15 Outubro 2020
"Ao afirmar uma liberdade abstrata que não tem condições de atravessar a experiência do limite significa sustentar o caráter ilusório do ideal diante de uma realidade traumática que não pode ser negada", escreve Massimo Recalcati, psicanalista italiano e professor das universidades de Pavia e de Verona, em artigo publicado por La Stampa, 13-10-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
São cada vez mais numerosas as vozes intelectuais, mais ou menos nobres, de direita e de esquerda, que se ergueram vigorosamente nas últimas semanas, alarmadas nem tanto pela segunda onda do vírus, mas pela forma como a gestão sanitária da epidemia está gerando o risco de uma verdadeira virada totalitária em nosso país, a Itália. A redução das liberdades individuais, o esvaziamento da democracia parlamentar prejudicada pelo excessivo número de decretos-lei, uma legislação cada vez mais subserviente à emergência, causam temor pelo destino da nossa democracia. A virada liberticida estaria diante dos olhos de todos: uma ditadura sanitária teria tomado o lugar de nossa democracia. Esse tipo de leitura parece duplamente culpadas aos meus olhos.
A primeira culpa consiste em endossar uma subestimação da dimensão clínico-epidêmica da covid-19. É a culpa grave de quem gostaria de eliminar a morte, a doença e o sofrimento que nos tem assolado nos últimos meses. Essa culpa por si só deveria ser motivo suficiente para moderar o tom, ser mais humilde e mais respeitoso com as pessoas e famílias tragicamente atingidas pela doença.
Invocar a leitura geral dos movimentos de grupo - por exemplo, a pressão por uma legislação baseada no estado de emergência que a partir de 11 de setembro parece dominar a vida política do Ocidente - mas negligenciando a dimensão singular da perda e da dor, corre o risco de ser a expressão de um terrível vício fundamental da política: fazer prevalecer os discursos gerais-universais sobre a consideração da dimensão singular da vida e de sua fragilidade.
Por isso, um grande psicanalista italiano como Evio Fachinelli, diante do misterioso desaparecimento do corpo do líder comunista chinês Lin Piao, que havia caído em desgraça junto aos partidários de Mao dentro de seu partido, insistia em pedir notícias suas. Onde está o corpo de Lin Piao?
Enquanto os doutos comentaristas de esquerda consideravam seu desaparecimento algo insignificante, um reflexo totalmente secundário de um jogo muito mais amplo - o da luta interna do partido por sua liderança -, o psicanalista não recua em apresentar sua incômoda e emblemática pergunta que recorda ao universalismo abstrato do discurso político do caráter insuprimível da dimensão singular da existência: onde está o corpo de Lin Piao? O mesmo acontece hoje, com aqueles que denunciam na legislação emergencial uma ditadura sanitária diante do sofrimento de pessoas e famílias atingidas pelo vírus.
A segunda grave culpa diz respeito à intolerância frente à experiência do limite que a gestão da emergência sanitária necessariamente teve que reafirmar em nossa vida individual e coletiva. Essa intolerância deriva diretamente de uma concepção puramente libertina de liberdade que vive a experiência imposta pelo limite como o resultado liberticida de seu abuso ditatorial. Usar máscara, abrir mão da vida noturna, da liberdade de movimento, das festas com os amigos, enfim, atender aos limites impostos pela lei ao exercício efetivo de nossa liberdade é visto como um atentado autoritário contra nossos direitos inalienáveis.
A ditadura sanitária atinge a nossa liberdade individual no coração. Seríamos, assim, todos prisioneiros de um regime que exerce um poder de controle tão abusivo quanto ilimitado. O diagnóstico biopolítico de Foucault seria plenamente confirmado. O que, no entanto, não se pode ler desta forma é o quanto a exigência de segurança e de proteção da vida nem sempre deva endossar o fanatismo higienista do biopoder, o quanto a solidariedade não necessariamente deva evoluir para uma compactação totalitária do corpo social, o quanto a experiência do limite não seja apenas uma restrição repressiva, mas o encontro com uma alteridade que nos educa a considerar a função virtuosa de seu trauma.
Por outro lado, ao afirmar uma liberdade abstrata que não tem condições de atravessar a experiência do limite significa sustentar o caráter ilusório do ideal diante de uma realidade traumática que não pode ser negada.
Deveríamos, de fato, lembrar que todo negacionismo é contornar o trabalho atroz, mas necessário, do luto, com respeito, acima de tudo, à nossa onipotência. Como Fachinelli insistia em fazer, deveríamos sempre nos perguntar onde está o corpo de Lin Piao, nunca esquecer o caráter singular da vida, a sua irremediável fragilidade.
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Os paradoxos da tirania sanitária - Instituto Humanitas Unisinos - IHU