23 Fevereiro 2021
"A fé foi o primeiro guia para os Sinópticos na composição de suas biografias /bioi de Jesus. Mas, para afirmar e fazer as pessoas aceitarem que o Messias tinha que sofrer para entrar em sua glória, 'foi necessário mostrar que Jesus realmente pertencia, à razão de sua ação e de sua morte, à linhagem dos profetas'”, escreve Roberto Mela, professor da Faculdade Teológica da Sicília, em artigo publicado por Settimana News, 20-02-2021, comentando um livro de autoria de J.-Noël Aletti [1]. A tradução é de Luisa Rabolini.
Escrever uma biografia de Jesus foi para seus discípulos "a única forma de responder às críticas vindas de fora" (p. 156). No entanto, as biografias (bioi em grego) eram reservadas apenas para homens ilustres, famosos por vitórias militares, escritos filosóficos e científicos, grandes discursos políticos e outros, cultura e língua gregas, etc.
A primeira comunidade cristã enfrentou imensas dificuldades. A ressurreição fez de Jesus uma figura messiânica gloriosa, mas a rejeição que ele sofreu durante sua vida pública e sua morte ignóbil na cruz como rebelde, criminoso e blasfemador desmentiam clamorosamente o fato de ele fosse um messias. Era necessário, portanto, demonstrar que os sofrimentos e a morte inglória de Jesus de Nazaré não colocavam em questão a sua qualidade de enviado de Deus.
Para superar essa deficiência, a comunidade não encontrou outra forma que levar as pessoas ao conhecimento/anagnorisis de qualidade messiânica da pessoa de Jesus, valendo-se do patrimônio de pessoas e acontecimentos relatados no Antigo Testamento (AT) que, de uma forma ou de outra, prefigurassem em personagens justos e sofredores, profetas incluídos, a figura de Jesus como profeta justo mas rejeitado.
No bios de um personagem, a anagnorisis, ou seja, o reconhecimento do valor de um homem por seus contemporâneos e gerações subsequentes, era um elemento fundamental; “Para a anagnorisis de Jesus como Messias, os evangelistas tiveram que recorrer à tipologia. A tipologia dos Sinópticos está subordinada à anagnorisis” (p. 9).
Os Sinópticos, sobre os quais se centra a obra de J.-Noël Aletti, 79, professor francês emérito do PIB de Roma, seguiram o caminho da tipologia, sempre em vista do fim último da anagnorisis da pessoa de Jesus. "Com tipologia, pelo menos como o uso do AT sugere por parte do NT, entende-se a percepção de correspondências significativas entre as características e as circunstâncias de dois indivíduos, instituições ou eventos históricos - correspondências tais que cada um é interpretado como uma antecipação ou cumprimento do outro" (M. Knowels, cit. na p. 6). O elemento do AT é o tipo ou figurante, o do NT é o antítipo ou o figurado. A tipologia também é chamada de “interpretação figural”.
A tipologia difere da simples alusão do NT a um texto do AT. Parte da tipologia figural é baseada, entre outras coisas, na synkrisis, ou seja, do confronto entre características comuns aos dois personagens, suas diferenças, em que o segundo às vezes é apresentado como superior ao primeiro. Lucas adora esse procedimento retórico (João Batista e Jesus em Lc 1–3; o pastor e a mulher em Lc 15,1-10, os dois irmãos em Lc 15,11-32, etc.).
A tipologia do NT é essencialmente teleológica, pois indica como as figuras do AT têm como télos Cristo e as realidades do Novo Testamento. Sempre permanece o grande perigo interpretativo de considerar os tipos do AT como simples sombras com respeito à realidade do NT. O esquema de interpretação prefiguração-cumprimento-superação pode levar ao desaparecimento do tipo ou figurante do Antigo Testamento.
A fé foi o primeiro guia para os Sinópticos na composição de suas biografias /bioi de Jesus. Mas, para afirmar e fazer as pessoas aceitarem que o Messias tinha que sofrer para entrar em sua glória, “foi necessário mostrar que Jesus realmente pertencia, à razão de sua ação e de sua morte, à linhagem dos profetas” (p. 153).
Após a introdução e dois capítulos sobre a tipologia dos Sinópticos hoje (p. 5-36), Aletti apresenta a cronologia e tipologia na história de Marcos (p. 37-62) com referências ao modelo de Elias, à tipologia de liseu e do salmo, sem descurar o grito de Jesus na cruz e a declaração do centurião.
O c. 4 (p. 63-98) descreve a cronologia e tipologia no relato de Mateus. Nele a tipologia dos salmos é colocada na história da paixão do Jesus justo sofredor (Mt 26-27 por obra do Narrador), a tipologia profética com a figura de Jeremias ainda em primeiro plano (Mt 8-20 por obra do Narrador, das multidões, de Jesus e da voz celestial, com alusões a Jeremias (Mt 27,4.25 pelos opositores), a tipologia mosaica sobre a identidade de Jesus messias no evangelho da infância (Mt 1,16-2,23, por obra do Narrador), no Sermão da Montanha (Mt 5–7, por obra de Jesus) e na carta do discípulo (Mt 28,16-20).
Mateus começa e termina o seu relato com a tipologia real. Ela e expressa pelos títulos de realeza e pela entrada de Jesus em Jerusalém. "Rei dos Judeus" tem uma denotação positiva pelos Magos (Mt 2,29 em Mt 21,5 com a citação de Zc 9,9 por obra do Narrador), ambígua em Mt 27,11 (Pilatos ) e Mt 27,37 (a inscrição na cruz, citada pelo Narrador); negativa em Mt 27,29 (soldados de Pilatos) e em Mt 27,42 (Rei de Israel, pelo opositores ao pé da cruz). Para Mateus, se Jesus não foi reconhecido como rei / messias, é por causa da desobediência crônica de seu povo.
No c. 6 (p. 99-152) Aletti descreve a tipologia no conto de Lucas. Em Lc 1–2 há paralelismos entre os personagens (fenômeno de synkrisis), o anúncio a Zacarias e 1Sm 1–3 como pano de fundo geral. Em Nazaré (Lc 4,16-30), Jesus inaugura sua leitura tipológica, com referência a um texto de Isaías. Aletti, em seguida, estuda a tipologia profética durante o ministério de Jesus, com suas razões e a tipologia no final da macro-narrativa que abraça a inocência e o reconhecimento em Lucas 22-23 e a tipologia própria de Lc 24.
Vamos resumir as conclusões (p. 153-160) alcançadas pelo estudioso em seu ensaio, que segue aquele do título Jesus, uma vida a ser contada. O gênero literário dos Evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas, publicado em tradução italiana em 2017 (orig. fr. Namur 2016) e que Aletti considera conhecido.
O evangelista Marcos, o primeiro a abrir o caminho na composição de uma biografia /bios de Jesus, responde ao escândalo de um Messias rejeitado e crucificado, optando por ler a paixão de Jesus ao longo das linhas das súplicas individuais levantadas a Deus pelos personagens justos perseguidos, "visto que nessas orações a única anagnorisis que conta é a vertical: estando na posição dos justos perseguidos (que são seus figurantes), Jesus não poderia e não deveria ter sido reconhecido por ninguém além de Deus" (p. 154). Não bastava a identificação popular de Jesus como um novo Elias, porque poderia ter sido fruto da manipulação de Jesus e, de qualquer forma, sua morte na cruz o manifestou como um blasfemo.
No entanto, o modelo profético, com seus elementos de reconhecimento e rejeição, não foi escolhido por Marcos, embora tenha sido útil. A identificação popular de Jesus com Elias era inadequada, porque este profeta era tipo apenas de João Batista e nem Elias nem Eliseu foram enviados à morte pelos israelitas de seu tempo.
Até Mateus seguiu o modelo dos salmos para a narrativa da paixão, porém, convencido de que assim poderia mostrar - ao contrário de Marcos - que os israelitas não podiam ir mais longe na rejeição dos caminhos de Deus. Longe de se contraporem, o reconhecimento e a rejeição tinham que ir juntos para confirmar o ser-profeta de Jesus. A tipologia de Mateus é, além disso, mosaica. Jesus é o antitipo de Moisés legislador, cujos preceitos ele leva à perfeição.
A releitura tipológica de Lucas, outro lado, tenta antes de tudo mostrar “que Jesus pertence à linhagem profética, por causa de suas ações e de sua morte violenta, e muito menos para sugerir que Jesus é superior aos profetas que o precederam. Em outras palavras, a tipologia de Lucas baseia-se sobretudo na synkriseis, e praticamente não na preparação/realização, e menos ainda no par sombra/realidade” (p. 155).
No relato da Paixão, Mateus retoma o modelo das súplicas individuais dos justos perseguidos para completar a recusa e, portanto, a ausência final de anagnorisis por parte dos israelitas. Lucas, por outro lado, é inteiramente guiado por um processo de reconhecimento horizontal pelos personagens da história.
“Graças à tipologia profética, a figura messiânica - essencialmente gloriosa para a tradição judaica - pôde tornar-se audível, ser recebida; e agora é possível crer nas palavras de Jesus em Lc 24,26 e de Pedro em At 3,18, ou seja, que "o Messias tinha que sofrer para entrar na sua glória" (p. 156). Concluindo, “antes de ser uma interpretação sobre a inferioridade do tipo e a superioridade do antítipo, a tipologia das narrativas sinóticas é uma busca pelos traços e, portanto, pelos tipos que podem mostrar a identidade profética de Jesus” (ibid).
Com a retomada do motivo das súplicas dos justos perseguidos, os Sinópticos não pretendiam mostrar com a synkrisis que os sofrimentos de Jesus eram prefigurados pelos tipos do Antigo Testamento e que Jesus estava levando a cumprimento seu doloroso destino. Se nenhum "a mais" é mencionado pelos sofrimentos, mas sobretudo a continuidade com os fiéis perseguidos e os profetas, isso ocorre pelo ensinamento de Jesus e sua ação taumatúrgica (ver a multiplicação dos pães com o precedente Elias; a afirmação feita por Jesus "Aqui há alguém maior do que Jonas" e o "Mas eu vos digo" com que Jesus no Sermão da Montanha traz os mandamentos da lei mosaica ao seu clímax).
Em última análise, a leitura tipológica dos Sinópticos experimentou uma progressão. No início, buscou e estabeleceu paralelos com os tipos do Antigo Testamento, depois desenvolveu-se enfatizando a superioridade de Jesus sobre seus figurantes do Antigo Testamento (cf. p. 158). Os paralelos não foram negligenciados, mas "a valorização da onipotência de Jesus, em suas ações e em seu ensinamento, foi igualmente essencial para a cristologia dos Sinópticos" (ibid.). A superioridade de Jesus pertence à tipologia, mas está em segundo plano e praticamente só intervém nos episódios que precedem a Paixão.
Por fim, Aletti assinala que também é possível o caso em que o figurante assume seu significado pelo seu cumprimento. É o caso de Mt 4,14, no qual é narrado o início do ministério de Jesus na Galileia. Com isso se cumpre - diz Mateus - a profecia de Is 8,23-9,1, citada livremente. O evento de luz foi contemporâneo ao oráculo e o profeta refere-se a um acontecimento ocorrido na sua época. Mateus faz uma leitura figural comparando dois eventos separados pelo tempo. Mateus fez isso para os numerosos paralelos presentes: dois reis (Ezequias e o Rei-Messias Jesus), os lugares (Galileia e as regiões circunvizinhas) e as circunstâncias (mesmo povo na miséria).
Pode-se perfeitamente aceitar que com a vinda de Jesus a Galileia pôde receber uma luz maior. Com isso, Mateus faz de Ezequias um figurante de Jesus, uma preparação e uma profecia messiânica. Mateus, citando Isaías e dizendo que suas palavras encontram cumprimento em Jesus, considera o primeiro evento (o nascimento do menino rei na época de Isaías) como uma profecia da vinda luminosa de Jesus. Esta tipologia profético-messiânica, ausente em Marcos e Lucas, está presente em Mateus, onde os eventos do passado são profecias daqueles que aconteceram com Jesus.
Aletti só pode constatar a realidade - mas não demonstrá-la em nível exegético -, e se refere à obra do teólogo para justificar que o narrador de Mateus tenha podido dizer, partindo das fortes analogias entre os eventos do passado bíblico e aqueles do tempo de Jesus, que os primeiros preparavam e anunciavam os segundos.
O livro é um importante ensaio sobre o tema da tipologia aplicada aos Evangelhos sinópticos. Importante porque redimensiona seu entendimento como pura relação prenúncio-realização-superação e corrige o modelo hermenêutico baseado no par sombra/realidade presente em muitos Padres da Igreja e também no pensamento comum de muitos leitores atuais.
[1] JEAN-NOËL ALETTI, Il Messia sofferente. Una sfida per Matteo, Marco e Luca. Saggio sulla tipologia dei Vangeli sinottici (Biblioteca Biblica 31), Queriniana, Brescia 2021 (or. fr. Namur 2019), p. 176, € 20,00, ISBN 978-88-399-2031-7.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
O Messias sofredor - Instituto Humanitas Unisinos - IHU