13 Agosto 2020
"No dia 8 de agosto de 2020 faleceu Dom Pedro Casaldáliga e o Brasil completava mais de 100 mil mortos em decorrência do corongo. As homenagens para Dom Pedro na sua páscoa começaram no dia 8 mesmo em Batatais (São Paulo) onde três bispos rezaram a Missa de exéquias. Passou depois, em sua última peregrinação, por Barra do Garças e Ribeirão Cascalheira para chegar no dia 11 em São Félix do Araguaia onde viveu desde 1968. Ali está sendo plantado no dia 12 como trigo para produzir muito fruto e transcender essa vida presente com a Páscoa definitiva. Assim estará presente de forma mais intensa entre nós, um dom para a humanidade, mas especialmente para os A'uwe de Marãiwatséde. Por isso, tornou-se necessário mais dados para compreender o que está acontecendo entre os A’uwe Uptabi, uma resistência indígena sem precedentes dessa etnia guerreira do tronco linguístico macro-Jê", escreve Aloir Pacini, padre jesuíta, antropólogo e professor da Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT.
Em diferentes reuniões e apelos ao governo federal, foi apresentada a situação urgente do povo A’uwe Uptabi (Xavante) por causa da pandemia do corongo que se alastrava entre os povos originários. Segundo dados do Ministério da Saúde e do Conselho Nacional de Secretários de Saúde, a taxa de letalidade na população A’uwe Uptabi alcançou 11,7%, índice 160% maior que a atual média da população brasileira (4,5%) em junho.
O avanço da pandemia entre os povos originários no Brasil fez a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) formalizar, no fim de junho, a denúncia de “genocídio” junto ao Supremo Tribunal Federal (STF). O documento denuncia a “irresponsabilidade sanitária” do governo federal e a possibilidade real de extermínio de etnias, especialmente as ditas “etnias livres” ou em isolamento voluntário. Entre os órgãos estatais acusados de omissão e falha na condução de políticas públicas específicas de enfrentamento a Covid-19 estão a Funai e a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), vinculada ao Ministério da Saúde.
No último dia 17 de junho, por exemplo, a Assembleia Legislativa de Mato Grosso aprovou, em primeira votação, o Projeto de Lei Complementar 17/2020, chamado “PLC da Invasão”, que autoriza o Cadastro Ambiental Rural – CAR de fazendas sobre territórios tradicionais de indígenas que ainda não foram homologados pela União, incluindo áreas já comprovadas ou em vias de demarcação definitiva. Por conta dessa ofensiva, 62 entidades da sociedade civil, às quais se somou o Conselho Indigenista Missionário (CIMI/MT), as Irmãs Azuis e os jesuítas do Mato Grosso, denunciando tal PLC 17/2020, a Instrução Normativa e a política genocida dos governos estadual e federal. Grande foi a pressão sobre o bispo de Juína, Dom Neri Tondello, que veio a público manifestar-se contra o descalabro do governo estadual e federal, principalmente porque estamos em tempo de pandemia. Com essa pressão, o governo recuou. Mas os casos de avanço de contágios e mortes por causa do corongo aumentavam dramaticamente, como mostram os gráficos abaixo.
Casos de corongo na região de Barra do Garças (MT) em 30/06/2020
Nesse contexto, no dia 8 de agosto de 2020 faleceu Dom Pedro Casaldáliga e o Brasil completava mais de 100 mil mortos em decorrência do corongo. As homenagens para Dom Pedro na sua páscoa começaram no dia 8 mesmo em Batatais (São Paulo) onde três bispos rezaram a Missa de exéquias. Passou depois, em sua última peregrinação, por Barra do Garças e Ribeirão Cascalheira para chegar no dia 11 em São Félix do Araguaia onde viveu desde 1968. Ali está sendo plantado no dia 12 como trigo para produzir muito fruto e transcender essa vida presente com a Páscoa definitiva. Assim estará presente de forma mais intensa entre nós, um dom para a humanidade, mas especialmente para os A'uwe de Marãiwatséde. [1] Por isso, tornou-se necessário mais dados para compreender o que está acontecendo entre os A’uwe Uptabi, uma resistência indígena sem precedentes dessa etnia guerreira do tronco linguístico macro-Jê.
