12 Mai 2020
"Este telefonema de Trump aos bispos mostrou o quanto de sectário (e partidário) alguns funcionários da Conferência dos Bispos dos EUA acabaram se tornando. Enquanto Picarello e outros estiverem dispostos a levar esta conferência a águas agitadas, e enquanto alguns bispos como Dolan estiverem dispostos a seguirem juntos nesse trajeto, poderemos esperar muitas fraturas mais na unidade do corpo dos bispos e, consequentemente, uma fratura no Corpo de Cristo, que é a Igreja", escreve Michael Sean Winters, jornalista, em artigo publicado por National Catholic Reporter, 11-05-2020. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Na última sexta-feira, 8 de maio, analisamos alguns dos princípios envolvidos na obsequiosidade do cardeal-arcebispo de Nova York, Timothy Dolan, em relação a Donald Trump durante uma chamada telefônica com o presidente e lideranças católicas para tratar das escolas diocesanas, obsequiosidade também vista em entrevistas subsequentes, nas quais Dolan reafirma o que antes dissera. No começo da semana passada, aprendemos mais sobre o que alguns importantes funcionários da Conferência dos Bispos Católicos dos EUA sabiam antes destes telefonemas.
Hoje, passaremos dos princípios subjacentes aos fatos do caso, desde as grandes preocupações socioculturais e eclesiais até a questão mais específica de cumplicidade em um comportamento inadequado. E podemos começar onde terminamos na sexta-feira, com o comentário de Massimo Faggioli, eclesiólogo da Universidade Villanova, sobre a regra pela qual os bispos não se criticam em público:
“É um problema também em outros países, especialmente onde não há um processo sinodal, ou o estilo sinodal”, disse Faggioli quando lhe perguntei da regra da não crítica pública praticada pelo episcopado. “Seria impróprio para um outro cardeal ou bispo escrever um artigo criticando o Cardeal Dolan pela sua abertura a Donald Trump. Mas eu espero que outros cardeais ou bispos digam algo diferente daquilo que disse Dolan – em particular, sobre o seu entendimento equivocado de ‘acompanhamento’. O problema está que na ausência de um etos eclesial e sinodal de debates, tudo fica a cargo da dinâmica de poder modelada pelos meios de comunicação (tanto seculares quando católicos)”.
Eis a escolha a se fazer: uma sinodalidade, que fortalece a unidade e garante uma abordagem eclesial adequada, versus uma dinâmica de poder, com toda ambição, egoísmo e ideologia humana, secular e eclesiástica, que estas coisas convidam.
Logo após eu receber uma “negativa” de parte do setor de relações com a imprensa da conferência dos bispos, o mesmo departamento falou com a Catholic News Agency, que representa para a imprensa católica aquilo que a Fox News representa para a imprensa secular: não exatamente um empreendimento jornalístico, mas sim uma empresa de propaganda política. A Fox News serve ao presidente assim com a Catholic News Agency serve à ala das guerras culturais da Igreja Católica, embora a comparação possa soar um tanto injusta... para a Fox News.
Na terça-feira dessa semana, relatei que Lauren McCormack, diretora-executiva do Setor de Relações Governamentais da Conferência dos Bispos Católicos dos EUA, enviara um aviso aos diretores católicos estaduais desta conferência lembrando que eles deveriam informar a seus bispos de que estes tinham de mandar seus endereços e-mail a fim de acessarem a chamada telefônica que teriam com Trump sobre o tema da educação católica e que esses e-mails “serão anotados pela Casa Branca e usados para comunicação adicional no futuro, possivelmente incluindo materiais de campanha”.
O porta-voz da conferência dos bispos, Chieko Noguchi, disse à Catholic News Agency:
“Uma parte da conversa com os bispos foi uma advertência: por precisarem fornecer um endereço de e-mail para participarem da chamada, mais tarde eles poderiam receber mensagens eletrônicas indesejadas por parte da Casa Branca e possivelmente materiais de campanha. Esta advertência baseava-se em uma especulação cautelosa, não em alguma comunicação com a Casa Branca”.
Veja bem: não se tratava de uma “especulação cautelosa” sobre o que o presidente comeria no almoço, mas sobre se a Casa Branca estaria ou não violando a Lei Hatch. Continua a reportagem publicada pela Catholic News Agency:
“Na verdade, antes de McCormack notificar os bispos de que a campanha poderia obter os endereços de e-mail, o assessor jurídico da Conferência dos Bispos dos EUA Anthony Picarello especulava, em um e-mail aos diretores estaduais da conferência, sobre a mesma possibilidade, considerando a possibilidade de que os endereços de e-mail pudessem ser compartilhados como um ‘fator incômodo’, do qual todos deviam estar cientes”.
