“Não acontece todos os dias de acompanhar o sepultamento de um santo”. Entrevista com Dom Adriano Ciocca

Foto: CPT/Dagmar Talga

14 Agosto 2020

Pedro ficará para sempre igual viveu, no meio dos pobres. Ele foi ”um homem que procurou viver despojado, viver do lado dos pequenos, de uma forma totalmente desprendida de tantas coisas materiais, honrarias e tudo”. Assim define Dom Adriano Ciocca, bispo da Prelazia de São Félix do Araguaia, aquele que foi seu primeiro bispo, alguém que teve “um estilo de vida profundamente evangélico”.

 

Podemos dizer que o túmulo de terra, na beira do Rio Araguaia, já tem se tornado um ícone. O fato dele “ser solidário até na sepultura com os indígenas e com os peões sem nome, deve ser uma escolha que define e continua redefinindo o posicionamento da Igreja dentro do tempo que estamos vivendo”, segundo Dom Adriano, que vê como um grande desafio preservar o legado físico, intelectual e espiritual de Pedro.

 

O bispo ficou muito marcado pelo momento, “não acontece todos os dias de acompanhar o sepultamento de um santo”. Ele destaca a presença de um povo que não tem esquecido a vida de Pedro, a presença dos indígenas do povo Xavante. A memória de Pedro, profeta até o final de sua vida, ele também assinou a Carta ao Povo de Deus dos 152 bispos, é um chamado que mostra que “a Igreja nestes momentos não pode renunciar a ser profeta, a falar a partir do Evangelho, a falar a partir do exemplo de Cristo”.

A entrevista é de Luis Miguel Modino.

 

Eis a entrevista.

 

Como definiria todo o acontecido nos últimos dias com a morte de Dom Pedro?

 

Antes de tudo, devo dizer que Dom Pedro, nos últimos tempos, era de uma fragilidade que dava dor até de ver. Era só uma coisinha, só pele e osso mesmo, tinham que dar de comer a ele, não tinha mais nenhuma autonomia. Quando acordado conhecia as pessoas, mas não podia mais se expressar, para ele devia ser terrível essa impossibilidade de se expressar, um homem tão comunicativo, tão apaixonado como ele era. Dava dor e pena ver ele nesta situação.

 

Quando deu o problema respiratório, que foi internado no hospital em São Félix, os médicos perceberam que desta vez a crise era bem mais séria e que a condição de fragilidade era tão grave, que não tinha condições. Então, levaram ele para Batatais, e acho que foi até uma graça, porque deu a possibilidade de no translado do corpo dele, de Batatais para São Félix, ele percorrer mais uma vez uma parte da Prelazia, sobretudo alguns lugares que são particularmente significativos dentro da vida e da história da Prelazia, e dele pessoalmente.

 

Santuário dos Mártires (Foto: Valdemir de Souza)

 

Ribeirão Cascalheira, com o Santuário dos Mártires, o lugar onde o padre João Bosco Burnier foi assassinado. Serra Nova Dourada, que foi lugar de uma luta ferrenha entre os posseiros e latifúndio, e que com a ajuda determinante da Prelazia e de Dom Pedro, os posseiros conseguiram ganhar um espaço de vida, e depois a chegada em São Félix, que é o lugar onde ele viveu e realizou o próprio ministério mais de 50 anos praticamente, porque mesmo depois de aposentado, o bispo de São Félix é Pedro.

 

Pessoalmente, como o senhor viveu este momento?

 

Devo dizer que não acontece todos os dias de acompanhar o sepultamento de um santo. Foi uma experiência, de fato, muito interessante, ver como um homem que procurou viver despojado, viver do lado dos pequenos, de uma forma totalmente desprendida de tantas coisas materiais, honrarias e tudo, como ele foi reconhecido por uma infinidade de pessoas, que conhecem e perceberam a qualidade do estilo de vida dele, um estilo de vida profundamente evangélico.

 

Foi uma experiência interessante, o problema é que neste dias há um turbilhão de pessoas, de eventos, de comunicações, que não me permitiram de me concentrar como eu teria gostado, acima daquilo que foi a experiência deste momento, destes dias. Mas mesmo assim, foi bonito ver que o povo não esquece quem deu a vida para ele. A presença dos indígenas Xavantes foi também muito significativa, e também o fato de poder realizar o último desejo dele de ser sepultado no cemitério velho, perto do Rio Araguaia, junto com os antigos Karajás e com os peões sem nome, que ele viu morrer e sepultou às dezenas, logo no início dos anos de seu ministério.

 

De tudo o vivido ao longo destes dias, o que foi que mais lhe surpreendeu?

 

É difícil, repito, dizer o que mais me surpreendeu porque foi uma experiência, eu creio única, como disse. Acompanhar o sepultamento de um santo é coisa que não acontece todos os dias. Não saberia dizer o que mais, foi todo o conjunto de coisas que foi algo inédito e diferente, não me lembro de um sepultamento que teve as caraterísticas que teve este sepultamento. Este sepultamento eu acho que foi um pouco a cara daquilo que ele viveu, e todos os momentos foram bastante significativos. O fato das vigílias serem conduzidas, na sua grande parte, pelo próprio povo, com orações, com testemunhos, com cantos, foi algo muito bonito, muito significativo mesmo.

 

Na celebração das exéquias em São Félix, na sua homilia, o senhor falava do legado que fica de Pedro e os desafios para o futuro. Quais são os desafios que como bispo que foi de São Félix, durante mais de trinta anos, Pedro deixa para o futuro da Prelazia, mas também para a Igreja do Brasil e do mundo?

 

Para a Prelazia, o desafio é manter uma identidade e um rosto para esta Igreja, que sendo situada em uma nova fronteira agrícola, vê uma mudança de pessoal contínua. De pessoas que moram agora no território e que conheceram Pedro, acho que não tem mais do que dez por cento, a grande maioria, ou morreu ou se deslocou para outros lugares, e muitas outras pessoas vieram. Para a prelazia, manter esse perfil profético e manter este estilo de Igreja, de comunidades eclesiais de base, uma Igreja que seja ligada ao Evangelho e ao povo, é um desafio muito grande.

 

Cerimônia de despedida em Ribeirão Cascalheira (Foto: CPT/Dagmar Talga)

 

Desde o ponto de vista dos agentes, por enquanto não temos ainda um núcleo de agentes e de animadores de comunidades locais para poder definir e defender este rosto. A mobilidade dos agentes aqui, eu diria que é quase espantosa. Eu comparo, a região aqui é uma grande rodoviária, onde tem gente que entra e gente que sai todos os dias, tanto no meio do povo como dentro da Igreja, entre os agentes de pastoral. Então, o desafio para a Prelazia é ver de manter este perfil com esta fragilidade de estruturas e também de pessoas que possam vestir a camisa e viver a mística que Dom Pedro viveu a vida toda.

 

Para a Igreja, o legado que ele deixa, eu acho que é mais do que evidente, uma Igreja que deve ficar fazendo uma escolha e mesmo acolhendo a todos, e deve sempre acolher a todos e dialogar com todos, o lugar onde a Igreja deve se situar, é com os pobres, como Javé, que é o Deus que libertou os escravos da terra do Egito, como Jesus que nasceu em um abrigo de animais em Belém, que cresceu em uma periferia das periferias na Galileia, de Nazaré o que pode sair, e também o fato que ele escolheu como companheiros, não os intelectuais ou os poderosos, as elites daquela época, mas os pequenos.

 

Capela na casa de Dom Pedro Casaldáliga (Foto: CPAL Social)

 

Então, este legado, de uma Igreja que seja dos pobres e que veja a realidade e a interprete desde a ótica dos pobres é fundamental. Isso é um recado e um legado que interessa a toda a Igreja do Brasil e não só à Igreja do Brasil. Se a Igreja abandona os pobres, abandona a Cristo.

 

Pedro começou seu ministério episcopal escrevendo uma carta famosa, onde ele denunciava a situação da Amazônia e de seus povos. Ele também foi um dos assinantes da Carta ao Povo de Deus que 152 bispos escreveram diante da realidade que está sendo vivida hoje no Brasil. Isso monstra que ele foi um profeta desde o início até o fim de seu ministério episcopal. Para os bispos do Brasil, o que significa essa dimensão profética, especialmente agora, diante da realidade que o Brasil está vivendo?

 

Significa que se nós queremos ser a Igreja de Jesus, o Povo de Deus, um povo de sacerdotes, reis e profetas, temos que, em um momento de crise, como aquele que estamos vivendo, crise por causa da pandemia, mas também crise pelo caos social, político, econômico, no qual nos encontramos, a Igreja nestes momentos não pode renunciar a ser profeta, a falar a partir do Evangelho, a falar a partir do exemplo de Cristo. Isso é fundamental, e graças a Deus que nestes dias anteriores, um grupo de bispos tivemos a coragem de assumir um pouco este compromisso e tentar de ler a realidade. Quem lê a carta, e a lê sem preconceitos, pode ver que é uma carta que não agride ninguém, mas simplesmente apresenta uma leitura da realidade, e esta leitura da realidade é uma leitura situada a partir da maioria do nosso povo.

 

Indígenas Xavante carregando o corpo de Dom Pedro Casaldáliga (Foto: CPT/Dagmar Talga)

 

A foto do túmulo de Pedro tem se espalhado pelo mundo todo. Podemos dizer que esse túmulo, de terra, na beira do Araguaia, se torna um ícone para o futuro da Igreja. O que esse ícone pode representar?

 

Eu espero que, de fato, esta escolha extrema de Dom Pedro, de ser solidário até na sepultura com os indígenas e com os peões sem nome, deve ser uma escolha que define e continua redefinindo o posicionamento da Igreja dentro do tempo que estamos vivendo. Isso é fundamental e acho que é um gesto muito importante, muito bonito.

 

Túmulo Dom Pedro Casaldáliga (Foto: Reprodução/Twitter)

 

O que fica para o futuro, para continuar a caminhada?

 

Agora, o legado que ele deixou, nós temos que, de fato, vivê-lo, e nós temos que preservar esta memória revolucionária, como ele mesmo dizia, ou memória subversiva, não deixando que o acervo, tanto físico como intelectual, como espiritual de Pedro se perca. Isso, com certeza, teremos que cuidar e já estamos tentando dar os passos nesta direção.

 

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