Um diagnóstico do Distrito Sanitário Especial Indígena Xavante com uma população de 21,4 mil índios que vivem em 317 aldeias, em área de 68,4 mil quilômetros quadrados, auxilia a compreender a complexidade das ações: o Dsei Xavante tem 455 profissionais de saúde em Terra Indígena, dos quais, 281 trabalham como agente indígena de saúde e agente indígena de saneamento que atendem por meio de 32 unidades básicas de Saúde Indígena (UBSI), seis polos-base e duas casas de Saúde Indígena (Casai). O programa Mais Médicos tinha uma atuação dos cubanos que eram bem quistos e foram expulsos por esse governo. As informações são que ainda dez pmédicos atuam no Dsei. Para o Ministério da Saúde, o atendimento médico precoce evita a remoção de pacientes para a rede hospitalar municipal ou estadual. Contudo, as falas dos A´uwe Uptabi reclamam justamente que a Força Tarefa chegou tarde no trabalho de enfrentamento da pandemia e sentiram-se agredidos com o aparato de guerra que foi trazido com eles.
Casos de corongo nas T.I dos A'uwe Uptabi (28/07/2020)
Oportuno é escutar os A'uwe Uptabi, a partir da live mediada pelo sociólogo e cartunista Brás Rubson, “A luta do povo Xavante contra o coronavírus”, Cristóvão Tsereroodi Tsoropre (professor, licenciado em Filosofia e em História; mestrando em Geografia pela UEG, pertencente ao povo A'uwe Uptabi, Aldeia de São Marcos, T.I. São Marcos, que perdeu contato e Rogério Gomes Prepe — Cacique Xavante, formado em Teologia e história, presidente local do Conselho Distrital de Saúde Indígena Xavante (Aldeia Campos do Jordão), que veio somente para comunicar que não poderia participar por estar nos rituais de luto pelo sogro, cacique da aldeia Água Limpa que falecera acometido pelo corongo.
Chamada para a live: “A luta do povo Xavante contra o coronavírus”
Crisanto Rudzo Tseremey’wa (técnico em administração, Aldeia Três Marias, T.I. Parabubure; presidente da Federação dos Povos e Organizações Indígenas de Mato Grosso — FEPOIMT) falou visivelmente emocionado com as sequelas da covid-19, e os sinais de luto, ou seja, os cabelos cortados bem curtos. Explicou a subnotificação oficial da Sesai e também do próprio número fornecido pelos indígenas, ou seja, os 51 falecidos em decorrência do corongo, somente os que eles confirmaram. Mas muitos mortos nas residências não foram registrados como acometidos pelo corongo, porque não foram feitas as coletas de sangue para testar, ou o resultado era incerto, ou ainda não chegava em tempo. Então não sabe quantos são “os que se foram, os que partiram nas suas residências, nas suas aldeias por covid-19”. Em seguida falou da pessoa de número 51, que morava em Sangradouro, falecida no dia 03/08/2020:
“Foi uma das minhas tias, a finada, a dona Rosalva, uma das mães do ex-presidente do Condisi Xavante, gestão passada. Então, nós estamos de luto, mas como eu disse nas entrevistas, no leito da UPA em Barra [do Garças]: Eu não tenho mais tempo para chorar, para lamentar. Meus dois pilares se foram... Eu sei que um bastão está sendo passado para a minha geração, e as gerações que estão vindo atrás de mim, as lideranças na casa de 40. Então, eu [rezo e creio] sobretudo em nosso único Deus, o Altíssimo, que eu tenha meus pais com Ele - que nós, os indígenas acreditamos que nosso Paraíso está do outro lado do oceano -. Então estamos bem, estão junto com nossos ancestrais, descansando. E agora [nos resta] buscar o entendimento. E tentar colocar que nós indígenas somos diferentes, podemos viver diferente, e sempre respeitando as posturas das outras nações. Espero que nos entendam isso, o mundo é dinâmico [...]. (04/08/2020, transcrição minha).[2]
Poliana Dallabrida, como repórter em Esplanada da Morte (II) — Chefe da Funai foi aliado de invasores de terra indígena no MT, fez uma análise de conjuntura pertinente nesse contexto que auxilia trazer alguns detalhes. Para compreender a trama de relações que os A’uwe travam com a sociedade e o Estado brasileiro, é preciso dizer que eles temem uma pessoa que eles conhecem, Marcelo Augusto Xavier da Silva, ex-delegado da Polícia Federal (PF) em Barra do Garças (MT), que completou um ano na presidência da Fundação Nacional do Índio (Funai), agora controlada por ruralistas. Trata-se de um período desastroso que coincidiu com o aumento do desmatamento, violência contra os indígenas considerados resistentes, benesses para os considerados amigos e o avanço do corongo entre 145 etnias no Brasil. No dia 29 de maio, já em meio à pandemia, o ex-delegado da PF recebeu uma homenagem concedida pela Assembleia Legislativa pelo trabalho realizado à frente da Funai. A homenagem foi entregue pelo deputado estadual Silvio Favero (PSL), idealizador da homenagem e produtor de soja em Lucas do Rio Verde (MT).
“Marcelo Xavier trocou telefonemas com invasores da TI Marãiwatsédé, no Mato Grosso, durante o período em que trabalhava no processo de desintrusão da terra indígena, em 2014. Um procurador que atuava no caso conta que o atual chefe da Funai era um aliado dos grileiros. E, por isso, foi afastado das investigações. [...] Desde julho de 2019, Marcelo Xavier assiste passivamente à escalada da violência e do desmatamento em territórios indígenas. No ano passado, uma a cada três famílias vítimas de conflitos no campo era indígena e sete líderes foram assassinados no Amapá, Amazonas e Maranhão. É o maior número de assassinatos de indígenas dos últimos dez anos, de acordo com o caderno Conflitos no Campo 2019, da Comissão Pastoral da Terra (CPT)”. [3]
Processo de desintrusão motivou documentário do
Ministério Público Federal. (Foto: MPF)
O Coordenador executivo da Apib, Dinaman Tuxá afirmou: “O presidente da Funai não conseguiu avançar em nada. Ele não cumpre com o seu dever de proteger, demarcar e solucionar problemas”. Descrito como ríspido e arrogante, Marcelo Xavier também não dialoga com os indígenas. Segundo Dimanam: “Infelizmente, o perfil autoritário do atual presidente da Funai não se coloca à disposição para que haja um diálogo com o movimento indígena, com a Apib. Pelo contrário, ele atende interesses particulares, que não são os dos povos indígenas”. Os únicos indígenas ouvidos por Xavier são os que representam o “etnodesenvolvimento”, sinônimo para a entrada do agronegócio e da mineração nas Terras Indígenas. No encontro com indígenas de Campo Novo dos Parecis (MT), em fevereiro de 2019, foram convidadas nove etnias da região para incentivá-las a fazerem parcerias com os produtores de soja, cuja “festa da colheita” do povo Paresí foi também um ato político para indicar por onde iriam os incentivos do governo. Esse momento foi prestigiado pelos ministros Ricardo Salles e Tereza Cristina, adornados com cocares, para promover a abertura dos territórios às atividades agropecuárias. Xavier afirmou ali que mesmo pequenas áreas de terras podem ser usadas para a agricultura mecanizada.
A atuação de Xavier é lembrada pelos ruralistas que defenderam sua nomeação para a Funai, após a demissão do general Franklimberg de Freitas, em junho de 2019. O militar entrou na mira do secretário de Assuntos Fundiários do Ministério da Agricultura, Luiz Antônio Nabhan Garcia, conhecido por “salivar ódio aos indígenas”, conforme definição do próprio Franklimberg. Ex-presidente da União Democrática Ruralista (UDR) e ligado a milícias rurais da região do Pontal do Paranapanema, em São Paulo, Nabhan Garcia possui alianças estratégicas com o presidente da Funai. Ambos anunciaram a promulgação da Instrução Normativa nº 9/2020, que alterou as regras de emissão da Declaração de Reconhecimento de Limites no Sistema de Gestão Fundiária (Sigef), fazendo com que apenas as reservas, terras dominiais e Terras Indígenas “homologadas por decreto presidencial” sejam reconhecidas no sistema. A medida excluiu 237 territórios em processo de demarcação, que somam 9,8 milhões de hectares — agora disponíveis para ocupação e venda. Segundo levantamento da Agência Pública, apenas um mês após a publicação da Instrução, 72 fazendas que invadem territórios indígenas foram certificadas pelo governo.
Dimanam Tuxá considera as intenções de Marcelo Xavier aparecem, pois pelos frutos conhecemos se é joio ou trigo: enfraquece a Funai e a política indigenista, o que reflete-se nas mortes de líderes indígenas, nas invasões do território com garimpo, desmatamento [4] e no avanço da pandemia, ou seja, ele transformou a Fundação Nacional do Índio (Funai) num órgão de defesa dos ruralistas, e não de defesa dos interesses indígenas.
Parece que a Força Tarefa enviada aos A’uwe Uptabi (Xavantes) era uma resposta estatal aos pedidos de socorro contra o corongo. A estratégia de guerra estabelecida criou grande temor nas comunidades por causa do exagerado espetáculo militar: o avião da FAB, os helicópteros e caminhões de guerra, ambulâncias militares, com 24 “soldados” que desceram e “invadiram” as aldeias, a partir de 27 de julho. Por isso reclamam que nem foram consultados sobre esta operação militar, uma demonstração de força e um show para os meios de comunicação. Os resultados práticos são questionáveis nesses espetáculos, pois querem uma atenção continuada na saúde e hospitais de campanha próximos para atendimentos de urgência.
Além do processo militarizado das ações que não agradou, Hiparidi Toptiro, coordenador da Organização Xavante Wãra, que vive na Terra Indígena Sangradouro, onde morreram 8 pessoas, afirma que os dados dos infectados e mortos pelo corongo são ocultados pela Sesai a pedido do governo federal. Sobre a Força Tarefa, Hiparidi diz que o governo não os conhece e se aproveita da enfermidade, para invadir e trazer cloroquina, medicamento criticado pela Organização Mundial de Saúde contra o corongo, e pensa que talvez seja essa a arma que vão usar para um genocídio: com isso justificariam a redução dos territórios e, com a morte dos mais velhos, acabariam com os conhecimentos tradicionais. [5]
Depois do atendimento em São Marcos e Campinápolis, as próximas etapas que estavam previstas para 3 a 9 de agosto, na área do Polo Base Marãiwatséde, e de 10 a 16 de agosto, no Polo Base Sangradouro do DSEI Xavante nos municípios de Alto Boa Vista e General Carneiro foram rejeitadas pelos A’uwe Uptabi. Como essas duas não foram aceitas pelos A’uwe Uptabi, o que está no bojo do problema é a desconfiança da etnia com intenções do governo, seja no uso de medicamentos como cloroquina, hidroxicloroquina, ivermectina etc, pois as notícias são que foram trazidos “2,8 toneladas de medicamentos” [6].
Conforme o Ministério da Saúde e a propaganda oficial do governo, o Dsei Xavante já recebeu mais de 23 mil itens, sendo 1.920 testes rápidos para covid-19. Cada Equipe de Resposta Rápida tem médico, dois enfermeiros e um técnico de enfermagem que atuam diretamente no enfrentamento da covid-19, com a identificação precoce de sintomas, aplicação de testes rápidos e orientações sobre isolamento social.
Ritual dos A’uwe Uptabi Foto dos A’uwe Uptabi (Xavantes) (Foto: disponível aqui)
A espiritualidade A’uwe Uptabi (Xavantes) aparece na forma como vivem e se manifestam, mesmo em público, nesses momentos de tanta tensão e dor pela partida dos seus parentes. Existe uma altivez, uma dignidade que não lhes foi quebrada, sabem que não podem ser usados como propaganda para um governo genocida. Os A’uwe Uptabi estão demonstrando sua autonomia, seu protagonismo e, principalmente e sua desconfiança diante das intenções do atual governo. Os dois áudios que o Divino Tserewahu Tsereptse, filho do cacique Alexandre Tsereptse, enviou no dia 10, para informar seu tio mostram alguns dos motivos da Comunidade Xavante recusar a ação dos militares.
Um deles pode ser os dois documentos emitidos pelo Procurador Everton Pereira Aguiar Araújo, sobre a recusa dos Xavante de Marãiwatséde, que mostram sua incompreensão da complexidade da situação e falta de sensibilidade para com os sentimentos de luto vividos pelos A’uwe Uptabi, chamando-os de irresponsáveis, quando passaram três dias reunidos para tomar a decisão de não aceitar a Força Tarefa. Não aceitaram a ação militar em Marãiwatséde e agora que iria começar o trabalho em Sangradouro, conforme marcado, também ali não aceitaram, com o argumento de que na hora que mais precisavam a ajuda, não vieram. E agora querem fazer propagando do Exército e do Governo. Um momento tenso e cheio de dores para o discernimento, mas de zelo para salvaguardar a sua etnia porque cada vida que se vai tem uma rede de luto e sofrimentos acoplados. Possuem também uma confiança em Deus que tudo guia, através de seus caciques e pajés, em benefício dos A'uwe.
Vamos acompanhar a fala de um representante da Terra Indígena Sangradouro Divino Tserewahu Tsereptse, filho do Cacique Alexandre Tsereptse, que está negociando as condições dessa presença “do Exército” no meio deles. Suas falas são enviadas para informar os demais parentes, para que haja uma rede de informações e seja compreendido pelos demais de outras aldeias as decisões tomadas. Dá para ficar emocionado com o canto e o áudio, é dramático porque, a voz que foi disponibilizada para compreender o drama vivido é sentida, e é possível escutar ao fundo o som dos rituais em andamento em Sangradouro:
“A gente não aceitou aqui a entrada e atendimento do Exército. Porque eles vieram muito tarde, sabe tio, e eles também vieram tentando mostrar que o governo Bolsonaro, governo brasileiro está fazendo trabalho, cuidando os indígenas. [...] Falamos isso, Bolsonaro está fazendo propaganda do seu governo [...] todos os velhos aclamaram, fizeram aclamação de não aceitar, de não permanecer eles aqui na aldeia Sangradouro. Então, foi duro hoje aqui, foi muito duro. Muitas comunidades apareceram. [...] Porque chegaram muito tarde, [...] já perdemos 8 velhos [...], saberes tradicionais, os velhos sábios já se foram, eles não voltam mais, acabou, vai permanecer pra gente só as lembranças da vida deles, na nossa memória, permanecerá para sempre. Então, ninguém gostou da vinda deles aqui. (transcrição de Aloir Pacini). [7]
Nesse segundo áudio, o som de uma criança pequena que parece estar no colo de quem gravava no celular, indica que o ambiente era mais doméstico. Percebo que Sangradouro está sofrido, as falas remetem às dores pelas perdas das 8 pessoas, mas estão muito seguros do que querem, e das decisões tomadas. Ambos os áudios se complementam, apesar de ser da mesma pessoa, aqui há um esforço de explicação mais detalhada da situação de enfrentamento que estão vivendo:
“Estava falando com meu tio [...] que aqui estiveram o Exército, Força Tarefa hoje, aqui na aldeia. E aí nós não aceitamos, sabe? A gente mandou de volta embora, eles voltaram [...] porque eles vieram muito tarde, sabe, eles não vieram tão cedo não, [...] porque está diminuindo muito agora [...] tempo está melhorando. Já perdemos 8 dos anciões, sabe, isso sentiu muito para gente. Não é essa hora que pode atender... passou, passou. Então, nesse caso, a comunidade não aceitaram, fizeram aclamação muito forte, aclamaram bem forte que não aceitaram. Então, a gente falou muita coisa pra eles. Se o Robson, [...] secretário especial para saúde indígena, viesse, aí sim, aí a gente tentava negociar, a gente falava com ele. [...] Ele não gostou que a gente não gostou da presença do Exército. Então ele mandou recado que amanhã estará aqui na aldeia. E vamos fazer reunião longa com ele, vamos conversar, vamos negociar muita coisa com ele. Depois que ele prometer, depois que ele assinar no documento que preparamos, aí sim, aí vamos tentar fazer o que pode, entendeu? [...] Porque nunca mais voltará aqueles que se foram, acabou, acabou... só permanecerá a saudade, as lembranças pra gente. Então, a gente sentiu muito dores, por isso a gente não aceitou.” (transcrição de Aloir Pacini)
Atualmente, a Funai pertence ao Ministério da Justiça e Segurança Pública e o coronel da reserva [8] Robson Santos da Silva, atua como secretário da Sesai e tem a confiança dos A’uwe Uptabi. No dia 11 estava prevista uma reunião com o Secretário Robson, acompanhado pelo MPF de Barra do Garças para “negociar” e, segundo a forma guerreira de expressão das lideranças A’uwe Uptabi nos dias atuais, assinar documento, forma como pensam que podem mudar a ação do governo. As notícias sobre o resultado desses diálogos não foram repassados, mas a rede de solidariedade da sociedade brasileira está marcada com campanha A'uwe Tsari (SOS Xavante).
No dia 9 de agosto foi o Dia Internacional dos Povos Indígenas [9] e Dom Pedro, como ninguém, sabia proteger e defender os direitos dos povos indígenas, intermediar conflitos e garantir a vida no planeta! Agora “São Pedro do Araguaia”, como fora aclamado por todos por onde passou no seu processo pascal, cumpre seu papel de outro lugar.
Adolescentes A’we Uptabi (Xavantes) levando Dom Pedro para o sepultamento (São Félix do Araguaia, 12/08/2020) | (Foto enviada pelo autor)
Dom Pedro Casaldáliga escolheu ser sepultado à sombra de um pequizeiro, que cresce e fecunda o fruto com as águas do Araguaia, um cemitério ancestral dos Iny (Karajás). No dia 12, enquanto a terra era colocada sobre o caixão, o povo cantava “... e viva a Esperança!”. Dom Pedro foi colocado com os pés voltados para o sol nascente, ou seja, com o rosto voltado para o sol nascente e também para o Araguaia pois o sol que nasce vem da ilha do Bananal, dos Iny, iluminando todo o Araguaia. O costume de dar sepultura aos falecidos é cumprido com o gesto popular de jogar um pouco de terra sobre o corpo do que foi sepultado.
Sepultamento na beira do Araguaia, 12/08/2020 (Foto enviada pelo autor)
Os A’we Uptabi (Xavantes) de Marãiwatsédé se fizeram presentes para ver Dom Pedro Casaldáliga pela última vez. Os A’we Uptabi, devidamente ornamentados, fizeram solenemente o cortejo da Igreja até o cemitério. Depois do sepultamento, o cacique Damião Paridzané falou que fazem pintura no corpo, jogam cinza na cabeça em sinal de luto, que estão trazendo Dom Pedro e a cruz, com a comunidade. E explicou que plantam a cruz junto da sepultura: “faz cruz tradicional para a família levar no cemitério, que simboliza, hora de luta dele aqui na terra acabou, que vai ficar em paz [...] Sentir-se livre de continuar vivendo... por isso estamos trazendo homenagem do nosso povo”. Uma mulher A’we Uptabi que estava ao lado também falou: “Nosso respeito, cruz significa pessoa mais poderoso, pessoa mais respeitado da comunidade, porque luta em defesa do seu povo”. Nos pés da cruz foi colocada uma placa com o pedido de Dom Pedro gravado em alto relevo: “Para descansar, eu quero só esta cruz de pau, com chuva e sol. Estes sete palmos e a ressurreição.” (Pedro Casaldáliga, Prelazia de São Félix do Araguaia, MT).
[1] Trabalhei a primeira etapa da Força Tarefa no artigo de 11/08/2020: acesse aqui e aqui.
[2] Acesse aqui.
[3] Ver aqui; Série destaca o papel de cada ministro no governo genocida de Jair Bolsonaro; Esplanada da Morte (I): o papel de Paulo Guedes na implosão de direitos e na explosão da pandemia; ; Jornalistas Livres.
[4] O desmatamento da Amazônia foi recorde em junho, apesar de operação liderada por militares: Exército sabia dos pontos de maior risco de devastação da Amazônia, mas falhou no combate (03/08/2020). Ver os pontos críticos (hotspots) aqui.
[5] Acesse aqui; e campanha de auxílio aqui e aqui.
[6] Governo envia 2,8 toneladas de medicamentos a terras indígenas Xavante. Publicado em 28/07/2020 pela Agência Brasil – Brasília.
[7] Depois do ocorrido no dia 10/08/2020, durante a noite, foi enviada essa notícia da T.I. Xavante Sangradouro, pois lá, os Xavante também não aceitaram as ações da "Força Tarefa" do governo.
[8] Até fevereiro de 2020, 20 dos 39 coordenadores regionais da Funai foram substituídos, sem diálogo com os indígenas das regiões. Dezesseis Coordenações Regionais da Funai estavam sob gestão de policiais militares ou militares das Forças Armadas recém-nomeados.
[9] A Organização das Nações Unidas (ONU) estabeleceu o dia 9 de agosto como o Dia Internacional dos Povos Indígenas, para proteger os direitos dos povos indígenas, a sua diversidade cultural, seus conhecimentos tradicionais, a sua autodeterminação e reafirmar as garantias previstas na Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Sangradouro, o sangue A’uwe Uptabi que é resistente - Instituto Humanitas Unisinos - IHU