17 Junho 2020
"Com todas essas revoluções de pessoas de cor, mulheres e LGBTQs, entendo por que o senhor sente existir um apocalipse em curso. Porque, de muitas maneiras, para homens como o senhor e o presidente Trump, estas coisas representam o começo do fim dos tempos. É o fim da supremacia da brancura", escreve Jamie Manson, teóloga, mestre pela Yale Divinity School, onde estudou teologia católica e ética sexual, em carta publicada por National Catholic Reporter, 16-06-2020. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Prezado Dom Carlo Maria Viganò,
É muito pouco provável que o senhor alguma tenha vez lido a minha coluna. Mas aqueles que já a leram jamais pensariam que o senhor e eu temos algo em comum. Mas temos. Compartilhamos o tipo de imaginação católica que vê a resistência e as revoluções como conflitos cósmicos.
Com interesse, li sua recente carta ao presidente Donald Trump. Devo dizer: parece que o senhor tirou as táticas aí empregadas diretamente do manual de instruções de seu colega Dom Timothy Dolan, cardeal-arcebispo de Nova York. O senhor massageou o ego de Trump e foi recompensado com algo que o senhor próprio e o presidente visam de modo insaciável: atenção.
Também como o nosso presidente, o senhor parece surpreendentemente não perceber o quão racista é sua resposta ao nosso momento de despertar antirracista. O senhor vê este tempo como um conflito entre “os filhos da luz e os filhos das trevas”, sugerindo, ao que parece, que os negros e seus apoiadores pertencem ao segundo grupo. Esses “filhos das trevas”, como o senhor escreve, “representam uma minoria absoluta”. Vergonhoso.
O senhor explica que os chamados “filhos da luz” são objeto de discriminação: “Os bons são mantidos reféns pelos ímpios e por aqueles que os ajudam por interesse próprio ou por medo”.
Inúmeros colegas meus consideraram sua carta como delírios de um líder cismático, problemático e que busca se tornar celebridade. Não que eu discorde deles, apenas acho importante o senhor saber que eu conheço bem isso o que tem feito. E isto é importante reconhecer, pois muitas pessoas de direita, bem menos histriônicas mas muito mais influentes do que o senhor, estão fazendo a mesma coisa.
Vocês todos empregam o truque mais antigo dos livros fundamentalistas: distorcer a realidade para parecerem sitiados. É o tipo de retórica que elegeu Trump e que poderá levá-lo à reeleição.
Os extremistas religiosos prosperam com base na noção de que estão constantemente em conflito, muito embora, na maioria dos casos, eles representem a maioria e tenham uma superabundância de influência. Vejamos: mais de um quinto da população americana é católica. São mais de 51 milhões de pessoas, quase 60% das quais são brancas. Os católicos de direita ocupam as nossas mais altas cortes, e outros usam suas fortunas pessoais para alavancar influência política.
Da mesma forma, os evangélicos conservadores compõem 25% da população do país. São quase 60 milhões de pessoas, 76% das quais são brancas. Eles ocupam as nossas legislaturas e apoiam com fervor o atual presidente. Vários deles também são super-ricos e coordenam entidades extremistas poderosas, como o grupo lobista Family Research Council. E, no entanto, eles também construíram essa narrativa de estarem em crise e de serem ameaçados pelo “mundo”.
Imagino que seu coração intumesceu quando o senhor testemunhou o presidente ordenar o uso de gás lacrimogênio contra os “filhos das trevas” de forma que ele pudesse ficar em frente de uma igreja, à qual não tinha afiliação alguma, e acenar com uma bíblia. Eis um sinal perfeito aos cristãos de direita de que, sim, as nossas crenças estão sob ataque, mas iremos prevalecer. Deus está do nosso lado.
Donald Trump, erguendo uma Bíblia, em frente à Igreja Episcopal de St. Johns. (Foto: Ninian Reid | Flickr CC)
Mas quem é esse Deus em que todos vocês acreditam? Conforme leio o Evangelho, Jesus veio para confrontar os ricos, os poderosos e os privilegiados e para libertar os cativos. Em quase todas as narrativas do Evangelho, Jesus alivia aqueles que sofrem discriminação ou exclusão por parte da sociedade e grupos religiosos.
