12 Agosto 2020
Aliado dos xavantes, as ameaças de morte não impediram que o bispo dom Pedro Casaldáliga se tornasse uma referência internacional na luta pelos direitos humanos.
A reportagem é de Lucas Ferraz, publicada por Agência Pública, 10-08-2020.
O senhor de corpo franzino, dependente da cadeira de rodas, era ansiosamente aguardado na noite do terceiro sábado de julho em Ribeirão Cascalheira, a 891 km de Cuiabá, no nordeste do Mato Grosso. Pela primeira vez, a presença de dom Pedro Casaldáliga na Romaria dos Mártires, que ele criou há 30 anos, era uma incógnita.
(Reprodução: Amazônia.org)
Aos 88 anos, o bispo emérito de São Félix do Araguaia continua lúcido, mas o agravamento do Parkinson tem afetado cada vez mais sua fala e a coordenação motora. Os deslocamentos e as aparições públicas são cada vez mais raros.
Durante toda aquela semana, especulou-se entre os organizadores, auxiliares na Igreja e fiéis se o religioso deveria se submeter à viagem e ao intenso calor para participar do evento, que desde 1986 ocorre em um fim de semana de julho na cidade de 9 mil habitantes, no Vale do Araguaia.
Casaldáliga decidiu ir, embora tenha ficado contrariado com a condição imposta por seus auxiliares: faria os 268 km de São Félix do Araguaia a Ribeirão Cascalheira num pequeno avião, e não pela estrada de terra batida. “Ele ficou bravo porque disse que queria chegar na altura do povo”, contou Antônio Canuto, 75 anos, um dos coordenadores nacionais da Comissão Pastoral da Terra.
Ordenado padre em 1966 e lotado na prelazia de São Félix a partir de 1971, quando ela foi criada, Canuto largou a batina nos anos 1990 para se casar – hoje já tem netos. Ele é um dos tantos romeiros, de diversos cantos do Brasil e do exterior, que foram ao município participar da romaria. Sem hotéis e pousadas para acomodar tanta gente, os próprios moradores ajudam a receber os visitantes acomodando-os em casa. [relacionados]
Na noite de sábado, 16 de julho, a chegada de Pedro Casaldáliga para o ato de abertura da romaria, acenando ao público com uma mão trêmula, causou comoção entre as cerca de 4 mil presentes. A aparência frágil do bispo fez com que muitos romeiros interpretassem sua presença ali como uma despedida da festa religiosa que ele criou.
Conhecido como bispo do povo – ou vermelho, como dizem os inimigos, por sua histórica ligação com a esquerda – e uma das principais referências internacionais na luta pelos direitos humanos na Amazônia, o religioso catalão Pedro Casaldáliga está radicado no Brasil desde 1968. Um dos fundadores de organizações como Comissão Pastoral da Terra (CPT) e o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Casaldáliga engajou-se na luta pelos direitos das minorias, sobretudo na Amazônia. Seu estilo de vida espartano, com sandálias havaianas e jeans no lugar da batina, e a defesa de uma Igreja com forte atuação social transformaram-no num dos ícones da teologia da libertação, linha católica popular na América Latina nos anos 1970 e 1980.
Os xavantes de Marãiwatsédé, presentes na romaria, têm no bispo um histórico aliado – não só eles, mas também diversas outras etnias, como os tapirapés e carajás. “É um momento ruim para os povos indígenas do Brasil, mas eles nunca tiveram tão organizados”, afirmou Casaldáliga à Pública.
Em 1971, quando ordenado bispo de São Félix do Araguaia, ele deu à sua primeira carta pastoral o título de “Uma igreja da Amazônia em conflito com o latifúndio e a marginalização social”. Este seria o tom de sua atuação nas décadas seguintes, provocando o descontentamento não só da ditadura, mas também de setores da Igreja Católica.
No final de 2012, quando forças federais começaram a retirar os não indígenas de Marãiwatsédé, Casaldáliga foi ameaçado de morte – por meio de cartas, mensagens e telefonemas anônimos — e deixou a região por dois meses, abrigando-se em Goiânia, na casa de um amigo. Já diagnosticado com Parkinson, sua saúde deteriorou-se desde então.
