10 Outubro 2020
Em 2009, comunidades no município de Juruti (PA) obtiveram um documento inédito no país: o título coletivo das terras e o direito de cobrar pela sua exploração. Na época, a Alcoa estava finalizando as obras de sua jazida.
As comunidades cederam à Alcoa o direito de minerar 18 mil hectares da terra, em troca do pagamento pela participação nos resultados da lavra – o equivalente a 1,5% dos lucros líquidos. Em dez anos, a Alcoa já repassou R$ 60 milhões aos ribieirinhos.
A mina, localizada na margem direita do Rio Amazonas, é uma das maiores jazidas de bauxita do mundo, estimada em 700 milhões de toneladas.
A reportagem é de Thaís Borges e Sue Branford, publicada por Mongabay, 08-10-2020.
Era 28 de janeiro de 2009 quando 1.500 moradores de comunidades ribeirinhas bloquearam a estrada que ligava a zona urbana de Juruti, no oeste do Pará, às obras da mina que a Aluminum Company of America (Alcoa) abria no município amazônico. No dia anterior, havia começado na capital, Belém, o 5º Fórum Social Mundial, sob o lema “Um outro mundo é possível”. A data escolhida para dar início à ocupação das instalações da multinacional tinha razões estratégicas. “Nós sabíamos que o mundo estaria de olho na Amazônia e que haveria repercussão internacional se algo nos acontecesse”, explica Irmã Nilma, freira franciscana responsável pelo contato com participantes do fórum.
O episódio, decisivo para o futuro das comunidades ribeirinhas e da mineração em Juruti, é lembrado pelo gerente-geral da Alcoa no município, Gênesis Costa, como “um momento de aprofundamento do diálogo”. Gerdeonor Pereira, uma das principais lideranças entre os ribeirinhos, definiu o acontecido de maneira menos diplomática: “Foi o ápice do nosso confronto com a mineradora”. Pereira foi alvo de um “interdito proibitório” movido pela Alcoa, um tipo de ação judicial que visa defender a posse de um bem ameaçado de esbulho (perda de posse). Ao lado dele, uma missionária alemã de 69 anos, Irmã Brunhilde, também foi acusada de ameaçar os funcionários da empresa e “tentar impedir o crescimento do município”. A polícia militar não tardou a reprimir os manifestantes com bombas de gás e spray de pimenta. Chamados de “invasores” pela imprensa local e pelos apoiadores da empresa, os ribeirinhos estavam ali exatamente para pressionar o Estado a definir quem tinha, de fato, direito sobre aquele território.
“Na minha opinião, essa é uma das melhores histórias sobre mineração no Pará para ser contada”, opina a promotora do Ministério Público do Estado do Pará, Lílian Braga, que atuou no caso. Para entender por que, é preciso recuar um pouco no tempo.
Em 2000, a Alcoa adquiriu da Reynolds Metais os direitos sobre uma das maiores jazidas de bauxita do mundo, estimada em 700 milhões de toneladas, e localizada na margem direita do Rio Amazonas. Naquele mesmo ano, a empresa lançou uma carta de sustentabilidade, documento que pautaria suas futuras ações rumo a um equilíbrio entre os resultados econômicos, sociais e ambientais. Uma das líderes mundiais na produção de bauxita, alumina e alumínio, a Alcoa vinha enfrentando alguns reveses nos Estados Unidos e desembolsando indenizações milionárias para restaurar os impactos causados por suas atividades.
“Nesse contexto, iniciar um projeto sustentável no interior da Amazônia seria uma vitrine fantástica para disseminar uma imagem de uma empresa preocupada com o meio ambiente e com o bem-estar da população”, explica o pesquisador Lindomar de Souza, que estudou o processo de resistência das comunidades ribeirinhas em Juruti. Segundo Souza, a iniciativa poderia reduzir a pressão da sociedade civil sobre as atividades da mineradora e ampliar os mercados consumidores, principalmente na Europa e Estados Unidos, onde já naquela época havia um contexto cada vez mais marcado por preocupações socioambientais.
Gerdeonor Pereira, presidente da Acorjuve, a associação comunitária local: “Se a gente não tivesse ocupado a sede da mineradora em 2009, e se não tivesse sido protegido por lei, a Alcoa não estaria nos pagando, porque o capital não se ajoelha diante de ninguém”. (Foto: Thaís Borges)
O anúncio do projeto Juruti Sustentável angariou amplo apoio entre a população do município, entusiasmada com as promessas de geração de empregos, de obras de melhoria na cidade e de uma atuação ambientalmente responsável. “A mineradora trouxe duas palavras muito bonitas: desenvolvimento e progresso. E isso empolgou 90% da sociedade jurutiense, o governo do estado e o governo federal, mas nós sabíamos que esse desenvolvimento não era pra nós”, diz Pereira. A área rica em minério fica a 45 quilômetros da sede do município, numa localidade banhada pelo Lago de Juruti Velho, e tradicionalmente ocupada por dezenas de comunidades formadas por descendentes de indígenas Munduruku e Muirapinima, que se auto reconhecem como ribeirinhos.
O líder comunitário conta que, na primeira audiência pública feita para discutir o projeto, em 2005, havia 5 mil pessoas presentes. E somente os duzentos representantes de Juruti Velho disseram não à Alcoa. “A mineradora prometia gerar 5 mil empregos diretos e indiretos para o povo de Juruti, e eu respondi que esses empregos só seriam nossos se a nossa bauxita fosse cavada com enxada e carregada no paneiro e na lata, porque isso nós sabíamos fazer”, diz Pereira, que, na época, já presidia a Associação das Comunidades da Região de Juruti Velho (Acorjuve), instituição fundada em 2004 para capitanear a luta contra o empreendimento.
As 44 comunidades então representadas pela Acorjuve (hoje são 59) estavam empenhadas em impedir a instalação da mineradora. “Nós já conhecíamos os impactos sociais e ambientais causados pela mineração de bauxita em Oriximiná [município vizinho onde a Mineração Rio do Norte extrai bauxita desde 1979], e quando, a convite da Alcoa, eu visitei os projetos sustentáveis que ela desenvolvia em São Luís, no Maranhão, e em Poços de Caldas, em Minas Gerais, o que eu vi foram favelas ao redor da mineradora”, conta Pereira. “Nós não queríamos o atraso no desenvolvimento econômico do país, como nos acusavam. Queríamos garantir o nosso modo de sobrevivência, a vida dos nossos filhos e das gerações que virão”, explica Gleice Coelho, mãe de cinco filhos e professora de História e Estudos Amazônicos na vila de Muirapinima, centro administrativo de Juruti Velho.
Muito antes da chegada da Alcoa, os ribeirinhos de Juruti Velho já se mobilizavam na defesa do território. A tese de doutorado de Lindomar de Souza traz o relato de uma moradora sobre as ações das comunidades contra extração ilegal de madeira: “Nós saíamos em barcos e canoas e dormíamos na praia, à espera das balsas que passavam carregadas com toneladas de pau-rosa a caminho de Parintins, no estado do Amazonas. Quando elas surgiam, nós saltávamos para dentro e forçávamos o piloto e os peões a desatracar a carga.” A ação era coordenada por um grupo de religiosas ligadas à Igreja Católica: as Irmãs Franciscanas de Maristela. Uma delas era a Irmã Brunhilde, que teve papel fundamental na formação política dos ribeirinhos.
Nascida em 1940 na cidade alemã de Würzburg, Brunhilde testemunhou os horrores da Segunda Guerra Mundial. “95% da cidade foi destruída”, disse em entrevista ao Museu da Pessoa – um acervo virtual sobre histórias de vida, com sede em São Paulo. Desde muito jovem, ela sabia que queria ser freira e trabalhar no exterior. Após uma estadia de dois anos em Recife, onde conheceu as ideias revolucionárias do educador Paulo Freire, ela chegou a Juruti Velho em 1969. Ali desenvolveu um projeto de alfabetização baseado na pedagogia popular de Freire e manteve um contínuo trabalho de reflexão com as comunidades. “Foi ela que nos incentivou a conhecer e exigir os nossos direitos”, relembra Coelho. Irmã Brunhilde estava gravemente enferma quando a equipe de Mongabay visitou Juruti Velho, em fevereiro deste ano, e faleceu pouco tempo depois, em 30 de março.
Crianças na vila de Muirapinima. (Foto: Thaís Borges)
Em 2006, a Alcoa obteve a licença de instalação e deu início às obras em Juruti. Foi quando os ribeirinhos entenderam que, em vez de tentar deter o empreendimento, teriam que negociar com a multinacional.
A Acorjuve havia se fortalecido em 2005, com o reconhecimento do direito territorial, principal bandeira da associação. O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) havia criado o Projeto Agroextrativista (PAE) Juruti Velho, um tipo de assentamento da reforma agrária que assegura a posse coletiva a comunidades tradicionais que já ocupavam a terra, e garante que elas não sejam expulsas.
A proposta feita à Alcoa pela Acorjuve foi dar o consentimento para a mineração em seu território em troca do pagamento de renda pela ocupação da terra, uma indenização por perdas e danos e a participação nos resultados de lavra. “Mas a mineradora disse que não poderia nos pagar porque nos faltava um papel para provar que éramos donos da terra”, indigna-se Pereira. Em resposta, o gerente-geral Gênesis Costa afirmou que “a preocupação da empresa era fazer o aporte dos recursos em entidades oficializadas, reconhecidas publicamente, e, na época a região de Juruti Velho não estava oficialmente reconhecida pelo Incra”.
Esse reconhecimento oficial viria na forma de um Contrato de Concessão de Direito Real de Uso (CCDRU), celebrado entre o Incra e a Acorjuve. O documento, equivalente a um título coletivo, alçaria a associação à condição de proprietária da superfície, o que lhe permitiria cobrar algumas compensações pela exploração do subsolo.
Em janeiro de 2009, a Alcoa já estava finalizando as obras quando a Acorjuve decidiu dar fama ao imbróglio usando o Fórum Social Mundial como vitrine. O evento estava marcado para ocorrer em Belém, capital do Pará, a uma distância de três dias de barco de Juriti Velho.
“Antes de começar o fórum, a gente encontrou um representante do Ministério Público, que nos avisou que a Alcoa tinha obtido licença operacional e não havia nada que pudéssemos fazer pra reverter isso”, lembra Pereira. “Foi um dia triste pra gente, mas também um momento de virada”. A delegação decidiu então adotar táticas mais drásticas: ocupar a base da Alcoa.
“Nós conseguimos unir católicos, evangélicos, petistas, peemedebistas, tudo no mesmo barco”, explica Pereira. Mas muitos acharam que a ação era precipitada. “Mesmo entre os nossos apoiadores, tinha gente que dizia que éramos loucos, que a mineradora tinha poder e que a polícia nos mataria”. Havia também o risco de retaliação. Irmã Nilma, que trabalhava num posto de saúde, recorda que foi ameaçada de demissão se aderisse ao movimento.
O gerente-geral da Alcoa em Juruti, Gênesis Costa (à direita), é um entusiasta das práticas sociais e ambientais da empresa: “A Alcoa vai replantar cinco árvores para cada uma que caiu”. (Foto: Thaís Borges)
“Montamos nossas barracas e resistimos por nove dias e nove noites”, conta Coelho. As pessoas tinham medo diante da violenta reação policial, mas sabiam como resistir. “O pessoal na linha de frente da resistência escrevia poemas, fazia encenações, improvisava músicas – tudo sobre a nossa luta”, lembra Irmã Nilma. Como a Acorjuve esperava, a ocupação surtiu mais efeito que os anos de espera e negociação. Um dos primeiros a aparecer no acampamento foi Franklin Feder, CEO Regional da Alcoa para América Latina e Caribe. “Ele nos perguntou quanto dinheiro nós queríamos para permitir a mineração nas nossas terras”, conta Pereira. A resposta que o CEO ouviu foi que o dinheiro sozinho não resolveria a situação, que a demanda básica das comunidades era o direto à terra.
A ação direta resultou numa conquista histórica. Pela primeira vez, o Incra concedeu o documento coletivo a uma comunidade tradicional ribeirinha na Amazônia. O CCDRU deu amparo legal a uma área de 100 mil hectares. A comunidade cedeu à Alcoa o direito de minerar 18 mil hectares da terra, em troca do pagamento pela participação nos resultados da lavra – uma espécie de royalty devida ao proprietário da superfície, equivalente a 1,5% dos lucros líquidos auferidos com a atividade. Uma vitória que, segundo Lindomar de Souza, “não está circunscrita aos limites dos territórios de Juruti e sim que se soma a uma luta histórica de todas as comunidades tradicionais na Amazônia.
Dez anos depois desse episódio, a operação da Alcoa em Juruti compõe um exitoso portfolio corporativo, que ostenta cobiçadas certificações de sustentabilidade socioambiental. A empresa extrai da mina de Capiranga, em Juruti Velho, 7 milhões de toneladas de bauxita por ano. Mais de 80% têm como destino a refinaria de São Luís do Maranhão, onde é transformada em alumina. O restante segue para China, Rússia, Ucrânia, Espanha e América do Norte. Atualmente, o braço amazônico da Alcoa emprega 2.056 funcionários, 81% paraenses, embora apenas 39% sejam de Juruti. E, ao menos a parcela da população que vive na zona urbana – um terço – parece satisfeita com a “agenda positiva” implementada pela mineradora. “Já investimos 73 milhões em Juruti, em obras como um hospital que tem tudo para se tornar referência na região”, diz Gênesis Costa.
Desde outubro de 2009, a Alcoa já repassou cerca de R$ 60 milhões para a Acorjuve como participação nos resultados de lavra. “Metade desse valor é aplicado em projetos coletivos, e a outra metade é dividida a cada três meses entre 2.882 famílias filiadas à entidade”, explica Pereira. E essa não é a única compensação devida às comunidades de Juruti Velho. No curso das negociações entre Alcoa e Acorjuve, mediadas pelo Ministério Público, foi pactuada a realização de um “Estudo de Perdas e Danos”. “Nós conseguimos construir um cenário de avaliação fabuloso, que identificou danos no solo, nos igarapés, perdas em produtos madeireiros e não-madeireiros, alterações nas dinâmicas sociais das comunidades”, afirma a promotora de Justiça Lílian Braga.
Há, porém, um impasse relacionado ao pagamento da indenização, calculada, segundo Gerdeonor Pereira, em R$ 20 milhões. O Ministério Público Federal e o Ministério Público do Pará recomendaram a criação de uma fundação formada pela Alcoa e a Acorjuve para administrar o dinheiro. De acordo com o gerente-geral da Alcoa, o valor da indenização já está aprovisionado, aguardando a criação da fundação. Mas Pereira considera que essa gestão compartilhada reduziria a autonomia e a força política da Acorjuve.
Na vila de Muirapinima, muitos moradores são críticos à forma pouco transparente como as compensações vêm sendo aplicadas pela entidade. “Recursos planejados para efetivar projetos têm sido utilizados de forma assistencialista pela Acorjuve”, critica Coelho. As freiras franciscanas também discordam da gestão feita pela Acorjuve e consideram que a criação de uma fundação seria um investimento mais seguro no longo prazo.
“Era doloroso passar na estrada e ver uma igreja e um barracão abandonados, como um pequeno ambiente de comunidades fantasma, desocupado para que a ferrovia, que liga a mina ao porto da empresa, pudesse passar por ali. Foram impactos de toda natureza. Porém, como a legislação era outra, a presença do Ministério Público Estadual e Federal se deu de outro modo em Juruti, e o contexto de resistência social era muito forte, isso possibilitou a construção de um outro tipo de mineração”, explica a promotora Lílian Braga.
Coelho se emociona ao lembrar dos dias de luta e evoca a Cabanagem, primeiro movimento de insurgência popular no Brasil, feito em 1835 por indígenas e negros no então estado do Grão-Pará: “nós reanimamos o cabano que existe dentro de nós, temos ainda esse sangue aguerrido dos povos que nos antecederam, a vontade de defender o nosso modo de vida amazônico”, diz. “Penso que essa experiência positiva precisa ser compartilhada com outras comunidades”.
Mas a professora também reconhece que o contexto político de hoje traria desafios ainda muito maiores. “A presença de governos de esquerda nas esferas federal, estadual e municipal formou uma conjuntura que contribuiu com a nossa história, porque abriu espaço para negociação”, diz. Pereira também reconhece a importância desse cenário político para o êxito da resistência em Juruti. “Apesar de o governo estadual ter enviado a Polícia Militar para nos dispersar, o governo Lula apoiava os trabalhadores, e isso permitiu a nossa articulação com a empresa e as instituições do Estado”.
A equipe de Mongabay caminhava para pegar a lancha de volta para a cidade na companhia de Coelho, quando a professora avistou um morador idoso empurrando um triciclo. “Uma das cenas mais chocantes aqui é me deparar com esse agricultor, que coletava castanhas em Pau d’Arco, uma comunidade de impacto direto. Ele juntava castanhas no seu paneiro de cipó, e hoje ele junta latinha de cerveja e de refrigerante num saco. Uma triste ironia que as latas sejam feitas do mesmo metal que Alcoa retira da nossa terra, antes coberta de castanheiras”, lamenta. A imagem é uma síntese de como os grandes empreendimentos, mesmo aqueles reconhecidos como modelo de sustentabilidade, impactam a vida das populações tradicionais na Amazônia.
Vidas transformadas: um homem junta latas de alumínio e outros rejeitos em uma comunidade onde antes se coletava castanhas. (Foto: Thaís Borges)
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Como ribeirinhos no Pará enfrentaram uma das maiores mineradoras de alumínio do mundo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU