17 Dezembro 2020
“Mesmo no meio desse furdunço todo que nós estamos vivendo e dessas condições tão horrorosas, a gente acaba tendo de falar de Beethoven porque, num certo sentido, falar de Beethoven é falar de nós, do que nós somos”, diz ao Tumatéia o jornalista Irineu Franco Perpetuo ao comentar a trajetória e a obra do compositor alemão quando se completam 250 anos de seu nascimento.
A reportagem é de Eleonora de Lucena e Rodolfo de Lucena, publicada por Tumateia, 16-12-2020.
“Beethoven é um dos ícones que definem nossa cultura. A cultura, que está sendo tão criminalizada e atacada nesta época, nessa variante bufa e trágica do fascismo que a gente está tendo o desprazer de viver, dentro desse bem simbólico chamado cultura, que nos define, que é o que nos separa dos outros animaizinhos, uma das personalidades principais é Beethoven. A gente pode pôr a música de Beethoven ao lado das obras de Shakespeare, da Capela Sistina, da Acrópole, da Ilíada, da Odisseia. Quando a gente tiver de fazer um cânone da nossa cultura vai entrar Beethoven.” (Que é retratado aqui no TUTAMÉIA pelo artista gráfico Fernando Carvall, a quem agradecemos pela colaboração).
Apesar dessa grandiosidade toda, era uma figura humana com os defeitos humanos, não deixa de notar Perpetuo, que é especialista em música erudita. Fala, por exemplo, da personalidade difícil do compositor: “Desde a juventude, ele era casca grossa, mesmo para os padrões da época. Ele sempre foi bastante impulsivo, bastante irascível. Não parava empregada na casa dele. Tem um depoimento de Rossini, que encontrou Wagner em Paris, conta a ele que conheceu Beethoven em Viena e que ficou muito espantado com a bagunça e a sujeira da casa. O cara era do século 19; a gente, do século 21, ia achar o Beethoven muito porcão. Se o pessoal do 19 já achava complicado…”
Mas a entrevista, claro, é centrada na obra do compositor alemão.
O jornalista explica: “Beethoven é uma figura estratégica num momento em que vai acontecer uma mudança muito importante na história da música. Ele está num momento, no final do século 18 –nasceu em 1770, há 250 anos, morre em 1827. Nessa época estão acontecendo duas viradas. A primeira é o deslocamento geográfico: até então, a música ocidental é uma arte de italianos, mesmo quando não praticada por italianos. Há o deslocamento para Viena, para um eixo germânico. Há também o deslocamento de interesse: até então, o que dava notoriedade para o músico era a música vocal, as óperas; e ali está se estabelecendo o primado da música instrumental, que ganha autonomia e ganha protagonismo. E aí o grande personagem é Beethoven, que confirma o primado da música germânica e estabelece a primazia da música instrumental”.
Falamos sobre os parcos amores de Beethoven, sobre sua esperteza para conseguir ganhar a vida –um dos primeiros músicos que não é empregado de ninguém–, sobre a surdez que lhe infernizou a vida, sobre o tratamento terrível que dá ao sobrinho, levando-o a tentar o suicídio. Conversamos sobre a única ópera de Beethoven – Fidelio – e, claro, sobre as sinfonias.
Sobre a Nona, Perpetuo diz: “É impressionante. O cara não ouviu uma nota da Nona. Estava surdo quem nem a fechadura da porta de minha casa. Bolou tudo isso dentro da cabeça dele. Quando ele descobriu que estava ficando surdo, fez a Eroica (Sinfonia Número 3). Como fazer uma obra ainda maior que a Eroica? Ele então convocou vozes, fez uma orquestra ainda maior… Esse tipo de ambição artística, esse tipo de voo criativo nunca o abandonou. Ele está lá, surdo, antissocial, doente, mas não quer saber: continua olhando para a frente e olhando com otimismo. Ela pega esse amor do final da ópera Fidelio e dobra a aposta.”
É um ensinamento de humanidade e um desafio aos cânones e aos saberes constituídos: “Tem que gente que fala: ah, as pessoas envelhecem, ficam mais conservadoras do ponto de vista político, do ponto de vista estético. Bom, no caso do Beethoven, do ponto de vista estético, a gente pode cravar que não. Ele ia envelhecendo e ia dobrando a aposta. Ele jamais voltou para aquilo que o pessoal do érre-agá de hoje chamaria de zona de conforto. Com Beethoven, o planeta não era zona de conforto, e todo mundo que cercava Beethoven dizia que conviver com ele não era zona de conforto mesmo”.
São lições estéticas, mas também políticas, que podem e devem ser vividas sempre, hoje mais do que nunca, como anuncia Irineu Franco Perpetuo: “Não vamos deixar essas caras aí dizerem que arte não serve para nada, que artista é tudo vagabundo. Pensem em você na pandemia. Aqueles que nós que não surtaram na pandemia, não surtamos completamente justamente porque tínhamos a arte conosco, a arte para nos acompanhar. Quando acabar essa história de pandemia, a gente tem de reafirmar esse caráter essencial, e não cosmético e acessório, da arte. Nós somos todos Beethoven! Beethoven é vida. Nós queremos Beethoven. E Emicida, e todos os Beethovens de suas diversas áreas e épocas e constituições sociais, sempre, sempre, como nossa essência. Eles nos devem essa vacina, eles nos devem hospitais, e eles nos devem também Beethoven. Vamos cobrar isso deles”.
Haveremos de superar tudo isso, e Beethoven estará conosco: “Vivemos esse ambiente, essa variante bufa e trágica do fascismo que temos aqui não me parece muito compatível com Beethoven. A Nona Sinfonia é o que gostaremos de ouvir, será nossa grande catarse quando tivermos dado o pontapé nos fundilhos dessa malta que nos assola. Quando eles tiverem saído, gostaria de celebrar isso com a Nona de Beethoven”.
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Somos todos Beethoven, diz Irineu Franco Pérpetuo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU