19 Agosto 2020
"Nenhum anúncio extraordinário acompanhou a notícia da morte recente de Dom Pedro Casaldáliga, mas algo nesse sentido seria apropriado. Este foi o último dos três bispos do Brasil que demonstraram um protagonismo extraordinário, ao longo de décadas, sob as mais difíceis circunstâncias", escreve Tom Roberts, em artigo publicado por National Catholic Reporter, 18-08-2020. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Tropas brasileiras ocupam a Avenida Presidente Vargas, no Rio de Janeiro, em 04-04-1968, para uma missa de réquiem em memória de Edson Luís, assassinado por policiais militares sete dias antes. Esse evento era parte de uma série de tensões crescentes entre as pessoas contra o regime que levaram a um maior endurecimento das políticas repressivas em dezembro. (Foto: Wikimedia Commons | Arquivo Nacional | Correio da Manhã)
Numa época em que a evidência de coisas erradas junto à hierarquia católica ameaça esmagar outras tantas, Casaldáliga, bem como o Cardeal Paulo Evaristo Arns, falecido em 2016, e Dom Hélder Câmara, falecido em 1999, destaca-se como servo exemplar do Evangelho e de sua comunidade nas condições mais ameaçadoras e entre os mais marginalizados da Terra. Bem faremos ao revisitar a vida dessas três lideranças e o exemplo que deram num momento de medo e incerteza global.
Lembrados na morte como tendo mostrado qualidades santas – na verdade, uma causa de santidade foi aberta para Dom Hélder Câmara –, em vida os três prelados por vezes carregaram as feridas profundas e ocultas infligidas por autoridades eclesiásticas que questionavam os seus motivos, a teologia que eles propunham e as alianças que firmavam.
Dom Pedro Casaldáliga em foto sem data. (Foto: Cortesia dos arquivos da Prelazia de São Félix do Araguaia | CNS)
Inabaláveis na defesa dos direitos humanos durante os 21 anos de ditadura militar opressora e brutal no Brasil entre os anos de 1964 e 1985, os três também precisaram se defender das denúncias feitas por figuras poderosas do aparato Vaticano nas décadas de 80 e 90. Era um aparato montado pelo Papa João Paulo II, em pouco tempo tornado santo, nas palavras do experiente jornalista que cobre o Vaticano John L. Allen Jr: simultaneamente “o apóstolo da unidade ad extra e o pugilista ad intra."
Dom Evaristo Arns, em conversa com o escritor Lawrence Weschler sobre o autoritarismo crescente no Vaticano de João Paulo II, disse: “O papa polonês, ele é a nossa cruz a carregar”.
Os hematomas que João Paulo causou em alguns bispos, teólogos, em vários pensadores e ativistas, podiam ser profundos e debilitantes. Reputações foram jogadas no lixo pelos que trabalham na burocracia que ele pôs em movimento a serviço de uma abordagem absolutista para as suas ideias grandemente pessoais sobre a ordem e a disciplina.
A instituição mudou, como sempre mudará, e esse traço de uma disciplina severa desapareceu. A Igreja em geral, então, precisa considerar o que sobreviveu, o que se vê hoje como a melhor expressão do coração do Evangelho.
Estes três bispos do Brasil lideraram dioceses durante um período infernal, de convulsão social, anos de desaparecimentos em massa, tortura e morte.
Dom Hélder Câmara esteve à frente da Arquidiocese de Olinda e Recife durante todo aqueles anos, de 1964 a 1985; Dom Paulo Evaristo Arns presidiu a Arquidiocese de São Paulo entre os anos de 1970 e 1998; e Dom Pedro Casaldáliga foi o bispo de São Felix entre 1970 e 2005. Ninguém os culparia caso tivessem se refugiado atrás dos muros das respectivas chancelarias. Mas, em vez disso, estes bispos caminharam para o centro da tempestade junto dos que mais riscos corriam.
Durante o período de terror, Dom Evaristo entrava e saía das prisões, mantendo registro daqueles considerados inimigos do Estado. Ele questionou o governo pelo assassinato de um jornalista, realizou celebrações desafiando a ditadura, providenciou um espaço para o começo de um movimento de trabalhadores e, em sigilo, colaborou com parceiros ecumênicos e agências internacionais para ter acesso a pilhas de documentos que descreviam os horrores da tortura e assassinatos. Estas páginas viram um registro intitulado Brasil: Nunca Mais.
A primeira vez que estive com Dom Evaristo Arns foi em meados da década de 1980, já sabendo que ele era conhecido por um enfrentamento à ditadura e por ter defendido os pobres de sua diocese de um modo extraordinário. Ele era um apoiador da teologia da libertação e havia acompanhado o amigo franciscano, o teólogo Leonardo Boff, a uma sessão na Congregação para a Doutrina da Fé – CDF, onde questionaram este último sobre os seus escritos.
Em uma convenção da Associação Católica de Imprensa, ele me puxou para um canto de uma das salas e mostrou a carta da CDF que silenciava Leonardo Boff. “Trabalhei por 21 anos pelo direito à liberdade de expressão”, disse ele, referindo-se ao trabalho que fizera para manter a comunicação através de sua diocese durante o período de ditadura. “E agora os meus irmãos em Roma fazem isso”.
Em 1991, durante a primeira visita que fiz a Roma, tive a oportunidade de testemunhar o grau de hostilidade que, pelo menos, uma figura influente na CDF tinha para com Dom Evaristo Arns e Dom Pedro Casaldáliga. Na época, eu era o editor de notícias do Religion News Service – RNS, e a finalidade da visita era basicamente entender como as coisas funcionavam na Cidade Eterna. Um jornalista do Vaticano, pessoa com mais experiência, e que às vezes escrevia para o RNS, arranjou reuniões curiais, e uma delas era com um padre americano que trabalhava na citada congregação.
Dom Paulo Evaristo Arns em uma foto sem data. (Foto: CNS | KNA)
Assim que a conversa começou, o meu amigo mencionou Dom Pedro Casaldáliga, quem, por alguma razão que não lembro agora, era motivo de manchetes naquela semana. Como escrevi certa vez, em 2013, para o National Catholic Reporter – NCR, essa menção do nome “evocou uma torrente de linguagem injuriosa e perversa”. O padre americano se referiu a ambos os bispos pelos nomes e os rotulou de “homenzinhos ignorantes”, pessoas “ingênuas”.
Lembro de ter pensado, já no começo dessa situação bizarra, que talvez o encontro fosse uma armação de parte do padre e do repórter no Vaticano a fim de chocar este jornalista novato aqui, recém-chegado dos Estados Unidos. Mas não demorou muito para eu perceber que o padre, à minha frente, estava falando sério.
Dom Hélder Câmara eu conheci, brevemente, antes de um evento em Nova Jersey, onde ele recebeu um prêmio. Isso foi pouco tempo antes de sua morte. Lembro como se fosse um encontro com uma pessoa notável. Uma daquelas pessoas sobre as quais é fácil concluir: era íntegro, completo, em absoluta paz consigo mesmo. Fácil também foi concluir que é praticamente impossível fazer uma entrevista produtiva com alguém que clara e autenticamente tornou-se místico.
Dom Hélder, famoso por sua insistência radical de que a Igreja se faz ao lado dos pobres, era conhecido como “o bispo das favelas”. Ele é citado em uma biografia como tendo dito: “Quando dou comida aos pobres, me chamam de santo. Quando pergunto por que eles são pobres, chamam-me de comunista”.
Dom Evaristo Arns, em sua morte, foi lembrado como “o cardeal do povo” e celebrado pelo trabalho incansável pelos direitos humanos. Em evento comemorativo a seus 95 anos, um ex-ministro da Justiça observou a sua “coragem e [e o seu] destemor de profeta e seu ensinamento enraizado nos valores franciscanos de apóstolo”.
Dom Hélder Câmara numa celebração eucarística em Den Bosch, na Holanda, 27-10-1974. (Foto: Hans Peters, Arquivo Nacional da Holanda | Wikimedia Commons)
Dom Pedro Casaldáliga, um alguém que viveu em circunstâncias austeras, era chamado de “o bispo dos pobres” e foi descrito pela Comissão Pastoral da Terra como uma “referência para cidadãs e cidadãos de todo canto que lutam em defesa da democracia, de quem sonha um mundo mais justo e igualitário”.
O padre que conheci na CDF já se foi junto de seu criador, e eu só posso supor que ele agia seguindo aquilo que acreditava ser o melhor para a Igreja. Porém, a birra que testemunhei – percebi desde então – era a expressão de uma religião presa em seu temor pelo desconhecido.
O exemplo da vida destes três bispos é, por sua vez, o exemplo de uma fé duradoura, madura, disposta a dar passos em direção ao desconhecido. Dom Paulo Evaristo Arns, Dom Hélder Câmara e Dom Pedro Casaldáliga, cada um a seu modo, abraçaram uma vulnerabilidade santa que exigiu-lhes afrouxar suas certezas e seus absolutos.
Os católicos americanos, inclusive os bispos, que veem um segmento populacional cada vez maior sendo marginalizado pelas consequências de uma pandemia e outros desafios sociais e políticos – perda de renda, insegurança alimentar, pessoas sem moradia, ataques contra o direito ao voto e uma hostilidade renovada para com as pessoas de cor – farão bem ao refletir sobre a vida de Arns, Câmara e Casaldáliga. Estes não eram ignorantes, tampouco foram ingênuos. Loucos por Cristo, talvez, mas percebemos essa tal loucura como santa.
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Três exemplos de bispos extraordinários do Brasil - Instituto Humanitas Unisinos - IHU