o que o Maranhão identificou foi a B.1.167.2, que provavelmente é mais transmissível, mas que, até onde se sabe neste momento, não tem maiores chances de provocar reinfecções ou de escapar das vacinas.
Não existe transmissão local confirmada no estado, e todos os infectados continuam isolados.
Agora, a prefeitura de São Paulo pediu à Anvisa que sejam feitas barreiras sanitárias nos aeroportos para controlar a chegada de passageiros que possam estar com a nova cepa. O pedido vem tarde. Como já notamos aqui, variações da B.1.167 estão em mais de 40 países e já podem ter entrado no Brasil – a região Sudeste é, de longe, a que mais recebe voos internacionais.
E o número de casos confirmados de covid-19 no Brasil subiu 10% em maio. A média móvel de mortes diárias, que vinha caindo ao longo do mês, começou a subir de novo esta semana: passou de 1.910 no sábado para 1.971 ontem.
Hoje, são sete os estados com mais de 90% das UTIs cheias, e 17 estados registram crescimento nessa taxa. Mas os governadores não parecem estar dispostos a fazer nada para conter o aumento, ainda: o Valor cita estados como Santa Catarina, Ceará e Piauí em que, ao contrário, as decisões vão no sentido de flexibilizar ainda mais as restrições.
É frustrante que mesmo locais onde a situação havia se acalmado estão piorando de novo. Araraquara, que fez um lockdown rígido no fim de fevereiro e conseguiu reduzir seu número de casos em 70%, voltou a preocupar: apenas três meses depois, a taxa de ocupação das UTIs está em 93% e a prefeitura estabeleceu critérios para um eventual novo fechamento da cidade. É um exemplo muito claro do que acontece quando outras medidas de contenção não são suficientemente bem empregadas.
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CPI: As digitais de Bolsonaro na tragédia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU