“Ali, no cemitério dos seus, daqueles pelos quais entregou sua vida, quis ser enterrado. O bispo dos excluídos, descansando eternamente com os abandonados. E seguro que, depois de sua morte, o cemitério não tardará em se tornar em um lugar de peregrinação. Pela rodovia e pelo rio, que tantas vezes navegou em canoa de remo, seguirão chegando os lamentos dos sem-terra, o clamor dos negros, as lágrimas dos campesinos e os sons da dança da paz dos índios karajás, que seguem vivendo ali, na maior ilha fluvial do mundo, ao santuário de São Pedro Casaldáliga”, escreve José Manuel Vidal, doutor em Ciências da Informação e licenciado em Sociologia e Teologia e diretor do Religión Digital, 10-08-2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
“Para descansar
eu quero só
esta cruz de pau
com chuva e sol
estes sete palmos
e a Ressurreição”.
Este é o epitáfio que dom Pedro Casaldáliga quis que se colocasse em sua tumba, no cemitério dos excluídos de São Félix, olhando a beleza sem igual do rio Araguaia.
Cemitério do Karajá
(Foto: Religión Digital)
O epitáfio é a estrofe de um poema escrito pelo próprio dom Pedro, que me mostrou com temor e vigor seu ex-vigário geral, o agostiniano Félix Valenzuela. Escrito à máquina, em uma folha, que seu amigo e próximo colaborador há tanto tempo conservava dobrada em sua carteira. Como uma relíquia, um tesouro, como um dever doloroso, mas necessário.
Lúcido, mas com um Parkinson que avançava sem cessar, e já apenas o permitia falar, há anos que Casaldáliga, plenamente consciente de sua situação, tinha tudo previsto. Não queria deixar problemas a seus amigos agostinianos. Somente seu amor entregue a pedaços, sua memória agradecida e suas recordações semeadas por toda a casa.
Suas últimas vontades foram simples, como sua vida inteira. Sicut vita, finis ita (morremos como vivemos). Um epitáfio em forma de poema. O lógico em um poeta do tamanho de Casaldáliga. E uma simples tumba, sem ostentação alguma, em um cemitério abandonado.
Cemitério do Karajá
(Foto: Religión Digital)
No poema dedicado a seu epitáfio e intitulado “Cemitério do sertão”, enumera os elementos essenciais do seu descanso eterno: a cruz de pau, a chuva e o sol, os sete palmos de terra, preceptivos para se enterrar no Brasil, e a Ressurreição.
Para morrer, somente os sete palmos, não queria e nem necessitava mais. Mas, para viver, a parte justa de terra. Por isso, o grito pela terra percorre do princípio ao fim do poema em seu epitáfio. A lutar por ela, dedicou sua vida e quer entregar também sua morte, como última oferenda. Por esse direito sagrado à terra que não é dos latifundiários, dos doutores, de ninguém, mas sim de Deus.
Na segunda estrofe segue ressoando o grito da terra para os sem-terra em um país de enormes latifúndios. O direito à terra acima da lei dos homens e seguindo a lei da própria Terra, a qual tem direito também os pobres “sem voz e sem vez” e seus filhos. Porque os filhos da gente são gente também. Pessoas humanas com sua sacrossanta dignidade.
Cemitério do Karajá
(Foto: Religión Digital)
O grito da terra segue presente na terceira estrofe. Esse grito pelo qual dedicou a vida em várias ocasiões e que custou a morte de seu companheiro padre João Bosco, assassinado por uma bala que ia em direção ao bispo.
Por isso proclama que esse direito à terra não poderá ser detido, nem com dinheiro, nem com arames, porque os pobres também têm facas. As armas da não violência ativa, com a qual defendem seus direitos. A não violência ativa são os braços dos pobres que rodeiam o céu e a terra.
E na última estrofe acrescenta ao grito da terra o da liberdade. Não basta ter terra. Os pobres exigem terra e liberdade. Não há uma sem a outra. Dois direitos que se exigem. Não como é como se pedissem esmola, nem como se os pobres tivessem que comprar o que lhes pertence. Porque no reino do dinheiro-demônio, os pobres não se vendem e os ricos, por muito podres que estão de dinheiro, nunca poderão comprar a Deus.
Esse epitáfio-grito pelo direito à terra, quis Casaldáliga que aparecesse em sua tumba situada em um cemitério abandonado nos arredores de São Félix. Era o cemitério dos sem-terra, dos que quase não tinham lugar para serem enterrados. Naquela época, na qual morriam as dezenas de crianças e seus pais as enterravam em caixas de sapatos.
Neste cemitério dos excluídos, somente restam algumas cruzes e tumbas sem nome. Mortos desconhecidos, condenados em vida à escravidão da falta de terra própria e, na morte, ao esquecimento. Ninguém os recorda. Ninguém leva flores. Ninguém chora por eles.
Na atualidade, o cemitério está totalmente abandonado e coberto de mato e amoreiras. No centro do outrora campo-santo, ainda campeia uma grande cruz sobre uns quantos degraus de cimento. Ao lado, uma mangueira enorme. E, adiante, o rio Araguaia, largo, belo e abundante, que flui quase inundando as paredes do cemitério dos esquecidos.
Cemitério do Karajá
(Foto: Religión Digital)
Ali, no cemitério dos seus, daqueles pelos quais entregou sua vida, quis ser enterrado. O bispo dos excluídos, descansando eternamente com os abandonados. E seguro que, depois de sua morte, o cemitério não tardará em se tornar em um lugar de peregrinação. Pela rodovia e pelo rio, que tantas vezes navegou em canoa de remo, seguirão chegando os lamentos dos sem-terra, o clamor dos negros, as lágrimas dos campesinos e os sons da dança da paz dos índios karajás, que seguem vivendo ali, na maior ilha fluvial do mundo, ao santuário de São Pedro Casaldáliga. Rogai por nós.
Para descansar
eu quero só
esta cruz de pau
com chuva e sol,
este sete palmos
e a Ressurreição!
Mas para viver
eu já quero ter
a parte que me cabe
no latifúndio seu:
que a terra não é sua,
seu doutor Ninguém!
A terra é de todos
Porque é de Deus!
Para descansar...
Mas para viver,
terra eu quero ter.
Com Incra ou sem Incra,
com lei ou sem lei.
Que outra Lei mais alta
já a Terra nos deu
a todos os pobres
sem voz e sem vez;
que os filhos da gente
são gente também!
Para descansar...
Mas para viver,
terra exijo ter.
Dinheiro e arame
não nos vão deter.
Mil facões zangados
cortam para valer.
Dois mil braços juntos
cercam terra e céu.
Para descansar...
Mas para viver,
terra e liberdade
eu preciso ter.
E não peço esmola
nem compro o que é meu.
A Sudam e o diabo
podem se vender:
gente não se vende,
nem se compra Deus!
Para descansar...
Dom Pedro Casaldáliga