Como parte da nossa longa cobertura da Fratelli Tutti, a última encíclica do papa Francisco, a America Magazine pediu a muitos teólogos e especialistas para contribuírem com breves respostas, dando suas perspectivas sobre o potencial impacto e as partes mais importantes.
Os artigos são de Vincent Miller, Kate Ward, Drew Christiansen e Kevin Ahern, publicados por America, 09-10-2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Com o lançamento de cada encíclica, há uma corrida para avaliar o que há de novo e digno de nota, para encontrar as linhas mais dignas de mídia e tuitáveis. Há muitos delas em “Fratelli Tutti”: críticas enérgicas aos efeitos do capitalismo e da tecnologia, uma rejeição magistral inequívoca da pena de morte e o que é talvez a denúncia de mais consistência da Igreja contra o nacionalismo e o populismo desde “Mit Brennender Sorge”, de 1937. Mas focar nas passagens que se destacam pode levar a pessoa a perder o trabalho do todo.
“Fratelli Tutti” é cuidadosamente construída de uma forma que revela um aspecto distinto do ministério papal do papa Francisco. A carta exorta fortemente os cristãos a buscarem a intimidade da amizade social, em vez do descarte e indiferença do capitalismo contemporâneo ou a exclusão violenta do nacionalismo populista. Muito mais profunda do que uma discussão ou catequese, porém, a encíclica é um trabalho de discernimento espiritual.
O coração de “Fratelli Tutti” é a reflexão de Francisco sobre o Bom Samaritano, que ele oferece na modalidade dos Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loyola. Em vez de buscar uma “moralização abstrata” ou uma “mensagem social e ética”, Francisco convida-nos a entrar nesta parábola evangélica. As palavras de Cristo ao estudioso da lei são novamente dirigidas a nós: “Com qual das pessoas você se identifica?... com qual desses personagens você se parece?”. Enfrentamos uma escolha fundamental. “Aqui, todas as nossas distinções, rótulos e máscaras caem: é a hora da verdade. Vamos nos curvar para tocar e curar as feridas dos outros?”.
Muito mais profundo do que uma discussão ou catequese, “Fratelli Tutti” é uma obra de discernimento espiritual.
O foco no discernimento marcou o papado de Francisco desde o início. Olhando para trás, é impressionante o quanto ele discutiu sobre discernimento em sua entrevista com Antonio Spadaro, s.j., aquele primeiro vislumbre de seus pensamentos sobre o papado. Ele não se ofereceu como um líder heroico a ser seguido ou um estudioso brilhante com as respostas adequadas. Em vez disso, Francisco procurou promover processos como os sínodos nos quais a Igreja pudesse ouvir, discernir e agir coletivamente (este foco em ouvir faz da ausência de vozes femininas em “Fratelli Tutti” ainda mais chocante).
Nesse modo de discernimento, “Fratelli Tutti” entra com força na política. Francisco retrata os populismos doentios que poderiam ser retirados de eventos da atual campanha eleitoral. A palavra “muros” aparece 14 vezes como um símbolo de nossa tentação de nos isolar das necessidades dos outros. A reafirmação de Francisco sobre a inadmissibilidade da pena de morte e seu apelo à sua abolição não termina com anátemas, mas em voz pastoral: “Peço aos cristãos que permanecem hesitantes neste ponto, e aqueles que são tentados a ceder à violência de qualquer forma”, que entrem em histórias bíblicas que encontram sua expressão mais completa na ordem de Jesus a um discípulo de “Ponha sua espada de volta no lugar; pois todos os que tomarem a espada morrerão pela espada. ”
Aqui, mais uma vez, Francisco não compactou isso em uma proibição moral, mas a apresenta como uma ação “do coração de Jesus” que fala ao presente “como um apelo duradouro”, ao qual cada um de nós deve decidir como responder. Em alguns setores da igreja, o ensino social é posto às margens da preocupação cristã; aqui, Francisco mostra que ele brota do coração do Evangelho. Em “Fratelli Tutti”, Francisco fala a uma igreja polarizada e nos chama não apenas para corrigir nossa política, mas para discernir as profundas apostas espirituais em suas profundezas.
*Vincent Miller é cátedra Gudorf de Teologia Católica e Cultura na Universidade de Dayton.
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Com detalhes cuidadosamente observados, “Fratelli Tutti ” fala sobre o caos, o medo e a perda que permeiam 2020 enquanto faz ressoar um chamado atemporal para nos tornarmos melhores cidadãos em nossas comunidades, nossas nações e no globo. Sem limitar o futuro que o documento vislumbra, vejo três desafios particulares para os católicos nos Estados Unidos.
Com “Fratelli Tutti”, o papa Francisco convoca os católicos dos EUA para:
1. Quebrar nosso vício de violência retributiva. A maioria dos católicos estadunidenses sabe que a Igreja há muito se opõe à pena de morte. Em “Fratelli Tutti”, Francisco nos convida a rejeitar mais formas de violência retributiva que são endêmicas em todos os Estados Unidos, incluindo sentenças de prisão perpétua e o que ele chama de “execuções extrajudiciais”. Como residente nos Estados Unidos no ano de 2020, ouvi Francisco falando sobre nossa realidade ao condenar “homicídios cometidos deliberadamente por certos estados e por seus agentes, muitas vezes apresentados como confrontos com criminosos ou apresentados como consequências não intencionais do razoável, necessário e uso proporcional da força na aplicação da lei”. Quem pode ler isso e não pensar imediatamente em assassinatos de pessoas desarmadas, negras, latinos ou com transtornos mentais, ações que a polícia, seus sindicatos e seus apoiadores tentam racionalizar exatamente como o Papa descreve? Francisco diagnostica corretamente essas mortes extrajudiciais como desnecessárias para manter as pessoas seguras e como violações profundas da dignidade humana universal.
2. Aceitar o ensino da Igreja sobre a economia e seus propósitos. Francisco não inova aqui, mas reitera pelo menos duas visões tradicionais da Igreja não amplamente aceitas nos Estados Unidos. Voltamos aos primeiros cristãos: O direito à propriedade privada não é absoluto, mas subordinado à verdade maior de que os bens da terra são destinados a todos. Como digo a meus alunos, enquanto houver pessoas com necessidades, a Igreja questionará o direito de se possuir mais do que aquilo que se precisa – não importa se você merece. Outro ensinamento da Igreja sobre economia que muitos americanos ainda não aceitaram totalmente é que não se pode esperar que o mercado resolva todos os nossos problemas. Francisco chama isso de “dogma de fé neoliberal”.
3. Valorizar a política pelo que ela pode ser, e não pelo que ela é. O papa Francisco reconhece que muitas pessoas hoje desconfiam da política, muitas vezes por boas razões. Como todos nós, os políticos falham no amor universal: “Coisas que até poucos anos atrás não podiam ser ditas por ninguém sem o risco da perda do respeito universal, agora podem ser ditas impunemente e nos termos mais cruéis, até mesmo por algumas figuras políticas”. O nacionalismo violento e a xenofobia estão aumentando em muitos países, mostrando que ainda não entendemos o que significa ser uma comunidade humana universal. E, no entanto, Francisco vê um papel ativo e vital para a política no caminho para a fraternidade universal e a paz social.
Francisco vê uma vida política caracterizada pelo diálogo em que valorizamos nossos próprios pontos de vista, mesmo quando “reconhecemos o direito de outras pessoas de serem elas mesmas e de ser diferentes”. Ele modela isso com declarações de apreço por aqueles de outra fé ou sem fé, incluindo a observação de que “aqueles que se dizem incrédulos” podem fazer bem em cumprir a vontade de Deus. Francisco reconhece que a religião pode ser mal utilizada na política, inclusive para demonizar os outros, mas exorta aqueles que têm pontos de vista diferentes a irem além da “falsa tolerância” para a busca mútua da verdade.
Tive que pesquisar sobre o “poliedro”, a imagem de Francisco para uma sociedade onde a diferença é valorizada. É uma forma tridimensional com muitos lados e formatos diferentes. Ao contrário de um cubo, cujos lados são todos quadrados iguais, um poliedro chama a atenção com sua complexidade. Sua beleza e sua própria natureza de poliedro vêm do fato de ser definida pela diferença. Que os católicos norte-americanos sigam o exemplo de Francisco ao reconhecer o direito dos outros de serem diferentes, mesmo enquanto dialogamos a partir dessa diferença em direção à verdade de que todos pertencemos uns aos outros.
*Kate Ward é professora assistente de teologia ética na Marquette University. Sua pesquisa e ensino se concentram em ética econômica, ética da virtude e método ético.
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Em sua nova encíclica “Fratelli Tutti”, o papa Francisco deu mais um grande passo para distanciar a Igreja Católica de seu apoio tradicional à teoria da guerra justa. Ele escreve: “É muito difícil hoje em dia invocar os critérios racionais elaborados nos séculos anteriores para falar da possibilidade de uma ‘guerra justa’”.
“Fratelli Tutti” é o último de uma série de pronunciamentos de papas recentes expressando ceticismo sobre a continuidade da viabilidade dessa tradição. O que uma vez descrevi como “pensamento estrito de guerra justa” tornou-se com o tempo mais uma teologia moral da pacificação, mostrando uma preferência pela não violência e caminhando para o pacifismo.
Quando se trata de guerra nuclear, Francisco já deixou claro em uma condenação de 2017 que as armas nucleares, mesmo para supostos fins de dissuasão, não são mais aceitáveis. Durante a Assembleia Geral das Nações Unidas no mês passado, o arcebispo Richard Paul Gallagher, ministro das Relações Exteriores do Vaticano, foi além, repudiando os “direitos legados” às armas nucleares para as potências nucleares signatárias do Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares.
“Fratelli Tutti” vai o mais longe que se pode ir no sentido de criticar a noção de guerra justa sem rejeitá-la por completo. Talvez a posição da igreja sobre a guerra hoje possa ser comparada à sua posição sobre a pena de morte na década de 1980 – o início de etapas e declarações políticas que podem eventualmente tornar a ideia de uma guerra justa “inadmissível”.
O Papa parece ter vindo a reconhecer que, embora em princípio uma guerra possa ser racionalmente justificável, por uma questão de prática o abuso da tradição da guerra justa e as realidades da guerra moderna tornam impossível travar uma guerra justa hoje. O ceticismo de Francisco pode ser visto em sua rejeição de “desculpas supostamente humanitárias, defensivas e preventivas” para fazer a guerra. Parece que isso inclui até intervenções baseadas no que ficou conhecido como a “responsabilidade internacional de proteger” comunidades não-combatentes ou indefesas (“Princípios de precaução” são o que os advogados humanitários internacionais chamam de normas de guerra justas).
O padre J. Bryan Hehir teria dito que acreditava que não havia guerra que João Paulo II teria considerado justa. João Paulo II, no entanto, apelou à intervenção para prevenir o genocídio na ex-Iugoslávia, na região dos Grandes Lagos da África Central e no Timor Leste.
Olhando para casos como a Líbia e a Síria, pode haver razão para repudiar a intervenção militar justificada por motivos humanitários. Eu teria gostado, no entanto, de ter visto uma análise mais detalhada desses casos difíceis e julgamentos mais precisos sobre eles. Outras intervenções preventivas, como na Costa do Marfim, tiveram sucesso. E a Líbia pode ter sido um fracasso de política e não de princípio, embora esse grande fracasso de política em si possa ser uma razão para questionar a intervenção humanitária pela força.
A principal razão para o distanciamento do papa Francisco do pensamento de guerra justa parece ser suas consequências humanitárias, tanto experimentadas quanto potenciais. Ele pede a seus leitores que “toquem a carne ferida das vítimas”, especialmente civis cujo assassinato foi considerado “dano colateral”. Ele sugere que os analistas de guerra justa estão muito distantes dos sofrimentos infligidos pela guerra. “Não podemos mais pensar na guerra como uma solução”, argumenta o Papa, “porque seus riscos provavelmente sempre serão maiores do que seus supostos benefícios”. As novas tecnologias, observa ele, “concederam à guerra um poder destrutivo incontrolável sobre um grande número de civis inocentes. A verdade é que ‘nunca a humanidade teve tanto poder sobre si mesma, mas nada garante que será usado com sabedoria’”.
*Drew Christiansen, jesuíta, ex-editor-chefe da America, é um professor de Ética e Desenvolvimento Humano na Georgetown University e membro sênior do Berkley Center for Religion, Ethics and World Affairs.
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As notas de rodapé papais sinalizam para o leitor como um texto oficial da igreja está se baseando na tradição da igreja. As notas de rodapé ajudam a iluminar a amplitude e a profundidade da tradição católica, enraizando os insights doutrinários sobre questões contemporâneas em uma conversa centenária.
Antes do papa Francisco, as fontes reconhecidas limitavam-se quase exclusivamente aos textos bíblicos, aos Papas anteriores e às percepções dos santos. Com “Laudato Si’” Francisco ampliou os parceiros de conversa para incluir referências a fontes não-cristãs, incluindo um místico muçulmano sufi, teólogos contemporâneos e ensinamentos de conferências nacionais de bispos.
Com “Fratelli Tutti”, papa Francisco novamente reflete uma conversa mais ampla. Além de muitas referências às Escrituras, a encíclica cita 292 fontes em 288 notas de rodapé. A maioria dessas citações, 172, vem de seus próprios escritos. “Laudato Si’” recebe o maior número de citações que qualquer texto com 23 referências. “Evangelii Gaudium” segue com 22 referências. Coletivamente, suas mensagens para o Dia Mundial da Paz são citadas 11 vezes. Para grande desgosto de seus críticos, talvez, Francisco cite seu documento conjunto com o xeque Ahmed Al- Tayyeb, sobre “Fraternidade Humana”, um total de nove vezes, incluindo uma citação substancial no fim (n. 285).
O papa Bento XVI tem o maior número de referências depois de Francisco, com 22 citações. “Caritas in Veritate” é referenciada 19 vezes. Outros Papas são citados 29 vezes. Francisco novamente afirma o trabalho das conferências episcopais e parece querer ter pelo menos uma referência a cada região do mundo. Em “Fratelli Tutti”, o Papa cita o trabalho de 12 conferências, incluindo os documentos sobre racismo e migração produzidos pelos bispos norte-americanos.
Com “Fratelli Tutti”, Francisco novamente expande o círculo de parceiros de conversa para além de bispos e santos, incluindo o jesuíta Karl Rahner, Paul Ricoeur e, notavelmente, Rabino Hillel. Mas este círculo é grande o suficiente?
Embora a ampliação da conversa para fontes não papais realmente reflita o estilo do Papa, a omissão das mulheres também pode ser reflexo de algo mais profundo.
Antes de se dedicar à obra do beato Charles de Foucauld, o Papa fala que se inspirou por São Francisco de Assis, Martin Luther King Jr., Desmond Tutu e Mahatma Gandhi (nº 286). Isso é um tanto estranho, porque em nenhum lugar Francisco cita diretamente o trabalho de King, Tutu ou Gandhi. Uma citação mais direta de King teria fortalecido a condenação do texto ao racismo. Da mesma forma, um engajamento mais direto com a filosofia de não violência de Gandhi poderia ter contribuído para a seção sobre a guerra.
Mas a omissão mais flagrante nas notas de rodapé é qualquer referência às vozes das mulheres. O Papa poderia facilmente ter trazido o trabalho de Dorothy Day, que ele citou em seu discurso de 2015 no Congresso, ou a liberiana ativista pela paz Leymah Gbowee, que foi mencionada ao lado de King e Gandhi na mensagem do Papa para o Dia Mundial da Paz de 2017. Muitas teólogas feministas há muito abordam os temas do documento. E a vida de inúmeras religiosas, de Santa Clara a Santa Josefina Bakhita, poderia ter sido elevada como modelos de amizade social.
Embora a ampliação da conversa para fontes não papais realmente reflita o estilo do Papa, a omissão das mulheres também pode ser reflexo de algo mais profundo. Esperançosamente, a próxima encíclica não repetirá esse erro.
*Kevin Ahern é um teólogo eticista e presidente do movimento católico leigo ICMICA- Pax Romana. Ele é professor associado de estudos religiosos no Manhattan College, onde também dirigiu o programa de estudos do trabalho.