23 Junho 2019
Um ator emergente no catolicismo contemporâneo são os grupos de católicos ricos que patrocinam iniciativas específicas através das mídias de massa e sociais católicas, financiam programas de evangelização e sustentam escolas católicas. Mas houve pouca reflexão teológica sobre o papel desses grupos. E quase não houve nenhuma reflexão sobre as medidas legais que a Igreja precisa tomar para defender sua liberdade em relação a esses novos poderes.
A opinião é do historiador italiano Massimo Faggioli, professor da Villanova University, nos Estados Unidos, em artigo publicado por La Croix International, 18-06-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Os eventos que ocorreram na Igreja no Chile nos últimos 18 meses tiveram uma clara influência sobre o catolicismo global. Após a visita do Papa Francisco ao país sul-americano em janeiro de 2018, o Chile tornou-se o lócus de uma nova fase na saga que se desenrola sobre o modo como a Igreja está buscando lidar com a crise dos abusos sexuais clericais.
O administrador apostólico da Arquidiocese de Santiago, Dom Celestino Aós, anunciou em 14 de junho que o papa aceitou a renúncia do bispo auxiliar da arquidiocese, Carlos Irarrázaval Errázuriz, antes mesmo de sua ordenação episcopal.
Francisco havia nomeado Irarrázaval apenas 25 dias antes. Foi uma das mudanças mais recentes na hierarquia católica do Chile após um encontro em maio de 2018 em Roma, quando 34 bispos – quase todo o episcopado do país – deram o passo sem precedentes de apresentar suas renúncias.
A renúncia de Irarrázaval parece ter sido desencadeada por uma entrevista que o bispo eleito concedeu alguns dias depois de sua nomeação, na qual ele fez afirmações verdadeiramente bizarras e imprudentes sobre, entre outras coisas, as mulheres na Igreja e o judaísmo.
O caso é indicativo da falha sistêmica da elite episcopal da Igreja Católica. O fato é que a autoridade clerical – em particular, a autoridade dos bispos – está sendo varrida pela crise dos abusos sexuais.
E esse não é o caso apenas do Chile ou dos Estados Unidos. Muitos leram o discurso do Papa Francisco em 13 de junho aos diplomatas papais reunidos no Vaticano como uma avaliação da qualidade das elites hierárquicas de hoje.
Naturalmente, o arcebispo Carlo Maria Viganò, ex-enviado papal a Washington, passou pela mente de todos. Mas nos perguntamos se o atual núncio papal em Santiago tem qualquer responsabilidade pela construção do caos que estamos presenciando no Chile.
Em seu discurso aos núncios, Francisco indiretamente pintou um retrato preocupante do colapso dos ethos, da missão, do estilo e da dignidade não apenas dos bispos que são embaixadores papais, mas também dos mais de 5.000 homens que formam todo o episcopado católico de hoje.
Podemos debater se esse é um fenômeno novo ou se apenas está mais visível agora, por causa do aumento do escrutínio midiático e de um laicato católico irado e chocado.
Mas as pessoas certamente estarão vendo atenciosamente se e como a Igreja redefine as qualidades necessárias para ser um bispo.
De fato, toda crise sistêmica é uma oportunidade para redefinir a liderança de uma instituição.
Por baixo da superfície da elite clerical, há muitas variáveis que podemos encontrar nos currículos dos bispos – seu histórico socioeconômico, sua formação acadêmica, seu trabalho e sua história pastoral como padres, sua associação (ou não) com círculos, grupos ou movimentos particulares dentro da Igreja e suas conexões com as redes romanas.
Por exemplo, os perfis dos bispos nomeados após o Concílio de Trento (1545-1563) são muito reveladores, especialmente no século XVII, quando as reformas tridentinas realmente começaram a ser implementadas.
Padres com diplomas em Direito Canônico subiram os degraus da hierarquia em um ritmo muito maior do que aqueles que tinham diplomas em Teologia.
Os bispos da Contrarreforma supostamente deveriam ser bons administradores. Ser um bom teólogo ou um excelente pregador era considerado de importância secundária.
E, assim, a burocratização do episcopado católico começou bem antes do Concílio Vaticano II (1962-1965).
Desde 2013, o Papa Francisco nomeou bispos com um perfil mais pastoral – uma mudança significativa em relação aos bispos nomeados por João Paulo II e Bento XVI.
Mas precisaremos de estudos abrangentes sobre o perfil geral dos bispos do século XXI para ver se algo irá mudar a longo prazo. Isso exigirá olhar para as principais características das carreiras daqueles que se tornam bispos.
Existem fatores que têm importância na Igreja Católica global hoje de um modo diferente do primeiro período pós-Vaticano II.
Por exemplo, se os novos bispos vêm de (ou são próximos de) um dos muitos movimentos eclesiais como o Caminho Neocatecumenal ou o Focolare. Se são vocações mais velhas ou de convertidos de outra denominação cristã.
Também há fatores que adquiriram um novo significado agora que muitos católicos vivem em cidades multiculturais da Igreja global.
Por exemplo, se o clérigo é membro ou líder de uma minoria étnica ou linguística em particular. E, como sempre, se ele tem conexões entre os círculos dos católicos ricos, que sempre desempenharam um papel no avanço dos homens ao episcopado.
Podemos supor que, pelo menos nas próximas décadas, a Igreja continuará sendo governada por bispos. Mas talvez em breve haja uma verdadeira reversão nas relações entre a Cúria Romana e as Igrejas locais, graças à futura constituição apostólica para a reforma do governo central no Vaticano.
Além disso, em todas as instituições, sempre há alguma lacuna entre aqueles que supostamente devem estar no poder e aqueles que realmente têm poder – a lacuna entre a constituição escrita e a “constituição material” da Igreja.
Para além daquilo que o Direito Canônico diga, os bispos controlam a Igreja Católica muito menos agora do que em qualquer período anterior.
O poder que não impõe mais respeito e/ou fala com autoridade tende a se tornar vazio e geralmente é substituído ou obscurecido por outros.
Dado o óbvio colapso da autoridade episcopal nos nossos dias, devemos nos perguntar quem está substituindo ou obscurecendo o poder outrora exercido pelos bispos.
A situação varia de país para país. Mas, geralmente, podemos dizer que a contraparte automática aos bispos é o laicato. O problema é que, por trás do termo teológico e canônico “laicato”, há muitos tipos diferentes de católicos não ordenados.
Eles se dividem por gênero, status social e econômico, raça, orientações políticas e diferentes tradições de modelos de governança da Igreja em situações locais.
O acesso das mulheres ao poder na Igreja também depende das expectativas sociais e culturais locais sobre o papel das mulheres. E isso não pode ser mudado apenas pelo que o Direito Canônico diz sobre os leigos.
Em outras palavras, olhar para a luta pelo poder na Igreja como uma oposição entre o clero e o laicato é limitado. E, até certo ponto, é também um modo ideológico de entender o poder na Igreja Católica.
Para além dos leigos, existem outros segmentos dentro da Igreja que poderiam desempenhar um novo papel no sistema de poder católico.
Por exemplo, existem as ordens religiosas. Mas quase todos elas estão sofrendo de uma aguda crise de recrutamento, pelo menos no mundo ocidental.
E o fracasso em atrair membros jovens inevitavelmente levará ao desaparecimento de muitas dessas comunidades.
Mesmo que a vitalidade entre as várias ordens seja diferente em graus variados, todas elas têm uma coisa em comum – elas não ficaram imunes ao escândalo dos abusos sexuais, e isso acelerou o colapso da autoridade em sua liderança institucional.
Há também os novos movimentos eclesiais. Em grande parte, eles permaneceram em silêncio sobre a questão dos abusos sexuais clericais e não são uma parte significativa do debate sobre essa crise global. Qual o papel que eles poderiam desempenhar na atual crise católica?
Por um lado, os movimentos eclesiais nunca se interessaram pela reforma institucional, que é a questão inevitável que a crise dos abusos levantou.
Por outro lado, alguns desses movimentos – como os Legionários de Cristo, o Sodalício de Vida Cristã no Peru e outras entidades menos divulgadas – tiveram que enfrentar casos perturbadores e significativos de abuso sexual por parte de seus líderes.
Na crise global dos abusos sexuais, o que o atual silêncio dos movimentos nos diz sobre a sua vitalidade e o seu futuro na Igreja?
Além desses grupos, há ainda outros que podem exercer o poder na Igreja, apesar de não serem mencionados no Direito Canônico.
Um “player” emergente pode ser identificado como os grupos de católicos ricos que patrocinam iniciativas específicas através das mídias de massa e sociais católicas, financiam programas de evangelização e sustentam escolas católicas.
Mas houve pouca reflexão teológica sobre o papel desses grupos. E quase não houve nenhuma reflexão sobre as medidas legais que a Igreja precisa tomar para defender sua liberdade em relação a esses novos poderes.
O próximo conclave provavelmente nos oferecerá o quadro completo de quem está disputando o poder na Igreja.
É de extrema urgência dispensar a caracterização tradicional das lutas de poder na Igreja – Igreja versus Estado; clero versus leigos; bispos versus ordens religiosas; centro versus periferia… A teologia do laicato e a doutrina das relações Igreja-Estado são de uso limitado hoje.
Durante os últimos dois anos, a crise dos abusos mostrou que o poder do papado resistiu muito melhor do que o dos bispos ou o dos leigos.
A crise do episcopado resultou em um “grande sanduíche” das Igrejas locais, a partir de um papado mais ativista por um lado e de um Estado-nação mais intervencionista do outro.
Sem dúvida, há uma mudança em curso nos papéis de poder e de autoridade na Igreja.
Aqueles que estudam a Igreja devem olhar não somente para instituições visíveis, mas também para as outras redes e sistemas de influência menos visíveis e menos formalizados no catolicismo, tanto no nível material quanto no cultural-simbólico.
A ênfase do Papa Francisco na sinodalidade e na Igreja como “povo” é de grande ajuda, teologicamente, nessa situação crítica.
Mas essa ênfase teológica é apenas uma parte do quadro mais amplo das mudanças potencialmente massivas nos alinhamentos de poder no catolicismo global.
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As falhas do episcopado e o novo alinhamento do poder na Igreja. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU