20 Agosto 2020
Tem momentos que marcam a vida da gente, que se tornam motivo de gratidão. Esse é o sentimento de Dom Neri Tondello, bispo de Juína – MT, que na semana passada participava do velório e sepultamento de Dom Pedro Casaldáliga. Ele percebeu nos diferentes momentos uma prolongação de tudo o que o primeiro bispo de São Félix do Araguaia tinha vivido ao longo de sua vida.
O bispo, que fez a homilia na missa celebrada em Ribeirão Cascalheira, diz ter consciência de que Pedro está ressuscitado e vitorioso, que anima a continuar na luta pela defesa dos mais pobres, dos povos indígenas, presentes nas celebrações. Dom Pedro Casaldáliga é visto por Dom Neri Tondello como alguém que “deu um testemunho que é ímpar”. Ele continua desafiando a Igreja a não esquecer os últimos, a cuidar da Casa Comum, elementos presentes na reflexão do Sínodo para a Amazônia, que segundo o bispo de Juína, Dom Pedro fez 35 anos atrás.
Do bispo falecido fica a figura de “um grande lutador, uma grande figura, que trabalhou incansavelmente pelos direitos humanos”, de alguém que sempre lutou “pelo bem comum de todos os cidadãos”. Por tudo isso, “por ter sido essa luz, essa profecia, esse testemunho de vida desde o início ao fim”, em Dom Neri Tondello brota um sentimento de gratidão.
A entrevista é de Luis Miguel Modino.
O senhor participou do velório e do sepultamento de Dom Pedro Casaldáliga, como o senhor tem vivenciado esse momento?
Não consigo entender porque eu tive essa graça de estar presente, é um dom, um presente que Deus me deu que não consigo entender este tamanho mérito. É verdade que eu tenho conhecimento de Dom Pedro há uns 35 anos, desde seus poemas, seus escritos, seus testemunhos de vida. Sempre foram uma busca constante, enquanto ainda estudante lá no Sul do Brasil. De lá para cá, nós acompanhamos a história dele, e sempre tem sido uma referência de um pastor, de um bispo, dedicado ao povo de Deus. A primeira conotação é de gratidão a Deus, que não consigo entender esse presente que Ele me deu, de poder estar neste momento, nesta hora.
Quanto às cerimonias, porque foram muitas as manifestações do povo de Deus, foram as vigílias, as mensagens, as homenagens, as orações, os cânticos, o terço cantado, as celebrações eucarísticas, houve uma ritualidade muito forte, muito cheia de originalidade, de espiritualidade, principalmente uma espiritualidade muito encarnada, do jeito que ele era mesmo. Eu procurei observar os detalhes, lá no Santuário dos Mártires tinha os frutos da terra, os produtos da agricultura familiar, até uma porção de ovos estava na entrada do santuário, junto aos produtos da terra, para dizer que Dom Pedro indicava um outro mundo diferente.
Todo o enfeite, a originalidade, os pés dele descalços, com a Bíblia, me faz lembrar, como são belos os pés do mensageiro que anunciam a paz. Em tudo, na ritualidade, na simbologia, nos dizeres das mensagens, nas orações, tudo respirava uma conotação muito diferente. Eu noto que, inclusive a parte final de sua vida, ele muda todos os paradigmas da própria Igreja, os costumes e a tradição de como se sepulta um bispo. A opção dele, inclusive, de ser sepultado voltado para o rio Araguaia, embaixo de um pé de pequi, naquele cemitério que está desativado, junto de muitos peões matados, que ele próprio enterrou, ou estão sepultados ali, também muitos karajás.
Ele escolhe aquilo que é ignorado, aquilo que é indiferente, aquilo que é exclusão, para incluir no seu coração, na sua alma, no seu corpo, como semente lançada na terra, toda a história de sofrimento, de exclusão, de massacre, de violência e de morte. Ele abraça, como Cristo abraçou a humanidade, assumindo os pobres, os últimos, os desprotegidos. Nem se fala da organização, o quanto eles foram precisos, minuciosos, nos detalhes, até no cuidado com a aglomeração. Tudo foi conduzido de um jeito, com uma mística, tudo havia ali uma congruência, tudo respirava espiritualidade, respirava profecia.
