Por: André | 01 Junho 2016
“Os meios de comunicação, assim como os políticos, tendem a excitar as emoções e a brincar com elas. Quando as emoções se agitam, é quase impossível manter a serenidade necessária para fazer verdadeira justiça. Por mais difícil que seja não esqueçamos que condenar um inocente é tão grave quanto abusar de outro inocente”, escreve José Ignacio González Faus, teólogo jesuíta espanhol, em artigo publicado por Religión Digital, 31-05-2016. A tradução é de André Langer.
Eis o artigo.
A pederastia é uma aberração criminosa. Mesmo como uma tentação acho que é difícil de compreender. Penso recordar que havia algo dela no Satíricon de Petrônio; mas me pareceu tão estranho que o deixei como coisa daquela Roma corrupta.
Hoje, está na ordem do dia. No mundo e na Igreja. Não sei se porque desvalorizamos tanto o sexo que já não cumpre mais a promessa que veicula e então a buscamos nessas deformidades. Com o agravante de que o abusado converte-se facilmente em abusador, enquanto este tende a apresentá-la como “uma variante a mais”.
Penso conhecer bem a massa humana e posso compreender qualquer fragilidade e qualquer aberração. Mas, nos casos de eclesiásticos, não entendo que depois se mantenha uma dupla vida continuada: isso, mais do que uma imoralidade implica uma autêntica falta de fé. Acrescente-se que, como assinala o filme Spotlight, nos casos da Igreja, após a culpa das pessoas há uma culpa do sistema: uma idolatria do padre mantida talvez como atração vocacional, mas contrária ao Evangelho que só chama padres para Cristo e o Povo de Deus e não os ministros da Igreja.
Algo disso assinalou o bispo australiano J. Robinson, encarregado por seus irmãos de estudar os casos de pederastia. Mas a cúria romana o impediu de levar suas pesquisas por este caminho. O bispo saiu e depois publicou um livro (Poder e sexualidade na Igreja) onde já é expressiva a primeira palavra do título: poder, não sexo. Evoca-me o que vivi em casos de meninas abusadas por seus pais: a autoridade da figura paterna, o desejo da menina de que seu pai a quisesse, é o que as levou a ficar caladas e depois (além disso) as deixava absurdamente culpabilizadas. Não cabe, pois, tolerância com esse flagelo. De acordo.
Mas, todas as realidades humanas têm dois lados e, se nos prendemos a apenas um, as deformamos. Assim poderia acontecer que, querendo fazer justiça, cometamos novas injustiças. Por exemplo:
1- Não aconteceu algo semelhante com os maristas em Barcelona? Os maristas escreveram na Síria páginas heróicas de solidariedade, sem merecer a mínima atenção e reconhecimento por parte da imprensa. Agora, de repente ocupam manchetes de jornais, sem outra identificação: “maristas-pederastia”. Que fossem professores contratados e não membros da Congregação, pouco importava. As explicações dadas pelo Colégio também não tiveram muita divulgação. Imaginemos que a imprensa mais reacionária de Madri publicasse a seguinte manchete: “Pederastia na Catalunha” ou “Os catalões pederastas”. Isso nos pareceria justo?
Se a resposta é “não”, perguntemo-nos agora: temos sido justos com os maristas? Ou há gente que, por não sei qual outra estranha perversão, parece que só encontra prazer quando pode jogar lixo sobre a Igreja? E me atrevo a falar assim porque, pessoalmente, sofri bofetadas e acusações por “não amar e criticar a Igreja”. Mas as críticas devem servir para melhorar a realidade, não para gozo próprio. Houve o mesmo clamor constante quando Sánchez-Dragó jactou-se de ter transado com duas adolescentes de 13 anos... mas japonesas?
2- Em 2004, em Outreau, um povoado francês, explodiu um escândalo de pederastia. Cinco anos depois, vários condenados foram declarados inocentes, mas um deles já se havia suicidado na prisão, por desespero. Um médico, prefeito de Sécher, passou vários anos na prisão até que o acusador reconheceu ter mentido. Pois bem, a dor do injustamente acusado é tão grande quanto a do canalhescamente abusado. Sei disso porque conheço um caso que me fez compartilhar essa dor pessoalmente.
Infelizmente, a justiça humana não apenas pode ser, às vezes, deliberadamente injusta, mas tropeça frequentemente com mil obstáculos devidos à complexidade do real. E quando já se criou um clamor emocional é muito difícil serenar as massas, que se sentirão compreensivelmente traídas. Mas a autêntica justiça reclama segurança na culpa.
“Tolerância zero” não significa converter a presunção de inocência em presunção de culpabilidade, nem perverter o clássico princípio romano: “in dubio pro reo” em “in dubio contra reum”. Porque há casos em que não temos senão a palavra de um contra a palavra de outro. E esta geração onipotente do mimo, do Ipad e do selfie, não tem muitos escrúpulos em ameaçar que, “se me suspendes as ‘mates’ faço uma denúncia contra ti”.
3- É estranho que pessoas que passam dos 50 anos, sintam hoje necessidade de denunciar abusos sofridos há 40 anos, e sempre em colégios religiosos. Já corre o rumor de que, por trás desse dado, late uma campanha camuflada contra a escola estabelecida. Recordemos que, nos Estados Unidos, a denúncia repentina de casos antigos coincidiu com a oposição da Igreja à barbárie de Bush no Iraque. E que, tanto no Chile de Allende como na Venezuela de hoje, junto ao inegável desabastecimento produz-se um monopólio oculto, como acaba de denunciar um bispo venezuelano.
4- Um outro problema vergonhoso nosso é a violência machista. Mas uma policial (mulher para mais informação) me disse um dia que eu não podia imaginar a quantidade de denúncias falsas que recebem; e que não podiam dizer isso porque toda a opinião pública cairia em cima deles e os acusaria de cumplicidade.
E para terminar: os meios de comunicação, assim como os políticos, tendem a excitar as emoções e a brincar com elas. Quando as emoções se agitam, é quase impossível manter a serenidade necessária para fazer verdadeira justiça. Por mais difícil que seja não esqueçamos que condenar um inocente é tão grave quanto abusar de outro inocente.
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Fazer justiça injustamente. Artigo de José González Faus - Instituto Humanitas Unisinos - IHU