25 Junho 2020
A saga Viganò não é um cisma por inteiro. Mas é muito mais sério do que apenas uma rixa familiar intracatólica. Há bispos e cardeais envolvidos; círculos claramente simpáticos a ele no mundo das mídias católicas nos EUA; interesses políticos (favoráveis à reeleição de Trump) e eclesiásticos (preparando o próximo conclave).
A opinião é de Massimo Faggioli, historiador italiano e professor da Villanova University, nos EUA, em artigo publicado por La Croix International, 24-06-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Em uma entrevista no horário nobre com Donald Trump, a Eternal Word Television Network (EWTN), no dia 22 de junho, buscou impulsionar a campanha de reeleição do presidente dos EUA entre os chamados “eleitores católicos”.
Raymond Arroyo, conhecido pelo seu apoio ao atual governo e por transformar seu programa de notícias em campanhas pró-Trump e anti-Francisco, perguntou ao presidente sobre a carta do dia 10 de junho que ele recebeu de Carlo Maria Viganò.
Na carta, o ex-núncio papal nos EUA escreveu que ele e Trump estavam unidos em uma batalha cósmica entre as forças do bem e do mal.
“Foi uma tremenda carta de apoio da Igreja Católica”, disse Trump a Arroyo. “Ele é altamente respeitado, como você sabe”, continuou. “Foi bonito. Na realidade, ela tinha três páginas. E era uma carta bonita. E eu gostei. Sim, mas ele está certo naquilo que diz”, divagou o presidente.
Trump claramente quer vender a teoria da conspiração empurrada pelo ex-diplomata papal como uma declaração de apoio político e eleitoral “da Igreja Católica”.
Não está claro o que o presidente dos EUA conhece e entende sobre Viganò. Mas sabemos algumas coisas sobre ele.
O que vem à mente é um diálogo em um dos romances de espionagem Smiley, de John Le Carrè, “A vingança de Smiley”. “Um velho espião com pressa – estes são os piores. Você costumava ensinar isso”, diz o ex-agente do MI5 Toby Esterhase a seu colega George Smiley. Mas esse era o mundo da Guerra Fria.
Na Igreja Católica, um diplomata papal é a coisa mais próxima de um espião. Ele também tem o trabalho de reunir elementos de inteligência.
O ex-núncio de Washington fez o que outros agentes de inteligência às vezes fazem: rebelou-se. E, quando algo assim ocorre, é muito delicado trazer o agente de volta para casa ou garantir que ele não cause mais danos.
A principal diferença entre Viganò e um agente de inteligência é que a Igreja Católica é governada por critérios diferentes.
A constituição dogmática do Concílio Vaticano II sobre a Igreja, Lumen gentium, tem o seguinte a dizer:
“São plenamente incorporados à sociedade que é a Igreja aqueles que, tendo o Espírito de Cristo, aceitam toda a sua organização e os meios de salvação nela instituídos, e que, pelos laços da profissão da fé, dos sacramentos, do governo eclesiástico e da comunhão, se unem, na sua estrutura visível, com Cristo, que a governa por meio do Sumo Pontífice e dos Bispos. Não se salva, porém, embora incorporado à Igreja, quem não persevera na caridade: permanecendo na Igreja pelo ‘corpo’, não está nela com o coração” (LG, 14).
Nessa passagem, há três fatores de incorporação que remetem a Roberto Belarmino, no século XVI-XVII: profissão de fé, recepção dos sacramentos e reconhecimento do governo da Igreja.
Olhando para esses critérios, como podemos entender o atual estado da relação do arcebispo Viganò com a Igreja Católica?
Em questões de fé, ele repetidamente (e, mais recentemente, no dia 9 de junho) tem acusado o Vaticano II de desvio doutrinal, dizendo que qualquer tentativa de interpretar o Concílio de acordo com uma “hermenêutica da continuidade” é agora discutível.
Sobre a recepção dos sacramentos, não sabemos, porque ele está escondido desde agosto de 2018.
Sobre o reconhecimento do governo da Igreja, ele tem acusado o Papa Francisco de crimes e pediu que ele renunciasse. Ele fez isso em agosto de 2018, enquanto o papa estava visitando a Irlanda.
Viganò não é o primeiro bispo a se rebelar, demonstrando desobediência, desafiando as autoridades e cometendo excessos doutrinais.
O falecido arcebispo Marcel Lefebvre, que liderou a Fraternidade Sacerdotal São Pio X (SSPX) em um cisma anti-Vaticano II, foi declarado excomungado em 1988 por João Paulo II, depois que o francês ordenou quatro bispos sem permissão papal.
Dois outros exemplos recentes também vêm à mente.
O primeiro caso é o do bispo francês Jacques Gaillot. João Paulo II o removeu como chefe da Diocese de Évreux em 1995 por expressar publicamente posições controversas sobre assuntos religiosos, políticos e sociais (por acaso, Francisco se encontrou privadamente com Gaillot em 2015 no Vaticano).
O segundo caso é o do arcebispo Emanuel Milingo.
Ele tinha apenas 39 anos de idade quando Paulo VI o nomeou chefe da Arquidiocese de Lusaka (Zâmbia) em 1969. Mas, em 2001, Milingo se casou com uma mulher em uma cerimônia de casamento em massa realizada pela “Igreja da Unificação” da Coreia do Sul.
Cinco anos depois, ele estabeleceu a organização “Married Priests Now!” e, no dia 24 de setembro de 2006, consagrou quatro homens como bispos sem o mandato papal.
A Santa Sé anunciou que Milingo havia sido automaticamente excomungado (latae sententiae) por causa desse ato, e, em dezembro de 2009, ele foi “reduzido” ao estado laical.
Mas o caso de Viganò é diferente.
Acima de tudo, ele é um ex-diplomata papal. Isso significa que ele está rompendo um ethos particular de obediência e um código de conduta, além daquilo que implica o fato de ser bispo.
Em segundo lugar, a sua situação deve ser vista no contexto dos ataques contra o Papa Francisco que estão vindo dos EUA.
Viganò é italiano, mas ele passou os últimos cinco anos de seu serviço público à Igreja em Washington (2011-2016), onde se tornou parte das “guerras culturais” intracatólicas. Ao fazer isso, ele se familiarizou com as mídias e os círculos políticos que estão ativamente levando ao extremo uma certa agenda, incluindo suas tentativas de derrubar o papa. Aparentemente, isso não chocou vários bispos dos EUA. Eles chegaram ao ponto de atestar a integridade pessoal de Viganò, quando ele tentou derrubar o papa legitimamente eleito em 2018. Antes de se rebelar, George Weigel saudou Viganò como o melhor núncio que a Igreja nos EUA já havia conhecido.
E, terceiro, na época de Gaillot e Milingo, a Igreja Católica era menos fragmentada publicamente. Ela ainda não fazia parte de uma luta civilizacional que se expressa, em termos estadunidenses, como as “guerras culturais”.
É uma luta para defender uma certa “forma católica” idealizada contra qualquer mudança possível, que é apresentada como necessária para a sobrevivência da Igreja no hemisfério ocidental.
Ela possui cânones precisos sobre a sociedade (com foco em questões da sexualidade e da vida), a economia (libertarismo e nacionalismo misturados com confessionalismo) e as relações internacionais (antagônicas em relação ao mundo muçulmano e à China).
Não é apenas uma nova versão conservadora da doutrina católica em um mundo mais dominado pela tecnologia e pelo utilitarismo.
Pelo contrário, é uma ideologia que tende a lucrar com um retorno ao nacionalismo religioso e étnico, com a presença dominante das novas mídias e da internet, com o enfraquecimento das esperanças sobre a unidade ecumênica e com a ascensão do chamado “ecumenismo do ódio”, assim como com a prevalência das identidades políticas sobre as teológicas.
Isso faz parte do quadro do catolicismo do século XXI no hemisfério ocidental. E, nesse quadro, a saga Viganò é como uma infecção oportunista em um corpo debilitado.
Existe o corpo debilitado da Igreja Católica e também existe o corpo debilitado dos Estados Unidos da América. Neste ano eleitoral, já vimos o presidente Trump tentar atrair os votos dos católicos conservadores mostrando a sua relação com Viganò. Esse é um sinal de que Trump e seus facilitadores católicos estão dispostos a apostar nos eleitores católicos brancos indecisos.
Como observou Robert Christian na The Tablet, o presidente e seus apoiadores esperam que esses católicos “comprem a teoria do ‘Estado profundo’ e se impressionem com o apoio de Viganò”, com o respaldo de “cínicos, em lugares como a EWTN e a Fox News, que alcançam muitos eleitores que estão no meio do caminho, assim como ultraconservadores, tratando as teorias da conspiração de Viganò como confiáveis”.
Qualquer que seja o efeito eleitoral desse endosso específico que o presidente em exercício tem recebido de um ex-diplomata papal rebelde, esse já é um problema significativo para a Igreja Católica nos EUA. Há alguns bispos e párocos que têm sido cúmplices nisso: em alguns casos, até mesmo distribuindo a carta de Viganò aos fiéis. A área cinzenta de cumplicidade com a agenda do ex-núncio é mais política do que teológica, embora a simpatia por ele também seja motivada por uma profunda hostilidade contra o Concílio Vaticano II.
É por isso que é complicado para o Vaticano intervir nessa saga.
Disciplinar Viganò não resolverá o problema teológico da Igreja dos EUA, onde vários católicos influentes (bispos, clérigos, jornalistas e doadores ricos) estão apoiando uma certa agenda que está mais próxima do ex-núncio do que do Papa Francisco.
Há um silêncio que vem da prudência e um silêncio que vem da cumplicidade.
Em vez de excomungar ou expulsar Viganò, seria melhor que a Santa Sé e a Conferência dos Bispos dos EUA simplesmente emitissem uma declaração esclarecendo a atual posição do ex-núncio. No mínimo, essa declaração deveria deixar claro que Viganò não fala pelas legítimas autoridades da Igreja Católica.
A Conferência dos Bispos da Alemanha fez algo semelhante depois que o cardeal Gerhard Müller, ex-prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé do Vaticano, assinou um manifesto em maio que dizia que a pandemia do coronavírus fazia parte de uma conspiração.
A saga Viganò não é um cisma por inteiro. Mas é muito mais sério do que apenas uma rixa familiar intracatólica.
Há bispos e cardeais envolvidos; círculos claramente simpáticos a ele no mundo das mídias católicas nos EUA; interesses políticos (favoráveis à reeleição de Trump) e eclesiásticos (preparando o próximo conclave).
A esse respeito, vale a pena observar que, no próximo período, haverá o lançamento de alguns livros de autoria de renomados analistas católicos, conhecidos pela sua hostilidade a Francisco, e lançados por editoras “católicas” dos EUA que trazem a expressão “o próximo papa” como título principal.
Isso é muito mais do que de mau gosto e impróprio para a etiqueta católica. É revelador de um “senso da Igreja” falho, de um ânimo subversivo desencadeado pelas antipatias mais profundas possíveis contra o Papa Francisco.
Viganò é o subproduto de uma família profundamente dividida que desenvolveu diferentes tipos de lealdade, inclusive nos mais altos níveis da Igreja. “Todo mundo tem uma lealdade em algum lugar”, diz George Smiley a seu assessor Peter Guillam, sobre o agente dissidente Ricky Tarr.
No caso do arcebispo Viganò, essa lealdade em algum lugar certamente não está no papado de Francisco nem na Igreja Católica.
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Quando um diplomata papal se rebela: o que fazer com Dom Viganò e seus ataques contra o Papa Francisco. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU