Por: Patricia Fachin | 17 Dezembro 2016
O falecimento de Dom Paulo Evaristo Arns representa um “momento triste” na história da Igreja brasileira, mas é “um momento oportuno para lembrar tudo que ele representou e fez em sua vida”, diz o historiador Kenneth Serbin à IHU On-Line.
Autor de dois livros sobre a história da Igreja brasileira, intitulados Padres, celibato e conflito social. Uma história da Igreja Católica no Brasil (São Paulo: Companhia das Letras, 2008) e Diálogos na sombra: bispos e militares, tortura e justiça social na ditadura (São Paulo: Companhia das Letras: 2001), Serbin relembra a trajetória de Dom Paulo Evaristo Arns durante a ditadura militar brasileira, suas contribuições para a transição durante as negociações para a reabertura democrática e a repercussão de suas posições dentro da Igreja. “Ele se dava bem com Papa Paulo VI, porque esse papa tinha uma visão mais coerente com o Concílio Vaticano II. Foi Paulo VI que o nomeou como arcebispo e depois como cardeal. Mas com a chegada de João Paulo II houve uma reviravolta na Igreja brasileira, especialmente em 1989, quando o Vaticano dividiu a arquidiocese de São Paulo, que foi uma das maiores do mundo, em várias dioceses. Por causa disso, Dom Paulo perdeu prestígio na Igreja e perdeu uma grande parte do seu rebanho, porque ele era conhecido como um pastor da periferia, justamente porque tinha estimulado a criação das Comunidades Eclesiais de Base - CEBs e a criação de um seminário alternativo, no qual os padres viviam entre os pobres”.
Serbin diz ainda que, atualmente, o pontificado de Francisco “representa outro momento na vida da Igreja e uma esperança de que toda essa riqueza da história da Igreja brasileira, que inclui a vida de Dom Paulo, seja resgatada e utilizada de alguma forma”. E acrescenta: “Algum dia veremos o pontificado de Francisco como um novo momento para as correntes progressistas no Brasil”.
Serbin | Foto: curehdblogspot
Kenneth Serbin é historiador, chefe do Departamento de História da Universidade de San Diego e presidente de Honra da Brazilian Studies Association.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Pode nos contar sobre a trajetória de Dom Paulo na Igreja e sobre o modo como ele foi mudando suas posições ao longo dos anos?
Kenneth Serbin – Dom Paulo, de fato, como muitos bispos, apoiou o golpe de 64, mas como muitos, ele também foi mudando de posição no final dos anos 60. Como bispo auxiliar em São Paulo, ele viu que os presos, padres e freiras estavam sendo torturados e maltratados. Isso fez com que Dom Paulo repensasse as posições dele com respeito à ditadura, porque nessa época ele era responsável pela pastoral carcerária e visitava as prisões em São Paulo e por conta disso teve contato com a realidade da repressão. Ele percebeu que as relações entre a ditadura e a Igreja estavam piorando, porque havia ataques a líderes religiosos, a bispos, como Dom Waldyr de Novaes, de Volta Redonda, que foi bastante perseguido nos anos 60, e Dom Helder Câmara, que foi o pai da Igreja progressista no Brasil. Em 1969, por exemplo, um dos padres de Dom Helder, padre Henrique (Pereira Neto), foi brutalmente torturado e depois assassinado no Recife. Essa foi uma mensagem da ditadura para que Dom Helder parasse de defender os direitos humanos. Dom Paulo observava isso e essa situação o ajudou a fazer com que a Igreja retirasse seu apoio à ditadura e passasse a enfrentá-la.
IHU On-Line - Pode comentar como foi a atuação dele junto aos presos políticos e que papel ele desempenhou na transição da ditadura para a democracia?
Kenneth Serbin – Dom Paulo era encarregado da Pastoral Carcerária e visitava os presos. Fazia parte do trabalho pastoral da Igreja dar amparo aos esquecidos, e os presos faziam parte desse grupo de pessoas esquecidas. Houve um caso em que um padre foi preso e torturado em São Paulo e Dom Paulo enfrentou os militares por conta disso. Mais tarde ele se tornou arcebispo de São Paulo e em 1973 foi nomeado cardeal, e a partir desse momento ele começou a ser um interlocutor entre a Igreja e as forças armadas: visitava os generais e tentava resolver os problemas relacionados aos direitos humanos através da conversa, mas, por vezes, ele enfrentava os militares e não tinha medo de criticá-los e divulgar as informações sobre as violações aos direitos humanos.
Os militares da chamada linha dura odiavam Dom Paulo por causa da defesa que ele fazia aos direitos humanos, porque foi a linha dura da ditadura que estimulou a repressão contra a oposição, não só aos guerrilheiros das forças armadas, mas aos padres, irmãs, sindicalistas, agentes de pastorais etc. É importante dizer que o general Médici, que foi presidente de 69 a 74, não gostava de Dom Paulo, porque quando Dom Paulo foi ao Palácio do Planalto se reunir com ele, o bispo reclamou da repressão aos presos e Médici se zangou e praticamente o expulsou do seu gabinete em Brasília.
Nessa época, alguns militares queriam banir Dom Helder do país, por isso ele teve de ficar calado. Foi nesse momento, no início dos anos 70, que os bispos escolheram Dom Paulo para ser o novo porta-voz nacional dos direitos humanos, e por conta disso ele foi importante em todo o território brasileiro.
Houve dois incidentes em que Dom Paulo publicamente enfrentou a ditadura. O primeiro foi em março de 73, quando ele fez uma missa de sétimo dia pela morte do Alexandre Vannucchi Leme, que foi um militante da Ação Libertadora Nacional, e estudante de Geologia da USP, assassinado no DOI-CODI de São Paulo, durante o governo Médici, quando era impossível fazer atos públicos. Alexandre era primo do Paulo Vannucchi, que foi ministro dos Direitos Humanos no governo Lula, e foi autor do Projeto Brasil: Tortura Nunca Mais, o qual Dom Paulo patrocinou e protegeu. O segundo momento em que Dom Paulo enfrentou a ditadura foi no ato ecumênico que realizou em 1975, por ocasião da morte de Vladimir Herzog. Esses foram dois momentos que contribuíram para dar início à abertura, e um dos grandes líderes da abertura foi Dom Paulo, que reivindicava a abertura através de atos públicos, como foram essa missa e esse ato ecumênico.
IHU On-Line - Como foram as relações de Dom Paulo com a Santa Sé ao longo de sua trajetória, especialmente suas relações com os Papas Paulo VI e João Paulo II?
Kenneth Serbin – Ele se dava bem com Papa Paulo VI, porque esse papa tinha uma visão mais coerente com o Concílio Vaticano II. Foi Paulo VI que o nomeou como arcebispo e depois como cardeal. Mas com a chegada de João Paulo II houve uma reviravolta na Igreja brasileira, especialmente em 1989, quando o Vaticano dividiu a arquidiocese de São Paulo, que foi uma das maiores do mundo, em várias dioceses. Por causa disso, Dom Paulo perdeu prestígio na Igreja e perdeu uma grande parte do seu rebanho, porque ele era conhecido como um pastor da periferia, justamente porque tinha estimulado a criação das Comunidades Eclesiais de Base - CEBs e a criação de um seminário alternativo, no qual os padres viviam entre os pobres. Essa foi uma grande experiência da Igreja do Brasil. Mas com a chegada de João Paulo II, essas experiências foram reprimidas, e a divisão da arquidiocese de São Paulo foi um ataque à Igreja progressista brasileira; esse foi um momento que muito abalou Dom Paulo.
IHU On-Line – Essa foi uma ação deliberada do Papa João Paulo II?
Kenneth Serbin – Com certeza. Eu estava no Brasil naquela época e havia claramente um planejamento para que a arquidiocese de São Paulo fosse dividida, justamente porque essa era uma maneira de “cortar as asas” de Dom Paulo e da igreja progressista brasileira.
Muitos acadêmicos dizem que hoje no Brasil existe uma população cada vez mais pentecostal, carismática, e menos católica e menos progressista. Essa é uma questão complexa e há vários fatores que explicam essa mudança, e uma delas, a qual muitas vezes se esquece de mencionar nas análises, é que o papado de João Paulo II fez um trabalho duro contra a Igreja progressista institucional, contra Dom Paulo, Dom Helder e contra os seminários e a publicação de livros da Teologia da Libertação.
IHU On-Line - O que foi a Operação Periferia, introduzida por Dom Paulo?
Kenneth Serbin – Basicamente eram as CEBs e os movimentos de bairro, os clubes de mães, os movimentos de direitos humanos, de proteção às minorias, aos negros, ou seja, havia uma pastoral da periferia, que Dom Paulo criou. Mas a divisão da arquidiocese deixou Dom Paulo com o centro da cidade, e o afastou das periferias. Esse foi um movimento para abafar os movimentos sociais que existiam na periferia.
IHU On-Line - Pós-ditadura, quais foram as contribuições de Dom Paulo para os primeiros anos depois da reabertura?
Kenneth Serbin – Dom Paulo continuou sendo uma referência na Igreja, mas sempre lidando com o fato de que não tinha mais a mesma arquidiocese de antes. Mas mesmo assim ele continuou numa linha progressista. Eu lembro que no começo dos anos 1990, ele criou, em São Paulo, um asilo para aidéticos. Ele foi uma das primeiras pessoas no Brasil a reconhecer a crise de Aids, inclusive esse asilo foi feito para acolher os padres com Aids. Nesse sentido, Dom Paulo tinha uma mente aberta para os novos temas, e com o fim da ditadura não era mais necessário que a Igreja enfrentasse o governo, porque passaram a existir governos democráticos. Então, a Igreja e Dom Paulo passaram a discutir questões importantes como a Aids, a saúde pública no país etc.
IHU On-Line – E que tipo de relações Dom Paulo mantinha com o meio político, com candidatos e partidos?
Kenneth Serbin – Sendo cardeal e bispo, Dom Paulo não podia — nem faria isso — apoiar publicamente nenhum candidato. Mas havia outras pessoas, como o Leonardo Boff e o Frei Betto e muitos padres, que apoiavam, no final dos anos 1980, as candidaturas do PT. A leitura que faço de Dom Paulo é a de que ele não era contra o PT, mas também não podia ser uma voz favorável, porque ele era um bispo.
Uma das grandes conquistas da Igreja, e Dom Paulo ajudou muito nisso, foi ampliar a ideia de educação política, ou seja, contribuir para a formação política dos cidadãos brasileiros no sentido de dizer que é o cidadão que decide por si mesmo em quem vai votar. O trabalho na Igreja era o de conscientizar as pessoas no sentido de elas entenderem a história do Brasil, a realidade brasileira, mas não era responsabilidade da Igreja guiar o eleitor. Nesse sentido, Dom Paulo e outros bispos apoiaram a democracia e nunca oficialmente apoiaram candidatos. Mas havia bispos progressistas, em 1989, que eram favoráveis ao Mário Covas — aliás, muitos dentro da Igreja tinham simpatia e apoiavam a candidatura de Mário Covas. Mas a cúpula da Igreja não era necessariamente petista, mas claramente muitas pessoas da base da Igreja eram petistas naquela época.
IHU On-Line - Na Igreja brasileira, quais foram os principais desafios enfrentados por Dom Paulo e que tipo de contrapontos havia em relação às posições que ele defendia?
Kenneth Serbin – Seus principais desafios foram em relação a sua concepção de como deveria ser a formação do clero e o modelo de Igreja via CEBs, no lugar das paróquias. Ele não acabou com as paróquias, mas com a formação das CEBs as paróquias acabaram perdendo um pouco de importância. Em termos de teologia, ele era um defensor da Teologia da Libertação, e esses elementos recebiam oposições dentro da Igreja brasileira e no Vaticano. Eu diria que Dom Paulo tinha uma visão mais democrática da Igreja, porque a visão tradicional da Igreja é de manter uma hierarquia. Porém Dom Paulo, sendo filho do Concílio Vaticano II, tinha uma visão mais horizontal da Igreja, e essa foi uma das razões pelas quais o Papa João Paulo II foi contra a Igreja progressista, porque ele entendia que ela diminuía a importância da hierarquia.
IHU On-Line – O senhor continua acompanhando a história recente da Igreja brasileira, a nomeação de novos bispos e os impactos do pontificado de Francisco no Brasil?
Kenneth Serbin – No momento não estou acompanhando, porque estou trabalhando em outros projetos sobre a história do Brasil — estou escrevendo um livro sobre os ex-revolucionários que estiveram no poder no Brasil. Mas posso dizer que o pontificado de Francisco é um momento muito interessante para a história da Igreja, porque é o primeiro papa latino-americano, o primeiro papa Francisco e o primeiro papa jesuíta. Acho que a longo prazo, qualquer que seja o caminho da Igreja brasileira, tendo um papa latino-americano, vai fazer com que se compreenda melhor a realidade da Igreja brasileira e latino-americana. Nesse sentido, sim, as experiências da América Latina estão sendo mais valorizadas. Em muitos aspectos o Papa Francisco abraça e contempla a Teologia da Libertação. É como se agora houvesse um resgate depois de dois pontificados que atacaram a Teologia da Libertação, embora ao final os Papas João Paulo II e Bento XVI reconheceram que a Teologia da Libertação tinha elementos interessantes para a Igreja.
Francisco representa outro momento na vida da Igreja e uma esperança de que toda essa riqueza da história da Igreja brasileira, que inclui a vida de Dom Paulo, seja resgatada e utilizada de alguma forma, porque a Igreja, afinal de contas, é uma instituição de dois mil anos, que sempre terá correntes conservadoras e progressistas. Essas correntes competem entre si dentro da Igreja, mas quando olham para o passado, descobrem coisas importantes e tentam recriar a Igreja usando essas ideias do passado. Nesse sentido, algum dia veremos o pontificado de Francisco como um novo momento para as correntes progressistas no Brasil.
Com certeza os velhos progressistas, aqueles que tinham 30 anos na década de 80, agora são pessoas idosas. Essa velha guarda progressista que Dom Paulo representou, e que está começando a sair de cena, está encantadíssima com a escolha de Francisco. Para essas correntes, vive-se um momento de ânimo.
IHU On-Line – Gostaria de acrescentar algo?
Kenneth Serbin – Gostaria de mencionar que estive com Dom Paulo várias vezes, eu o entrevistei para meus dois livros sobre a Igreja brasileira e tive a oportunidade de falar com ele sobre sua vida, sobre a história da Igreja e a atuação da Igreja na história da ditadura. Para mim, esse não foi somente um estudo acadêmico, mas estudos nos quais eu tive contato pessoal com Dom Paulo, pude sentir a pessoa que ele era, e lamento a morte dele, porque como dizem as manchetes dos jornais brasileiros, ele é o último de uma geração. Esse é um momento triste, mas um momento oportuno para lembrar tudo que ele representou e fez em sua vida.
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Dom Paulo Evaristo Arns - Uma referência para a Igreja brasileira à luz do pontificado de Francisco. Entrevista especial com Kenneth Serbin - Instituto Humanitas Unisinos - IHU