17 Julho 2020
Mais da metade da população mundial é pobre: um problema notório e predominante na humanidade, mas evitável. Por que extinguir a pobreza não é prioridade? Desde a infância, diversos fatores incidem no desenvolvimento potencial do órgão chave no organismo humano: o cérebro.
“Nos últimos cinco anos, os estudos da neurociência e a psicologia do desenvolvimento relacionados à pobreza foram atualizados. As primeiras provas empíricas, com informação de nível neural, vinculadas ao sistema nervoso, surgem a partir de 2003. Nos 17 anos, os estudos e a evidência foram muito ampliados”, explica o psicólogo Sebastián Lipina, que aborda o tema em seu livro “Pobre cerebro. Lo que la neurociencia nos propone pensar y hacer acerca de los efectos de la pobreza sobre el desarrollo cognitivo y emocional” (Siglo XXI/ampliado e atualizado).
A entrevista é de Gisela Daus, publicada por Clarín-Revista Ñ e reproduzida por Viento Sur, 15-07-2020. A tradução é do Cepat.
“Como fruto desse trabalho e de esforços semelhantes de outros pesquisadores, lançaremos, em um mês, a primeira rede virtual internacional de pesquisas em neurociência e pobreza, pela qual seremos responsáveis junto com a doutora Martha Farah: uma página web com publicações, contatos para consultar os pesquisadores do mundo que trabalham nessa área e que colocam seu trabalho à disposição do planeta, gratuitamente”, explica o autor, em uma videochamada com Ñ.
Que descobertas recentes destaca em seu campo de trabalho e por quê?
A área amadureceu, há mais consciência do caráter associativo dos resultados. Ao analisar e comparar variáveis, é diferente olhar como se associam, os motivos pelos quais a pobreza se relaciona com o sistema nervoso e os efeitos que gera. A evidência disponível confirma e amplia o que outras disciplinas trazem: que crescer e viver na pobreza se relaciona com modificações do sistema nervoso em todos os seus níveis de análise. Ou seja, do genético-molecular ao funcionamento de milhões de células simultaneamente, como isso se inter-relaciona com condutas em diferentes contextos de desenvolvimento, no desempenho escolar ou simplesmente na expressão de condutas cotidianas.
Os estudos foram ampliados para diferentes sociedades, culturas, o que é expressão de uma visão do desenvolvimento integral, complexa por ser a cultura um fator modulador da forma de viver e experimentar a pobreza. Os países centrais apoiam os periféricos com tecnologia, melhoras nos desenhos de estudos, acompanhando, debatendo e incorporando a visão latino-americana; em fóruns com sociólogos, antropólogos, economistas, entre outros pesquisadores.
Em um sentido geral, permanece como em 2016 por não se conhecer todas as relações causais que permitam explicar a razão pela qual a pobreza produz esses efeitos em nível neural. Também segue vigente a noção de que o impacto da pobreza depende, ao menos, de quatro componentes fundamentais: a acumulação de riscos (por exemplo, experimentar privações materiais e afetivas); em que momento do desenvolvimento essas privações são experimentadas; a susceptibilidade de cada menino ou menina; e a ocorrência de múltiplas privações e ameaças de forma simultânea. A pobreza infantil se associa a fatores negativos no desenvolvimento cognitivo, emocional e escolar no futuro. É importante entender que a pesquisa demonstrou que é possível modificá-lo.
Ao que se refere com o conceito crítico do que é a pobreza e como é vivida?
Uma coisa é medi-la e outra, o que acontece com as pessoas, como a experimentam. Quando se vive na pobreza ocorrem coisas internas por muito tempo, como, por exemplo, o desgaste dos sistemas fisiológicos, o que altera a maneira de processar aspectos emocionais, cognitivos e da relação com o ambiente. Para avaliar um fenômeno tão complexo, não contamos com instrumentos suficientes. Isto significa que só podemos explorar uma parte destes fenômenos.
Por outro lado, existem diferentes crenças sobre suas causas. Um colega pode pensar que a pobreza é natural, “é algo que sempre existirá”, ao passo que outros pensamos que é consequência de um problema de organização socioeconômica. O pesquisador é responsável, caso tenha uma visão potencialmente reducionista. Não deve deixar de ter respeito a quem padece esta tragédia. Isso significa que também devemos trabalhar com eles, com os que sofrem a pobreza. E, nesse sentido, completar um estudo implica modifica-lo. Além da imagem cerebral, precisamos ter uma etnografia completa, feita por um antropólogo, e a voz de quem a vive.
Você destaca a importância de diferenciar entre os períodos críticos e os sensíveis.
Os períodos críticos são momentos de organização máxima de uma função neural. Tem um momento específico de início e fim. Caso ocorra uma mudança dentro desse período, as consequências podem ser permanentes, para o bem ou para o mal. Os períodos sensíveis também são momentos de organização, mas de mais de uma função, costumam ter maior duração, sem clareza do momento de início e fim, durante o qual uma mudança pode afetar a organização dessas funções. Não obstante, é passível de modificação por intervenções e um grande esforço.
As funções cognitivas de autorregulação e a aprendizagem se organizam conforme estes períodos sensíveis. O ciclo embrionário tem muitos períodos críticos para funções básicas do organismo. Na medida em que o desenvolvimento avança e se organiza precocemente, as possibilidades de mudá-lo se reduzem. Esses fenômenos de plasticidade envolvem outros, como os epigenéticos (ciência que estuda como os genes se expressam).
Nesta etapa da pesquisa, estamos acumulando evidência de fenômenos epigenéticos que poderiam ser causas da relação entre pobreza e desenvolvimento do sistema nervoso. Mas ainda precisamos de maior evidência. De qualquer modo, do ponto de vista do cuidado infantil, qualquer menino ou menina deve ter a alimentação necessária para que seu organismo esteja sadio. Ser percebido, respeitado e estimulado para querer, aprender, brincar. Caso tudo isto não aconteça, podem surgir dificuldades em seu desenvolvimento.
O impacto da pobreza no desenvolvimento infantil começa na barriga. É muito importante ao se falar de “crítico e sensível”, não tomar o sensível como crítico e não fechar a possibilidade de que existem coisas a serem feitas, apesar de se viver na pobreza.
Quais são os principais problemas, hoje, no estudo científico da pobreza, no desenvolvimento da disciplina da neurociência da pobreza e no estudo neurocientífico?
O primeiro problema são as perguntas que nós que estamos na área deixamos de fazer, que ainda precisamos responder na próxima década, que tem a ver com entender se o que encontramos em cada cultura é universal ou não. Quais aspectos afetam a todos os seres humanos e quais se relacionam com as diferenças culturais e individuais?
Continua sendo necessário conhecer os mecanismos com os quais a pobreza impacta no cérebro. E, em tal sentido, é necessário considerar fenômenos básicos como os epigenéticos, bem como também os psicológicos e sociais. Importa encontrar mecanismos que nos expliquem as causas, a razão pela qual a pobreza se associa com o sistema nervoso que gera esses efeitos.
Como os “custos cerebrais da pobreza” se relacionam com a produção de “resíduos humanos”?
Durante o acúmulo de adversidades pela pobreza, fica-se exposto a situações de privação materiais, simbólicas-afetivas e se ativa o sistema de regulação do estresse de maneira crônica. Isso desgasta a fisiologia de diferentes sistemas: nervoso, imunológico, cardiovascular. São custos biológicos e neurobiológicos que se aumentam, ampliam a possibilidade de que se fique doente e morra antes do esperado. Isto é produto de como nos organizamos socioeconomicamente e sem intervenções políticas é como gerar “resíduos humanos”.
A chave desta associação é o lugar onde você se posiciona em relação à causa da pobreza. O custo cerebral da pobreza, com a hipótese de Zygmunt Bauman de resíduo humano, é um componente ideológico: ou é um problema das pessoas pobres ou um institucional. Fico com o último.
Por que a pobreza não é prioridade, em sua opinião?
É necessário continuar trabalhando em um sentido multilateral ou intersetorial dentro e entre países, atentos a quais são os valores que deveriam alimentar nossas sociedades, sem excluir as pessoas. Bauman dizia que estávamos em um interregno: o conhecimento que geramos ainda não permite entender o que devemos fazer para tirar mais de meia população mundial da miséria. A peste mostra que a estrutura em que estamos organizados é de todo desigual.
Preocupa-me como focar o conhecimento gerado e criar futuros estudos para melhorá-la. O que podemos aproximar de uma família, um político ou um colega de outra disciplina, que permita melhorarmos como pessoas e sair um pouco desta grande desigualdade? A desigualdade se resolve com política, é impossível se esquivar dela.
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“Durante o acúmulo de adversidades pela pobreza, fica-se exposto a situações de privação materiais, simbólico-afetivas”. Entrevista com Sebastián Lipina - Instituto Humanitas Unisinos - IHU