08 Agosto 2017
“Apelar ao dom de Deus para retirar a terra de outros é simplesmente uma blasfêmia ou uma loucura: a mesma (se me permite assim dizer) dos que apelam a um “Alá maior” para descarregar sua metralhadora contra irmãos seus, escreve o teólogo jesuíta José Ignacio González Faus, em carta aberta dirigida ao primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu”.
“Temo que, após esta carta, nunca mais poderei obter o visto para visitar Israel; e talvez não seja essa a única vingança que me caia. Mas, escrevo-lhe não só em defesa de muitos palestinos maltratados, como também em defesa de outros judeus fiéis, verdadeiro “resto de Israel”, que se sentem encurralados em sua terra e que, às vezes, arriscaram a vida ou a liberdade por não querer disparar contra seus irmãos em humanidade”, ressalta o teólogo.
A carta é publicada por Religión Digital, 06-08-2017. A tradução é do Cepat.
Senhor Primeiro-Ministro,
dou-me a permissão de lhe roubar nada mais que cinco minutos, para lhe falar dos “assentamentos”. Ainda que pessoalmente discordo de seu modo de proceder neste ponto, não entrarei em razões éticas ou políticas, há outras instâncias e outros momentos para esses debates, ainda que não funcionem muito bem...
Irei me limitar mais simplesmente ao aspecto bíblico, dado que muitos colonos argumentam: “esta terra é nossa, porque foi Deus que nos deu”.
Abramos mão, agora, da falta de nobreza de quantos argumentam assim sem ser crentes. Atendendo apenas àqueles que ainda acreditam e seguem rezando o Shemá Israel, devo dizer que essa argumentação bíblica não se sustenta, pelas seguintes razões:
1. O mesmo Deus que deu a terra, vista a infidelidade do povo que segue adorando a “Baal e Astarte”, proclama: “tampouco Eu retirarei do meio as nações que Josué deixou ao morrer”, de modo que “os israelitas viveram no meio de cananeus, heteus, amorreus, ferezeus e jebuseus” (Juízes 2,21. 23; 3, 3-5).
Os arqueólogos acreditam, além disso, que a ocupação da terra foi pacífica, porque havia muitas regiões despovoadas. Foi narrada de forma militar para inspirar confiança no apoio de Deus que dá a vitória. E, por exemplo, consta que nem Jericó, nem Ay e nem outras cidades existiam na época em que o livro de Josué narra a conquista.
2. A revelação bíblica de Deus possui um caráter progressivo que se mostra em uma infinidade de exemplos. Inicialmente, cada desgraça que acontece com o povo é lida como um castigo de Deus, por alguns homens que ao menos eram muito conscientes de sua infidelidade ao Senhor. Contudo, entender isso de maneira fixa e estática fez com que, durante o Holocausto, muitos judeus de boa fé não soubessem se defender, acreditando que se tratava de um castigo de Deus, que se valia de Hitler como outrora havia se valido de Nabucodonosor. No momento da agressão de Antíoco IV, Israel havia aprendido que aquilo já não era um castigo de Deus, mas, ao contrário, uma agressão injusta. É lastimável não ter recordado aos Macabeus quando deflagrou a barbárie nazista!
Por aí é possível ver os estragos que uma leitura estática e não progressiva da revelação de Deus pode fazer.
3. O exílio foi vivido por seu povo como um castigo de Deus; mas, nele, Israel aprendeu que Deus não era um bem exclusivamente seu, mas Criador de todos os homens e que também havia gente agradável a Deus fora de suas fronteiras, tanto que Israel incorporou em sua Bíblia, como palavra de Deus, muita sabedoria de outros povos.
E apesar das resistências conservadoras impostas ao retorno do desterro babilônico (que obrigaram a vários repúdios), um judeu poderá, adiante, se casar com uma mulher não judia e isso permanecerá, depois, como algo definitivo, porque o que temos em comum como humanos, capazes de amar, é superior ao que nos diferencia como filhos de uma outra religião. Justamente de um desses matrimônios mistos era descendente Davi e nasceria, depois, Salomão.
4. Fruto dessa dinâmica é a lição de que quando Deus chama ou elege alguém não o chama para proveito seu, mas, ao contrário, para o bem dos demais. Isaías dirá que Israel foi eleito como “luz para as gentes” (42, 6), criando uma sociedade que, em sua humildade e sua pequenez, era modelo de justiça e de colaboração, onde não deveria existir pobres, nem escravos.
O atual estado de Israel, como seus antecessores, perdeu essa exemplaridade, empenhando-se em ser “como as demais nações” (Samuel 8, 5): adorador de Mamon, essa palavra aramaica tão intraduzível, que designa a confiança na riqueza adiante e contrária à confiança em Deus. Com isso, pervertendo aquilo que é um dom de Deus, (a abundância para todos), convertendo-o em uma ofensa a Deus (a abundância para uns poucos).
5. Fruto de toda essa dinâmica é também a crítica da religião patente e presente na Bíblia, onde a religião deixa de ser questão de culto, para passar a ser uma questão de justiça inter-humana: “quero misericórdia e não culto” (Os 6,6); o jejum que eu quero é que divida o pão com o faminto, dê casa ao que não tem... (Is 58); e Deus sabe que será tão pouco ouvido neste ponto, que diz ao profeta: “clama, não pare, grita em voz bem alta”.
Não tranquilize sua consciência dizendo “o templo do Senhor, o templo do Senhor” (Jr 7,4), porque tenho toda a terra para morar nela e não necessito para nada de suas oferendas e seus holocaustos, nem de seus templos. Como, aqui, foi crescendo a pedagogia de Deus, desde os tempos de Davi até os do profeta Jeremias!
Se algum colono é ainda crente, não ouvirá a voz do Senhor lhe dizendo como disse a Jonas: você se queixa por sua habitação e pensa que não me importo em nada com essa Palestina, onde habitam centenas de milhares de homens? (4, 11).
A partir desta panorâmica, você compreenderá que apelar ao dom de Deus para retirar a terra de outros é simplesmente uma blasfêmia ou uma loucura: a mesma (se me permite assim dizer) dos que apelam a um “Alá maior” para descarregar sua metralhadora contra irmãos seus.
Temo que, após esta carta, nunca mais poderei obter o visto para visitar Israel; e talvez não seja essa a única vingança que me caia. Mas, escrevo-lhe não só em defesa de muitos palestinos maltratados, como também em defesa de outros judeus fiéis, verdadeiro “resto de Israel”, que se sentem encurralados em sua terra e que, às vezes, arriscaram a vida ou a liberdade por não querer disparar contra seus irmãos em humanidade.
Começando por Isaac Rabin que aprendeu, assim como Davi, a entoar seu Hannení Elohim Behasedeka: essa “misericórdia meu Deus por Sua bondade”, que hoje tanta gente reza, judeus ou não.
Que esse espírito de Javé, que enche toda a terra, também ilumine você!
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“Apelar ao dom de Deus para retirar a terra de outros é simplesmente uma blasfêmia”. Carta do teólogo José Ignacio González Faus ao Primeiro-Ministro israelense - Instituto Humanitas Unisinos - IHU