A profecia, ela nos mantém com uma espiritualidade vigiante e atenta, e não admite uma pregação, uma espiritualidade, que eu chamo sempre de estéril. É possível ter ótimas celebrações, belíssimas celebrações, ótimas louvações, mas que também não transformam nem o coração, nem as estruturas da sociedade. Antes, pelo contrário, podem ser até celebrações que ocasionam a manutenção de estruturas de opressão. Dom Pedro, ele respira para nós este ar de um mundo diferente, as pequenas coisas são valorizadas por ele, e a essência das pequenas coisas é que trazem ali dentro a vida. A vida do ser humano, a vida do indígena, a vida do pobre, do peão, do assentado, a vida da mulher, a vida do jovem, a vida de todos os últimos, que estavam ali contempladas, para serem vistas com outro olhar, com outro coração, com outra esperança, com outro compromisso, de fazer com que a mudança, a transformação do mundo, se dê através desta encarnação de Jesus, que está presente no rostro destas pessoas qualificadas como os últimos, os excluídos, aqueles que não produzem e são marginalizados por um sistema que oprime e mata.
Em suas palavras, o senhor reafirma aquilo que o senhor falou na homilia da missa que aconteceu em Ribeirão Cascalheira, onde o senhor dizia que Dom Pedro assumiu os últimos. Foi muito significativo o fato do senhor fazer sua homilia na beira do caixão. O que passou pela sua mente naquele momento, o que esse momento significa para o senhor?
Eu chego até me emocionar e até me arrepio, porque eu não estava falando com um homem morto, eu estava falando com um homem ressuscitado e vitorioso. Aquela experiência ali, ela é uma experiência de diálogo, de alguém que continua a olhar o mundo, a olhar a vida, e ressaltando para nós, com suas próprias palavras, ele dizia, nós temos que ter esperança. Eu sentia que ele devolvia a esperança e devolvia a luta para que prossiga. Naquela hora, eu repito, não estava falando com um homem morto, estava falando com um homem ressuscitado, e dando-nos recadinhos em toda simbologia, em todas suas palavras, em tudo aquilo que ele disse. Para mim foi um momento muito forte quando olho para os pés descalços e a Bíblia que estava ali. Estou falando com um homem ressuscitado, que já atravessou além da morte, mas que continua a nos olhar, com um olhar sereno e cheio de esperança.
Outro momento muito marcante foi a homenagem do povo xavante na última celebração em São Félix, e o fato deles levarem o caixão para o cemitério. Eles insistiram muito em fortalecer a aliança tradicional entre a Igreja e os povos indígenas, que se fortaleceu com o Sínodo para a Amazônia. O que significa o trabalho realizado por Dom Pedro com os povos indígenas de cara ao futuro da Igreja e a concretização do Sínodo?
Quando eu assisti aquele momento, me vinha na mente, como pode ainda um sistema opressor querer avançar contra estes irmãos de corpo e alma, como pode um sistema não admitir que eles são irmãos nossos, inclusive que eles nos precedem, que eles têm a imagem e semelhança de Deus. O primeiro sentimento foi esse, ficava sozinho, mas acompanhando aquele momento e me fazendo essas perguntas.
Em relação ao Sínodo, ao compromisso da Igreja com os indígenas, realmente Dom Pedro nos deixa um desafio muito grande. Percebemos que existe no meio da comunidade indígena um desespero diante da pandemia, pela distância, pelas dificuldades, pelos protocolos, pelo plano de emergência que não aconteceu em plenitude. Permanece esse desafio diante desse desespero, mas também um desafio diante da pressão que os povos indígenas vêm sofrendo. De um lado são os venenos de fazendas enormes, um veneno que vem contra as roças deles, contra as casas, moradias deles.
De um outro, se sente a pressão diante dos territórios, a demarcação em processo e tentativas de flexibilizar as leis para que aquelas terras se tornem em fonte de produção, vendo somente o econômico. Não se percebe os territórios, a natureza, que está ali, que presta um serviço à humanidade. Infelizmente se vê a terra como alvo de cobiça para a produção, garantindo mais economia e mais economia. Enquanto isso, eles prestam um serviço à humanidade, mantendo a floresta de pé. Eu sinto que existe ali um desafio enorme para nossa Igreja, porque temos poucos agentes de pastoral disponíveis para encarnar a realidade. É um desafio bem grande, que nos deixa em aberto. Mas o Sínodo deu um passo importante e precisamos avançar e abraçar esta causa, e cuidar melhor, cuidar mais.
Como bispo, o que o senhor pensa que os bispos podem e devem aprender do jeito de ser bispo de Dom Pedro?
Ele é um mestre, talvez único, o jeito dele é um jeito próprio, são 52 anos. Quando eu falo que ele se fez pequeno, realmente, ele desceu da Espanha e veio para uma realidade onde havia aqueles desafios de massacres, e ele deu um testemunho que é ímpar. Mas para mim, ele está dizendo, não esqueçam os últimos, a aliança com os pequenos, com os pobres, com os indígenas, está ali na frente. Para mim, esse é o recado que ele me passa, que a defesa destes, é a defesa da Casa Comum, onde todos habitamos. Sem esse cuidado com a Casa Comum, nós todos podemos implodir nessa casa. Para mim é um aviso, inclusive entre a vida e a morte.
A Prelazia de São Félix, durante o episcopado de Dom Pedro, foi uma Igreja que tentou viver a ministerialidade, uma Igreja com elementos próprios da sinodalidade. O senhor faz parte da Conferência Eclesial da Amazônia, que tenta trazer para a realidade da Amazônia essa Igreja mais ministerial, onde nem só os bispos, mas também a vida religiosa, os povos originários, os leigos, participam dos processos de decisão. Poderíamos dizer que Dom Pedro plantou sementes que agora começam dar fruto nessa Conferência Eclesial da Amazônia?
Durante esses dias de acompanhamento do velório, me passou pela cabeça o seguinte, Dom Pedro fez o Sínodo da Amazônia 35 anos atrás, ele estava lá na frente há 35 anos. E agora é claro que nós despertamos para esse caminho sinodal, e esse é um caminho sem volta. Desde a convocação do Papa Francisco até a realização, celebração e criação da Conferência Eclesial da Amazônia, o caminho foi percorrido à luz do Espírito Santo, indicando que esta é a trajetória de futuro, um caminho sem volta. Está ali a nossa frente, uma expectativa muito grande de pôr em prática aquilo que Dom Pedro já despertava há 35 ou 40 anos. Como disse, repito, ele já fez o caminho sinodal desde aquele tempo, e nós estamos fazendo agora, incrementando essa caminhada sinodal em direção ao futuro. A gente espera e acredita que vamos ter frutos, e a gente tem um pouco de pressa também.
As reações em torno à morte de Dom Pedro chegaram desde todos os âmbitos, nem só desde dentro da Igreja, mas também desde o mundo político, social, tanto do Brasil como do exterior. Qual é o legado que Dom Pedro, que morou no Brasil durante 52 anos, deixa para a sociedade brasileira?
Seja eclesialmente, ou do ponto de vista social como um todo, Dom Pedro representa um grande lutador, uma grande figura, que trabalhou incansavelmente pelos direitos humanos. Todo mundo enxerga Dom Pedro como o homem dos direitos humanos, crentes e não crentes, os que estão na Igreja e os que estão fora. Os que estão na Igreja veem Pedro como o homem da religião, o homem da fé, o homem dos sacramentos, mas de maneira geral, eu resumiria que ele foi o batalhador pelos direitos humanos e pelo bem comum de todos os cidadãos.
O que se tem que dizer é obrigado ao Pedro, obrigado Pedro e obrigado Pedro. Por ter sido essa luz, essa profecia, esse testemunho de vida desde o início ao fim. Agradeço ao Pedro e que nós possamos fazer alguma coisa também para continuar a sua bandeira. Mas a palavra que resume tudo é gratidão.
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“Dom Pedro fez o Sínodo da Amazônia 35 anos atrás”. Entrevista com Dom Neri Tondello - Instituto Humanitas Unisinos - IHU