Infelizmente, as igrejas cristãs ainda não entenderam a mensagem de Jesus, especialmente quando se trata de racismo. A Igreja Católica tem laços históricos horríveis com a escravidão, conforme Shannen Dee Williams lembra em um artigo publicado no sítio National Catholic Reporter há poucos dias. [1] E os cristãos evangélicos têm o legado de se oporem ao movimento pelos direitos civis como “a obra nefasta dos forasteiros de esquerda”, como escreveu recentemente Sarah Posner. [2]
Quando fui ler sua carta no sítio LifeSiteNews, fiquei impressionada com a quantidade de artigos que lançam sementes de dúvidas sobre a pauta “radical”, “tumultuada”, “marxista” e “antifamília” do movimento Vidas Negras Importam. A história, ao que parece, se repete.
Se reservar um momento para ouvir as vozes reais dos ativistas do movimento Vidas Negras Importam, talvez o senhor comece a entender que o sofrimento dos negros neste país é o resíduo imundo da escravidão: a crença de 400 anos segundo a qual o corpo negro não foi feito para ser livre. Os negros não se sentem seguros nas ruas, em seus carros e mesmo em suas casas. Eles ainda não são livres.
É por isso que se devem derrubar as estátuas que celebram homens que também não queriam que esta população fosse livre. Homens que os comercializavam como escravos e foram à guerra para mantê-los em cativeiro.
Para mim, é um fato marcante que os mesmos católicos brancos que lamentam a derrubada dessas estátuas são os mesmos que aplaudiram quando um jovem austríaco roubou estátuas sagradas de católicos indígenas em uma igreja de Roma, jogando-as, em seguida, no rio Tibre. O senhor não vê a mentalidade supremacista neocolonial e branca aqui?
Visto que está ciente dos acontecimentos da “amada nação americana”, como o senhor mesmo escreve, provavelmente também sabe que uma outra revolta ocorreu aqui no dia seguinte à posse de Trump. Chamou-se “Marcha das Mulheres” e levou milhões de mulheres, crianças e homens às ruas para lutar por igualdade. O que se seguiu foi o acerto de contas do movimento #MeToo (“#EuTambém”) e um número recorde de mulheres concorrendo a cargos públicos.
Mas as mulheres não estão apenas se levantando aqui nos EUA. Em toda a América Latina, um movimento feminista de base mobilizou-se em resposta às taxas surpreendentes de feminicídio e outras formas de violência de gênero. Essa “onda verde” colocou a política de gênero no centro do debate público na Argentina, no Chile, no Equador e no México.
No mesmo dia em que apareceu a sua carta ao presidente, o Vaticano anunciou um curso on-line sobre “feminismo e identidade católica”. O evento busca estabelecer “um novo feminismo” e discernir os aspectos “positivos e negativos dos diferentes feminismos”. Curiosamente, o curso direciona-se especialmente às mulheres da América do Sul e América Central, os mesmos lugares onde elas têm se insurgido. Coincidência? Eu duvido.
Com todas essas revoluções de pessoas de cor, mulheres e LGBTQs, entendo por que o senhor sente existir um apocalipse em curso. Porque, de muitas maneiras, para homens como o senhor e o presidente Trump, estas coisas representam o começo do fim dos tempos. É o fim da supremacia da brancura, masculinidade e heterossexualidade. É o fim da supremacia moral fabricada do extremismo cristão que promoveu grande parte desse fanatismo.
O senhor diz que, se as revoluções persistirem, o mundo poderá perder a sua liberdade. Mas o que realmente o senhor teme é a perda de poder e privilégio. Porque quanto mais livres nos tornamos, menos o senhor se beneficia dos velhos sistemas de injustiça.
O poder por detrás dessas supremacias é tão odioso, contundente e penetrante que, sim, o conflito é de proporções cósmicas. Mas não é um binário simplista sombrio dos “filhos da luz” versus “filhos das trevas”. Somos todos seres humanos lutando para perceber as coisas boas que o Evangelho diz que Deus deseja para nós: justiça, liberdade e esperança.
Em todo caso, Vossa Excelência, irei terminar por aqui. Como o senhor, pretendo continuar.
Atenciosamente,
Jamie
P.S.: Espero que, de alguma forma, esta carta chegue até o senhor. Entendo que o senhor tem se escondido há quase dois anos já. Talvez chegou a hora de sair e se encontrar com os que o senhor julga tão severamente. Poderá descobrir que nós não somos aqueles de quem deveria ter medo.
[1] Artigo, em inglês, disponível aqui.
[2] Artigo, em inglês, disponível aqui.
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Prezado Dom Carlo M. Viganò: o senhor está certo, um conflito cósmico paira sobre nós - Instituto Humanitas Unisinos - IHU