07 Junho 2017
Levar a um lugar acusticamente “hostil” a grande música é sempre uma aposta. Mas se quem a faz é uma das maiores batutas de hoje, e o lugar é a “domus” por excelência de Milão, o risco torna-se acontecimento. É o que acontece hoje [sábado passado, 3 de junho], na catedral de Milão: o indiano Zubin Mehta, à frente da Orquestra e do Coro do San Carlo de Nápoles dirige a Nona Sinfonia de Beethoven. Título do evento: “Concerto pela Europa”. Público previsto: mais de 2.000 pessoas, cuja visão e audição também foi garantida nas naves laterais graças a amplificação e telões.
A reportagem é de Nicoletta Sguben, publicada por La Repubblica, 03-06-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Maestro, a acústica lhe preocupa?
Um pouco sim. Eu estou acostumado a tocar na igreja: como diretor da orquestra do Maggio Fiorentino, eu passei por quase todas as da Toscana, incluindo a grande Catedral de Pisa. Mas, desta vez, é diferente: o templo sagrado de Milão é realmente majestoso. Os técnicos trabalharam por muito tempo para conter a reverberação e a dispersão do som. Mas vamos descobrir apenas esta noite, com a igreja cheia de público, como isso vai acabar. A prova com a catedral vazia vale até um certo ponto.
Primeira vez na catedral milanesa?
Como turista, não; como musicista, sim. Em meio século de concertos em Milão, eu nunca tinha dirigido no Duomo. Mesmo aos 81 anos, há uma primeira vez.
A Nona do leigo Beethoven não é propriamente uma peça sagrada. Por que executá-lo na igreja, correndo o risco de uma escuta abaixo do ideal?
Porque essa sinfonia fala de ideais altos e universais: fraternidade, liberdade, solidariedade. Ideais “sagrados” para o ser humano, expressados explicitamente no Ode à Alegria de Schiller, em cujos versos interveio o próprio Beethoven. Uma sacralidade que atinge o seu ápice na Nona e na Missa Solemnis, mas cujo precedente está na Terceira sinfonia Heroica e na ópera Fidelio, ambos trabalhos com uma forte mensagem ética: independência do espírito, emancipação da opressão.
Há a necessidade disso.
Sim, hoje é mais importante do que nunca que a música não seja apenas bem executada, mas também que transmita valores positivos e que saia também dos lugares mais canônicos. É importante que as pessoas possam assistir gratuitamente a eventos desse tipo em lugares-símbolo de uma cidade.
Um diretor como o senhor, que se sente cidadão do mundo, à frente de uma formação napolitana em um concerto intitulado à Europa desejado pela Veneranda Fabbrica: qual o nexo?
Lançar uma ponte musical entre Nápoles e Milão em nome da fraternidade europeia. Muitas polêmicas ainda dividem o Norte do Sul. Eu acredito que não existam Ligas que as mantenham: há apenas uma única Itália heroica, à qual a Europa deve olhar com admiração, que a cada dia salva a vida de centenas de migrantes que desembarcam no Sul.
Lembra-se da primeira vez em que executou a Nona de Beethoven?
Claro, que pesadelo! Eu tinha 25 anos e dirigiu a Filarmônica Checa: uma orquestra muito grande e bem navegada que logo intuiu que eu nunca tinha executado aquela sinfonia. Eu não estava tão bem preparado, é verdade, mas eles não me trataram nada bem. Além disso, o coro cantava em checo, e eu não entendia uma palavra. Não me convidaram mais por muitos anos, e quando o “embargo” terminou, eu voltei com a Oitava de Bruckner e a Sagração da Primavera. Eu acho que deixei uma impressão totalmente diferente.
Como se relaciona com a Orquestra do San Carlo? O senhor é diretor honorário há apenas um ano.
Posso dizer que eu a conheço bastante bem. Fizemos Tristão, a Terceira de Mahler, a Quarta e a Sexta de Tchaikovsky e Carmen, ópera que levaremos para Bangkok. Temos planos para o futuro. De todos os modos, eu já a tinha dirigido no passado: uma das lembranças mais bonitas é quando eu a uni à Orquestra do Maggio precisamente na Nona, em um concerto beneficente na Praça do Plebiscito para o Teatro San Carlo.
O senhor também executou Beethoven no Vaticano.
Sim, com o Maggio, tocamos a Terceira Sinfonia, e lembro que Bento XVI fez um belíssimo discurso sobre o compositor. Assim, de improviso, 15 minutos sem nenhum texto.
Dedicaria essa Nona ao Papa Francisco?
Dedicamo-la ao entusiasta idealizador desse concerto: o diretor da Veneranda Fabbrica, Gianni Baratta, falecido recentemente. Mas ao Papa Francisco, mais cedo ou mais tarde, eu vou tocar um tango. Tenho certeza de que ele, como argentino, vai apreciar.
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“Na catedral com Beethoven, sonhando com um tango para o Papa Francisco.” Entrevista com Zubin Mehta - Instituto Humanitas Unisinos - IHU