10 Fevereiro 2021
"E esse é essencialmente o ponto nevrálgico da disputa que gera tensões e conflitos entre as várias realidades católicas. Relevante é a sugestão que pede para ir além da forma moderna de um absolutismo do poder e de sua gestão na Igreja, mais problemática a meu ver é a convicção de que a introdução de parâmetros democráticos resolva, quase automaticamente, a questão do abuso de poder", escreve o teólogo e padre italiano Marcello Neri, professor da Universidade de Flensburg, na Alemanha, em artigo publicado por Settimana News, 09-02-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
O Caminho Sinodal da Igreja Católica alemã surge da crise iniciada com a publicação do Estudo sobre os casos de abusos e violências cometidos por padres, religiosos e pessoal eclesial - e também da desorientação em que caiu a Conferência Episcopal perante a apresentação de uma história de culpa, responsabilidade e omissão por parte daqueles que, na Igreja local, tinham a função de conduzi-la à altura do Evangelho.
Foram, portanto, praticamente obrigados ao Caminho sinodal - não encontrando outras formas de retomar e administrar adequadamente um fato que afetava pesadamente a credibilidade da Igreja não só perante a sociedade e outras instituições do país, mas também e em primeiro lugar diante da consciência dos próprios fiéis.
Nessa substancial inércia com que se iniciou o processo sinodal, no entanto, flui algo da estrutura profunda da Igreja quando já não pode evitar o exigente confronto com o Evangelho e o imperativo que ele impõe à comunidade cristã: precisamente aquela que leva para a convocação sinodal da assembleia dos fiéis, como forma conatural à Igreja, para enfrentar uma crise profunda a ser aproveitada como momento oportuno, como ocasião propícia, para exercer uma fidelidade histórica mais coerente ao Evangelho cristão.
Os bispos, como Conferência Episcopal, ficaram sem palavras diante do escândalo e da consciência de serem os representantes de uma história que deixou marcas indeléveis de violência e dor nos corpos e nas almas de uma multidão de irmãos e irmãs no mundo humano e na fé: aqui, a única palavra de que foram capazes foi a da convocação do povo de Deus.
Não apenas entregando a ele uma possibilidade efetiva de falar, mas também reconhecendo que o corpo episcopal devia dar uma legitimidade operativa a essa palavra trazida pela comunidade dos fiéis. A forma sinodal não é uma simples representação consultiva na construção da Igreja, mas carrega consigo uma força deliberativa para a qual contribuem todas as formas de vida cristã na Igreja.
Não é possível fazer-juntos se não houver uma partilha eficaz das etapas principais, assim como perde todo sentido o fazer-juntos se a diversidade e complexidade da comunidade cristã for reduzida a um conjunto indistinto de replicantes (onde todos são iguais). Manter essa tensão e torná-la fecunda no traçado do horizonte que conduz à Igreja que virá à Alemanha é o verdadeiro desafio que os participantes do Caminho Sinodal alemã estão enfrentando.
Não foi um desafio fácil porque, é preciso admitir com franqueza, todos os sujeitos convidados a percorrer jutos este Caminho estavam em parte despreparados para isso.
Certamente os bispos e os padres, que sempre correm o risco de confundir a tarefa de presidir uma comunidade (diocesana e/ou paroquial) com uma distância que os imuniza e os torna impermeáveis à cotidianidade da fé - onde se sente todos os dias a distância da medida do Evangelho, mas também onde se preserva a sabedoria evangélica de uma fidelidade sempre reconfirmada à palavra do Senhor.
Mas, além disso, também os teólogos e as teólogas, muitas vezes levados a pensar o Cristianismo e a fé a partir de uma teoria cuja transparência muitas vezes corre o risco de não se confrontar com as situações concretas do discipulado cristão - às vezes com a pretensão de ditar a ele os temas que deveriam determiná-lo, em vez de recolher aqueles que realmente o interessam. E, por fim, os leigos, aos quais o Caminho Sinodal pede que não se pensem como contrapostos ou alternativos ao ministério pastoral e teológico, mas que se entrelacem sabiamente com ambos, sem renunciar a trazer aquela especificidade evangélica que nasce apenas nas tramas da vida do cristão e da cristã comum.
Se o Caminho Sinodal pediu a todos que aprendessem uma forma que não seja apenas corporativa na proposição de temas e no confronto sobre eles, também pôde contar com uma longa experiência de participação ativa e representação consolidada, durante a qual a Igreja alemã cultivou frutuosamente colaboração entre as diferentes competências da fé e os diferentes estados de vida cristã.
Nascido da emergência, também soube convocar esse traço de proximidade com a forma sinodal de Igreja que o catolicismo alemão herdou de sua história. O processo em que se encontra neste momento é o de tornar habituais os aspectos específicos que marcam a sua experiência como Igreja local.
Solicitando a todos os participantes de ajudar a criar espaço sinodal, tanto nos quatro fóruns temáticos (poder e divisão de poderes na Igreja; a vida do sacerdote hoje; as mulheres nos ministérios e nas funções da Igreja; viver em relações de sucesso: viver o amor na sexualidade e na vida de casal) quanto na Assembleia Plenária, o lugar adequado para tornar presentes e garantir representação às diferentes, e por vezes divergentes, visões sobre os temas.
Também neste caso, a cada grupo de participantes e indivíduos é solicitado um trabalho de aprendizagem: tanto no que diz respeito à capacidade e sensibilidade de apreender, em visões do catolicismo que discordam daquela pessoal, um traço de autenticidade evangélica que não pode ser desconsiderado apressadamente; tanto no que diz respeito ao desejo de não usar formas extra-sinodais de comunicação para afirmar a correção irrevogável (dogmática ou cultural) da própria perspectiva e, assim, tentar impô-la por via externa ao debate sinodal.
Esse é o quadro geral que serviu de pano de fundo para a conferência online dos delegados para o Caminho Sinodal que aconteceu na semana passada. Conferência que substituiu a planejada assembleia plenária, adiada para o próximo outono devido à emergência sanitária causada pela pandemia. Nas semanas anteriores à Conferência, não faltaram tensões relativas à estrutura geral do ordenamento sinodal e aspectos do conteúdo, especialmente com referência ao primeiro Fórum sobre o poder e a divisão de poderes na Igreja (do qual se fez porta-voz o bispo de Regensburg, R. Vorderholzer, em uma carta ao presidente da Conferência Episcopal G. Bätzing).
Deve-se registrar também que este Fórum é o que está mais adiantado nos trabalhos e já apresentou um texto articulado durante a Conferência, agora próximo da redação final e da formulação dos diversos pontos em torno dos quais a Assembleia Plenária deverá então manifestar seu votum. No que se refere aos outros grupos, entretanto, há necessidade de estudos mais aprofundados e de avançar na discussão para se chegar a um texto bem organizado no segundo semestre a ser submetido à deliberação da Assembleia.
A Conferência foi uma oportunidade para tratar dessa e outras tensões, que geram conflito na Igreja alemã, dentro da dinâmica sinodal: “O Caminho certamente não é um passeio - disse Th. Sternberg, presidente do Comitê Central dos Católicos Alemães -, mas também não é uma passarela onde cada um mostra sua opinião sem querer mudá-la minimamente. Através de um procedimento democrático, queremos chegar a decisões nas quais se veja como, para nós, é claro que o que nos une a todos é o amor à nossa Igreja”.
O presidente da Conferência Episcopal G. Bätzing aponta para a próxima Assembleia Plenária do Caminho Sinodal como o momento em que essas decisões começarão a ser tomadas, partindo do texto básico que cada grupo apresentará naquela oportunidade. Se o prazo desse encontro já está fixado, no próximo outono alemão, fica em aberto a questão de como fazer sua celebração: todos esperam que seja possível presencialmente, mas já estamos trabalhando na possibilidade de realizá-la online.
O convite explícito feito pelo Papa Francisco à Igreja italiana para dar início a um processo sinodal nacional foi lido de forma positiva pelos representantes do Caminho Sinodal alemão: “Não nos sentimos uma exceção, que iria contra os interesses do Vaticano. Ao contrário, nos vemos em harmonia com a Igreja universal e em harmonia com o Papa. Francisco sempre se exprime de uma forma que nos encoraja, por exemplo, quando pede para envolver ativamente os leigos no processo sinodal da América Latina, ou como poucos dias atrás quando pediu para seguir um caminho semelhante à Igreja italiana” (Sternberg).
A Conferência foi uma oportunidade para dar a palavra aos representantes do Conselho das vítimas que acompanha a Conferência Episcopal alemã na elaboração dos casos de violência e abusos. “Foi uma presença e uma palavra que marcaram profundamente e foram muito importantes (…). O Comitê Central dos Católicos alemães também deve questionar-se criticamente - por exemplo, no que diz respeito aos casos de abuso em nossas associações - mas também no que diz respeito aos casos em que paróquias e associações apoiaram padres que sabiam tinham cometido abusos” (Sternberg).
No início da Conferência, o Card. Woelki, bispo de Colônia, tomou a palavra para reconhecer que na gestão de casos de abusos em sua diocese e nos procedimentos destinados a investigá-los, foram cometidos erros, inclusive pessoais - que devem ser verificados e avaliados para chegar às devidas conclusões. Também a esse respeito a forma sinodal do encontro de uma Igreja oferece lugar e modos adequados de trazer à palavra o drama dessas feridas dilacerantes e dessa culpa que continua a abalar o corpo da Igreja alemã.
Em conclusão, merece uma palavra o texto básico articulado discutido no Fórum sobre o poder e a divisão dos poderes na Igreja. É um texto poderoso, com mais de quarenta páginas, e muito articulado - que deverá ser devidamente lido e estudado para iniciar uma discussão crítica construtiva. No entanto, é muito forte a ênfase estruturante sobre a exigência de introduzir procedimentos de tipo democrático para a gestão correta do poder na Igreja local.
E esse é essencialmente o ponto nevrálgico da disputa que gera tensões e conflitos entre as várias realidades católicas. Relevante é a sugestão que pede para ir além da forma moderna de um absolutismo do poder e de sua gestão na Igreja, mais problemática a meu ver é a convicção de que a introdução de parâmetros democráticos resolva, quase automaticamente, a questão do abuso de poder.
Não tanto porque haveria uma incompatibilidade total entre os procedimentos tipicamente democráticos e a estrutura da Igreja e os modos de sua organização: "é claro que há determinados âmbitos da Igreja nas quais não cabe aos homens decidir, porque se trata de pressupostos básicos que Deus nos mostrou. A questão central é: o que realmente pertence a esses âmbitos, ao chamado depositum fidei, e o que, em vez disso, pode ser alterado e modificado?" (Bätzing).
Nesse sentido, a reserva deve ser buscada na crise contemporânea da democracia, isto é, em seus próprios limites de procedimento pelos quais ela acaba se inviabilizando. Neste momento, a democracia ainda poderia oferecer formas e regras para um exercício não abusivo do poder, mas já não tem mais a força para garantir tudo isso - ou, pelo menos, não parece estar apta a fazê-lo sozinha independentemente das pessoas que a isso recorrem.
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O Caminho Sinodal da Igreja alemã. Artigo de Marcello Neri - Instituto Humanitas Unisinos - IHU