Seu estilo de vida o tornaria um alvo ainda mais vulnerável. Em São Félix do Araguaia, cidade de 11 mil habitantes na margem do rio de mesmo nome, no nordeste do Mato Grosso, sua casa, ainda hoje, é aberta para qualquer um.
Burnier atuava junto a camponeses e indígenas
Reprodução: Amazônia.org
“Este, mais do que nunca, é um tempo de mártires”, ressaltou Casaldáliga, sentado nos fundos de sua casa, que sediou por décadas a prelazia – desde o ano passado, a sede administrativa foi transferida para Porto Alegre do Norte, a 218 km.
Em sua sétima edição, a Romaria dos Mártires foi criada por Casaldáliga para homenagear, como conta, todos aqueles que “deram a vida pela vida”, no Brasil e na América Latina. São vários os mártires homenageados: Chico Mendes, Antônio Conselheiro, o padre salvadorenho Oscar Romero, reconhecido como santo pelo papa Francisco, além do índio pataxó Galdino Jesus dos Santos, queimado vivo por jovens enquanto dormia numa praça em Brasília, e a missionária americana Dorothy Stang, assassinada a mando de fazendeiros no Pará.
A inspiração maior do evento, contudo, foi o padre João Bosco Burnier, assassinado em Ribeirão Cascalheira, ao lado de Casaldáliga, em 11 de outubro de 1976. O episódio ganhou repercussão internacional.
Padre jesuíta nascido em Minas Gerais, Burnier atuava em Diamantino, no oeste do Mato Grosso, e viajou à região do Araguaia para participar de uma reunião do Cimi em Santa Terezinha, no norte de São Félix do Araguaia. O encontro reuniu lideranças locais e religiosos envolvidos na causa indígena.
Dias após a reunião, Casaldáliga e Burnier pegaram um ônibus em São Félix do Araguaia rumo a Barra do Garças. Em Ribeirão Cascalheira, no meio do caminho, decidiram pernoitar. O pequeno povoado, à época distrito de Barra do Garças, realizava naquela noite uma festa para Nossa Senhora Aparecida, mas o clima era de terror. O motivo foi a morte de um cabo da Polícia Militar no povoado, segundo Casaldáliga um agente conhecido “pelas arbitrariedades e crimes”, que trouxe ao local um grande contingente de policiais.
Anos depois, o bispo publicou um relato, intitulado Martírio do padre João Bosco Burnier, pelas Edições Loyola, sobre aquela noite: “Duas mulheres estavam sofrendo na delegacia, impotentes e sob torturas: um dia sem comer e beber, de joelhos, braços abertos, agulhas na garganta, sob as unhas. Ouviam-se os gritos na rua”.
As mulheres foram detidas porque, suspeitava a polícia, sabiam do destino do rapaz acusado de matar o PM. “Decidi ir à delegacia, interceder por elas. O padre João Bosco fez questão de me acompanhar”, escreveu Casaldáliga. Segundo ele, o diálogo com os policias durou de três a cinco minutos, com os agentes fazendo seguidas ameaças e insultos.
“Quando o padre João Bosco disse aos policiais que denunciaria aos superiores dos mesmos as arbitrariedades que vinham praticando, o soldado Ezy pulou até ele, dando-lhe uma bofetada fortíssima no rosto. Inutilmente tentei cortar aí o impossível diálogo. O soldado, seguidamente, descarregou também no rosto do padre um golpe de revólver, e num segundo gesto fulminante, o tiro fatal, no crânio”.
Os moradores de Ribeirão Cascalheira ainda tentaram socorrer o padre levando-o para Goiânia num pequeno avião, mas ele já chegou à cidade morto. “João morreu por acaso. O tiro, na verdade, era para dom Pedro”, afirma Canuto.
O assassinato de João Bosco Burnier levou a população de Ribeirão Cascalheira a um ato de desobediência civil – e em plena ditadura. Após a missa de sétimo dia, realizada no povoado, os moradores se dirigiram à delegacia e começaram a depredá-la. O posto policial, na beira da BR-158, foi destruído – os policiais nada puderam fazer para conter a fúria popular.
Enterro de Burnier em 1976. Morte deixou clima tenso na região
(Reprodução: Amazônia.org)
O crime repercutiu internacionalmente, sobretudo por causa da figura de dom Pedro Casaldáliga, um dos principais religiosos no Brasil a se opor à ditadura.
Meses antes, naquele mesmo ano de 1976, outro crime no Mato Grosso vitimou um padre. Em julho, o missionário alemão Rodolfo Lunkenbein, que atuava na região, e o líder indígena Simão Bororo foram assassinados por ex-moradores retirados da área onde se demarcou a terra indígena de Meruri, próximo de Barra do Garças. Eles também são homenageados na Romaria dos Mártires.
A morte de Burnier foi descrita no relatório final da Comissão Nacional da Verdade, apresentado em 2014, como uma entre as tantas violações da ditadura. O policial Ezy Ramalho Feitosa, autor dos disparos contra Burnier, foi expulso da Polícia Militar, mas nunca foi julgado pelo crime.
A perseguição a Pedro Casaldáliga continuaria. Nascido em Balsareny, na Catalunha, ele nunca mais retornou à terra natal. Na ditadura, temia sair do Brasil e ser barrado pelos militares na volta.
A primeira vez que ele saiu do país foi no início dos anos 1990, conta dom Leonardo Steiner, secretário-geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), quando foi ao Vaticano para uma audiência com o papa João Paulo II. Os parentes espanhóis viajaram até Roma para encontrá-lo. Steiner sucedeu Casaldáliga na prelazia de São Félix, ocupando o cargo de bispo entre 2005 e 2011 – e estava presente na romaria, em julho.
Após a morte de João Bosco Burnier e a destruição da delegacia, os moradores de Ribeirão Cascalheira fizeram uma campanha, com o apoio de Casaldáliga, para que no local fosse construída uma igreja. O Santuário aos Mártires acabou sendo erguido a cerca de 200 metros de onde morreu o religioso – a polícia foi contra a construção da igreja na mesma área da delegacia, onde atualmente existe uma pequena capela em homenagem a Burnier. Está exposta nas galerias do santuário, ainda com marca de sangue, a camisa usada pelo religioso na noite em que foi assassinado.
“Toda romaria ele fala que é a última. Foi assim na de 2011. Nesta, para ele participar, já foi um grande sacrifício. Vamos ver na próxima, daqui a cinco anos”, comentava o padre André Pereira, da prelazia.
Na noite de abertura, Pedro Casaldáliga permaneceu apenas 40 minutos, rodeado pela multidão, que o fotografava sem parar. Antes de a procissão partir da igreja central até o santuário, na entrada da cidade, o religioso acompanhou a apresentação teatral e as danças da abertura.
No domingo, dia 17, Casaldáliga foi para o santuário participar da missa de encerramento. Protegido do forte sol por um séquito de admiradores, ele acompanhou a celebração da frente do palco, seguindo as músicas e os cânticos com as batidas do pé e as mãos.
Pela primeira vez na história da romaria, ele não conduziu missa nem fez pronunciamento. Sintoma do “irmão Parkinson”, como ele já definiu a doença degenerativa que enrijece os músculos, sua fala está cada vez mais prejudicada, o que demanda quase sempre um “tradutor” para ser compreendido.
De acordo com os auxiliares que o acompanham, o bispo não reclama muito de sua condição nem fala sobre a morte. Ele continua disciplinado como antes, garantem, e se adaptou às complicações da doença, como a dificuldade de deglutição e a rotina de exercícios físicos da fisioterapia. Um tombo que levou no início desta década fez com que ele ficasse permanentemente preso à cadeira de rodas.
Pedro Casaldáliga continua inquieto. Também poeta, ele acompanha com interesse os desdobramentos da crise política no Brasil. Em abril, antes de o Congresso abrir o processo de impeachment contra Dilma Rousseff (PT), ele escreveu uma carta de apoio à então presidente. Em julho, quando a reportagem da Pública o visitou, ele seguia com interesse as notícias de Brasília.
Em 2011, na penúltima romaria, ele comentou com os auxiliares que seria a sua última, já que na próxima ele provavelmente estaria “nos braços do Pai”. Errou.
Em julho, após fazer sua oração matinal diária na capela dos fundos de sua casa, em São Félix, o religioso mantinha-se otimista: “Fé e esperança. Sempre. Vamos, enquanto isso, tocando o barco”.
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Casaldáliga e o martírio na Amazônia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU