18 Dezembro 2020
Reportagem acompanhou evento realizado por organização religiosa internacional que orienta jovens cristãos a abandonar “comportamento homossexual” e pessoas trans a reverter sua identidade de gênero.
A reportagem é de Bruno Fonseca, publicada por Agência Pública, 17-12-2020.
“Se você tem problema pra saber quem você é, você faz assim: fica pelado. Aqui não, por favor, no banheiro. Tira a roupa, abre as pernas e olha pra baixo. O que você tem aí embaixo? Não tem um pênis e um testículo? Mulher. Pronto. Acabou. Resolvido o assunto. Deus é Deus”, disparou ao microfone um dos muitos palestrantes daquela manhã, em um dos três dias do principal congresso atual sobre sexualidade cristã no Brasil.
Falas como essa, para que pessoas transexuais se identifiquem apenas com o sexo do nascimento, revezavam-se com orientações de pastores e pastoras para que gays, lésbicas e bissexuais deixem “comportamentos” homossexuais – “Eu fui gay e Deus me transformou”, afirmou um dos organizadores. “Eu não tenho mais problema de orientação sexual porque Jesus… Qual a orientação sexual de Jesus? É heterossexual. Então, se Jesus é, eu também sou”, continuou para uma plateia que assentia entusiasmada.
Os discursos ocorreram durante a última edição do congresso de sexualidade Exodus Brasil, em Campinas, São Paulo, no final de 2019. Essa foi a 16ª edição do evento, a última antes da pandemia do coronavírus, comandado pela organização de mesmo nome, Exodus – um grupo religioso internacional que, tal qual a passagem bíblica, cruzou fronteiras e se tornou uma das maiores entidades cristãs na atualidade a realizar e proclamar a “redenção da sexualidade”, como define o próprio grupo.
Oficinas, palestras e testemunhos compunham a programação voltada para troca de experiências e discussões teológicas sobre como os líderes e membros das diversas igrejas ali presentes poderiam orientar cristãos que vivem vidas e práticas LGBTQI+. Expressões como “abandono do comportamento homossexual” e “mudança de comportamento de prática homossexual” foram repetidas inúmeras vezes, junto a palavras como “restauração” e “renascimento”.
Fato é que, chamado de transformação ou outros termos, o objetivo central do congresso é claro: discutir como cristãos gays, lésbicas e bissexuais podem abandonar relações homossexuais, seja para se tornarem celibatários ou para terem relações hétero, e como transexuais podem reverter a transição e passar a se identificar com o sexo designado ao nascimento.
“Eu comecei a sentir aversão pela prática da homossexualidade”, testemunhou um dos palestrantes, para reações positivas da plateia.
Em Campinas, o bairro Swiss Park se escreve assim mesmo, em inglês. A grande área residencial é um subúrbio de condomínios fechados vigiados por empresas de segurança privada a cerca de 10 km do centro da cidade. É lá que se localiza o acampamento do Recanto Maanaim, ligado à Igreja do Nazareno, um sítio com um enorme pavilhão, casas, dormitórios, piscina, quadra e até mesmo um lago, onde a Exodus realizou o seu último congresso anual, nos fins de 2019.
Apesar das dimensões, o pavilhão lotou rapidamente com os frequentadores do congresso, vindos de todas as partes do Brasil durante o feriado de Proclamação da República. Ao menos 150 pastores, missionários, obreiros, irmãos e fiéis evangélicos e católicos se distribuíram em filas e mais filas de cadeiras plásticas posicionadas de frente para o grande palco e púlpito, onde uma enorme cruz de madeira era iluminada por luzes coloridas.
O congresso de sexualidade cristã da Exodus leva uma reunião de igrejas de várias vertentes e denominações. Presbiterianos, batistas, metodistas e mesmo católicos, do Sul ao Norte do Brasil, compartilhavam discordâncias e algumas alfinetadas, ainda que em tom de humor, das divergências teológicas entre si. Há, contudo, um consenso: não é possível se manter um bom cristão e ter relacionamentos homossexuais. Há duas escolhas: se tornar celibatário ou passar a se relacionar heterossexualmente.
“Sabe aquela história que o pessoal fala assim, Deus nos ama tanto que aceita do jeito que nós somos? Mais ou menos. Não é bem assim, não. Pera aí”, alertou um dos palestrantes. “É pecado. É pecado, sim, gente. É pecado”, afirmou sobre comportamentos homossexuais.
Um dos termos mais utilizados durante o congresso foi “mortos espirituais”. Ele define não apenas as LGBTQI+, mas pessoas que vivem em desacordo com os preceitos da sua igreja e não estariam em verdadeira união com Deus. Gays, lésbicas e bissexuais que frequentam igrejas e tentam manter virtudes cristãs se enquadrariam nesse exemplo de mortos espirituais, ou mortos-vivos, por manterem comportamentos sexuais fora dos “padrões bíblicos”.
O conceito, contudo, também se aplica a heterossexuais que não sigam o que defendem os líderes religiosos. Atitudes como lascívia, traição e mesmo violência doméstica e sexual também levam pessoas a serem consideradas “mortos espirituais”.
Pago, o congresso não era exclusivo para membros de igrejas. Um dos participantes, revelou ter descoberto o grupo pela internet, após leituras sobre restauração da sexualidade. Havia, contudo, uma preocupação constante: os organizadores proibiram veemente fotografias ou vídeos do público para evitar possíveis exposições de pessoas LGBTQI+ que não houvesse revelado sua identidade aos seus familiares e conhecidos. E, segundo a direção, o público estava terminantemente proibido de falar pelo congresso com a imprensa e deveria informar aos organizadores qualquer solicitação de jornalistas. “Se alguém chegar e falar ‘queria fazer uma entrevista, sou da TV tal’, você chama a diretoria”, avisou um dos organizadores. Não houve, contudo, pedidos para que os participantes identificassem se eram jornalistas.
A primeira “solução” que o congresso apresentou para quem se desvia da norma religiosa foi o celibato. “Você é ex-gay? Eu não. Existe isso? Então, você é hétero? Eu não sou hétero. Não existe isso. Eu não sou um ser sexual”, disse um dos palestrantes, simulando uma conversa. Após um “passado gay”, inclusive com um relacionamento estável, ele testemunhou estar há anos sem ter relações homossexuais, ainda que, mais à frente, tenha admitido ainda sentir desejos. “Têm diminuído.”
Ao menos dois presentes se disseram celibatários durante o congresso. Não houve menções a pessoas que se identificam como assexuais, embora um dos palestrantes tenha zombado da inclusão de novas identidades além das LGBT – “Tá faltando letra, bizarrices que o inimigo tá criando de falsa identidade”, nas palavras dele.
O celibato é tratado com cautela, contudo. Isso porque se reconhece a dificuldade de LGBTQI+ aderirem e reprimirem seus desejos. Houve relatos de homens que há mais de dez anos lutam contra atrações sexuais. Um deles reconheceu que precisou interromper o aconselhamento a um jovem gay por ter se sentido atraído por ele. “Não é incomum o cara se apaixonar pelo conselheiro. Também não é incomum o conselheiro falar ‘uau, que cara legal’”, disse um dos palestrantes. Não ficou claro se há famílias que levam filhos menores de idade para orientação.
A segunda orientação do congresso da Exodus é que o celibato evolua para comportamentos heterossexuais. Ao longo do evento, várias pessoas relataram que homens com experiências homossexuais se casam com mulheres, algumas depois de passarem por relacionamentos abusivos e separações. Houve quem elogiasse homens “ex-gays” como bons maridos por, segundo as falas, apresentarem menos comportamentos violentos tipicamente masculinos.
“Eu digo, assim, por homens ainda não sinto nenhuma atração. Estou fazendo de tudo para quem sabe um dia sentir ao menos uma apreciação”, disse uma jovem ao microfone, visivelmente nervosa. Além das orientações nos ministérios e grupos de jovens nas igrejas, líderes religiosos instruem pais sobre restaurar a sexualidade de filhos por meio de conversa e cursos.
Há casas para que jovens com atração homossexual “aprendam a deixar esses comportamentos indesejados”, como são descritos, por meio de oração, trabalhos manuais e convívio com membros mais experientes das igrejas. Elas oferecem cursos, organizados em módulos, para que os participantes desenvolvam leituras bíblicas e adequem seus comportamentos sexuais aos padrões bíblicos. Os retiros podem levar semanas ou meses, dependendo da disponibilidade dos jovens e da condição financeira para arcar com os custos do programa.
Além disso, fora a união religiosa, o casamento de um “ex-LGBTQI+” é almejado como um caminho para a reprodução: uma união que não gera filhos biológicos foi apontada por um dos palestrantes como ação de Satanás. “E o meu pecado eliminou a minha capacidade de uma descendência. Que peso profundo”, testemunhou um homem. “Que o senhor esteja, Deus, conduzindo-o para aquilo que o senhor tem pra ele em termos de família, em termos de casamento, filhos”, acrescentou uma pastora.
Se, por um lado, gays, lésbicas e bissexuais devem “deixar comportamentos homoafetivos” para se tornar celibatários ou mesmo ter relações heterossexuais, homens e mulheres transexuais precisam descartar suas identidades para serem “restaurados”.
O julgamento sobre transexuais, sobretudo os que realizaram transição hormonal ou procedimentos cirúrgicos, é ainda mais severo. Na lógica do congresso de sexualidade cristã, transexuais não podem se considerar “vivos espiritualmente” mesmo que não tenham práticas sexuais homossexuais. Isso porque, em todas as palestras, se reafirmou inconcebível qualquer identidade que não seja a de homem ou mulher, de acordo com a genitália ao nascimento.
“Se você tem problema pra saber quem você é, você faz assim: fica pelado. Aqui não, por favor, no banheiro. Tira a roupa, abre as pernas e olha pra baixo. O que você tem aí embaixo? Não tem um pênis e um testículo? Mulher. Pronto. Acabou. Resolvido o assunto. Deus é Deus”, disse um dos palestrantes. Não foi mencionada no congresso a identidade de pessoas intersexuais.
As falas sobre transexuais são direcionadas ao que congressistas apontam como “confusão” ou “falsa identidade”, uma deturpação de um corpo que teria sido concebido por Deus para ser exclusivamente macho ou fêmea, sem que a identidade de gênero possa ser diferente da biológica. “Você não precisa ser machista, você pode ser um homem delicado, você pode ser um homem sensível. Mas você vai ser homem. Deus criou homens e mulheres. Só, acabou, tá bom?”, afirmou outro palestrante.
A primazia do sexo biológico, designado ao nascimento, orienta todas as divisões de gênero feitas pelo congresso. Curiosamente, mesmo num ambiente onde vários homens admitem sentir atração por outros, os participantes que optam por dormir no retiro são divididos apenas em grupos de homens e mulheres. No dormitório masculino, havia sempre um homem mais velho de vigia.
Os exemplos de pessoas que aceitam sua sexualidade LGBTQI+ são tratados, majoritariamente, de forma negativa: a transexual que se prostitui e usa drogas, o gay que tentou ou cometeu suicídio, os relacionamentos que terminam em traição e, claro, menções a infeções sexualmente transmissíveis (ISTs), como HIV, diretamente relacionadas ao que foi chamado de “comportamento homossexual”.
O contexto social desses “problemas”, contudo, não é considerado: não se menciona que famílias expulsam transexuais de casa e que essas pessoas enfrentam dificuldades para conseguir emprego justamente pelo preconceito social. Tampouco se fala que preconceito, até por motivações religiosas, é um dos fatores que levam a taxas de suicídio elevadas entre jovens LGBTQI+. Um estudo focado em jovens lésbicas, gays e bissexuais feito pela Universidade Columbia, nos Estados Unidos, mostrou que esse grupo tem uma propensão cinco vezes maior ao suicídio que pessoas heterossexuais, mas o fator determinante é justamente o suporte social e familiar que esses jovens recebem.
Nas palestras, não se menciona também como a falta de educação sexual nas escolas e no âmbito familiar sobre relacionamentos LGBTQI+ pode agravar o desconhecimento de métodos de prevenção a ISTs. E, claro, não ganham destaque os exemplos de LGBTQI+ “do mundo” que possuem relacionamentos duradouros, são bem-sucedidos em suas profissões ou contam com apoio dos familiares.
Assim como outros grupos que defendem práticas de alteração de comportamentos sexuais, alguns dos participantes do congresso da Exodus associam traumas e abusos sexuais à homossexualidade. Um dos presentes afirmou que comportamentos gays estariam relacionados a abusos que meninos sofrem na infância. Outra palestrante associou comportamentos homossexuais a “desvios na sexualidade”.
A retórica de que LGBTQI+ se comportam assim por ter um histórico de traumas ou abusos sexuais é antiga e foi utilizada por defensores de terapias de reversão sexual. Em 2008, Rozângela Justino – psicóloga que foi denunciada ao Conselho de Psicologia por fazer tratamento de alteração da sexualidade – afirmou, em um seminário sobre influência da pornografia no abuso e exploração sexual de crianças e adolescente, que “os travestis e muitas pessoas que desenvolveram a homossexualidade sempre têm uma experiência de abuso sexual”.
No ano passado, Rozângela foi presidente de uma chapa que concorreu ao Conselho de Psicologia com a promessa de revogar duas resoluções do conselho que proíbem tratamento de conversão a pessoas LGBTQI+. Na época da campanha, membros da chapa se encontraram com a pastora Damares Alves, ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, a pretexto de apresentar o “Movimento Ex-Gays do Brasil”, organização recém-criada que diz ajudar “pessoas convertidas ao evangelho de Cristo, que por convicção espiritual nesse processo não mais desejam caminhar na homossexualidade”. A chapa não foi eleita.
“Lacração, bafo, bicha, arraso”, não faltam gírias associadas à comunidade LGBTQI+, que despertam gargalhadas entre a plateia. Ao mesmo tempo que não poupam palavras duras sobre homossexuais, trans e bissexuais – “falsa identidade”, descreveu um dos palestrantes –, os líderes do congresso cristão buscam, a todo momento, manter um ambiente descontraído. As próprias lideranças são, na maioria, mulheres ou homens que já se identificaram como gays e transexuais. Apenas um pastor, entre os organizadores do evento, apresentou-se como um homem cis heterossexual, sem relatar experiências homossexuais passadas.
Longe de estereótipos de uma “cura gay” operada em quartos escuros de igrejas, autoflagelação ou ameaças diretas, o caminho que a Exodus indica para abandonar a homossexualidade é, antes de tudo, jovem, contemporâneo.
O público era predominante de pessoas que se apresentavam como mulheres, algumas jovens adolescentes ou nos seus 20 e poucos anos, mas principalmente as que pareciam ter mais de 30, 40, algumas com mais idade. Já a maioria dos homens era visivelmente mais jovem, adolescentes ou homens aparentando menos de 30 anos. Muitos deles talvez LGBTQI+. Isso porque, ao longo dos três dias de encontro, vários acenavam em concordância às falas e testemunhos de palestrantes sobre experiências homossexuais pregressas. Alguns deram os próprios relatos de frequentar ambientes LGBTQI+ ou citaram interesses e atração por homens.
Já os relatos das mulheres sobre experiências homossexuais foram raros, e apenas das mais jovens. As pastoras testemunharam sobre seus amigos gays, não sobre elas. E as mulheres mais velhas, por sua vez, acenavam a relatos de esposas que se casavam com homens que haviam “abandonado um passado homossexual”.
A maioria dos homens ali evitava bermudas, vestindo calças compridas, mas havia quem usasse as mesmas calças skinny e mocassins coloridos que anúncios de marketing direcionam ao público LGBTQI+. Não faltavam cabelos cortados estilo undercut, piercings e tatuagens. Os jovens se mostravam alegres e curiosos. Uma das mulheres confessou estar ali para aproveitar uma viagem no feriado. E era permitido utilizar a piscina – com indicação de trajes modestos, contudo.
As lideranças da Exodus perceberam – e explicitam isso – que por meio de ameaças não iriam manter pessoas LGBTQI+ na igreja, muito menos os jovens. “Se você olhar a logomarca, você vai ver. Nós temos ali uma travesti, um black power e um punk. Isso pra hoje, gente, é meio óbvio. Agora, quase 20 anos atrás era um escândalo. Compreende?”, comentou uma das palestrantes.
A própria condução das palestras e dos cultos, alguns com horas de duração, ora assume tons mais assertivos de repreensão da homossexualidade, ora não. O congresso costura uma linha sutil e intricada de momentos de clara repreensão de atividades LGBTQI+ – a parada do orgulho é duramente apontada como imoralidade, e movimentos e ativistas gays e lésbicos são criticados – com falas que pedem respeito e condenam a violência. “Nós nunca transformaremos nada através da repressão, muito menos da violência. A história já mostrou isso”, afirmou um palestrante.
Nesse fluxo entre afirmações diretas e outras sutis, a Exodus parece oferecer um espaço de socialização para quem se identifica LGBTQI+ e cristão, mas sofre nesse paradoxo. Há uma meta, contudo: algum dia, será preciso abandonar os comportamentos homossexuais ou a identidade transexual, ainda que essa data leve anos, décadas para chegar.
Dessa forma, o congresso se distancia de igrejas inclusivas ou progressistas, evangélicas ou católicas, algumas com líderes abertamente LGBTQI+ e que criticam experiências de reversão sexual sofridas no próprio meio religioso. “Então, essas igrejas abraçam o liberalismo sexual do homem, incluindo a família gay. É graça? Não, é a desgraça”, afirmou um dos palestrantes.
O caminho para a restauração da Exodus, ainda que jovem e contemporâneo, requer, para o cristão, a abdicação das “práticas homossexuais” e de qualquer identidade que não seja a designada pela genitália. “Mesmo que você seja abertamente gay ou tenha sido um gay enrustido, daquele que não quer se assumir ou tenha se assumido totalmente, Deus pode fazer o impossível”, concluiu outro palestrante.
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Maior congresso de sexualidade cristã do Brasil quer “restaurar” LGBTQI+ - Instituto Humanitas Unisinos - IHU