Que interessante. Picarello não é especialista na área de comunicação. É o secretário-geral e assessor jurídico da Conferência dos Bispos dos EUA. O seu envolvimento neste assunto levanta mais dúvidas do que fornece respostas. A especulação e a advertência dele neste assunto serviriam de alerta para os bispos: “Estamos levando vocês a uma festa e haverá muitas drogas ilegais nela, as quais podem lhes ser incômodas, caso alguém descobrir, então, por favor, não toquem em nada”. Não. Um assessor jurídico responsável aconselharia os bispos a não irem a uma tal festa.
“Há dois problemas aqui: está a Casa Branca se comportando adequadamente? E estão os bispos se comportando adequadamente?” pergunta-se Cathleen Kaveny, professora de teologia e direito da Boston College. “As pessoas estão ultrapassando os limites. Elas não reconhecem mais as fronteiras. Trump não percebe a fronteira entre seu dever de governar o país em nome de todos nós e seu empenho para vencer a reeleição. E os bispos não percebem a diferença entre a necessidade de recorrer aos líderes do país em problemas que envolvem as escolas católicas em tempos de pandemia e os seus partidarismos pessoais em uma ajuda para reeleger o presidente que querem”.
Kaveny está certa, e eu acrescento uma terceira questão que se encontra na interseção destes dois problemas por ela apontados: mesmo que alguns bispos queiram colocar o dedo na balança para favorecer Trump, o assessor deles errou ao não avisar de que se “especulação” se mostrar verdadeira, as comunicações de Picarello e McCormack constituirão em si uma “intervenção inadmissível de campanha”. Organizações sem fins lucrativos, como a conferência episcopal americana, não podem participar de atividades de campanha, seja diretamente, seja indiretamente, e ajudar a coletar uma lista de e-mails é uma participação bastante direta.
Perguntei a Norman Eisen, pesquisador no Instituto Brookings, ex-assessor da Casa Branca e reconhecido especialista em ética governamental, a respeito destas declarações de parte dos bispos. Por e-mail, ele me respondeu com o seguinte comentário:
“Como fundador de duas organizações sem fins lucrativos, penso que é justo perguntar: em que se baseou a especulação cautelosa? Havia alguma experiência anterior com o presidente ou com sua campanha que a desencadeou? Em todo caso, se este possível fator incômodo fosse uma preocupação, será que o problema realmente preocupante não seria a obtenção de uma garantia de que os e-mails não fossem usados de tal forma? É justo esperar que as nossas organizações sem fins lucrativos, religiosas e de caridade satisfaçam os mais altos padrões éticos”.
O News Catholic Reporter solicitou uma entrevista com Picarello para fazer-lhe estas perguntas. O pedido foi recusado. Mas a sua falta de vontade em responder às nossas perguntas não as faz desaparecer.
Uma pesquisa informal que fiz com vários bispos sobre o tratamento de Picarello dado ao assunto descobriu que eles estão de acordo com as preocupações de Eisen. Um dos bispos acha que deve haver uma investigação para que uma das perguntas de Eisen seja respondida: um aviso assim já foi feito antes e, se não, por que agora? E por que dois avisos?
Outros acham que Picarello deve ser repreendido. Percebo um consenso cada vez maior de que foi um erro ter uma mesma pessoa como assessor jurídico e secretário-geral da conferência dos bispos, e percebo uma preocupação ainda maior de que Picarello não recebe ordens dos bispos, mas de um complexo teológico-político centrado nos Cavaleiros de Colombo e na Sociedade Federalista.
Mês passado, a série do National Catholic Reporter que pergunta a pessoas ligadas ao catolicismo sobre como será a Igreja pós-pandemia, o padre jesuíta Mark Massa, diretor do Centro Boisi, na Boston College, concluiu a sua participação citando Mircea Eliade: “o contrário de católico não é protestante, mas sectário”.
Este telefonema de Trump aos bispos mostrou o quanto de sectário (e partidário) alguns funcionários da Conferência dos Bispos dos EUA acabaram se tornando. Enquanto Picarello e outros estiverem dispostos a levar esta conferência a águas agitadas, e enquanto alguns bispos como Dolan estiverem dispostos a seguirem juntos nesse trajeto, poderemos esperar muitas fraturas mais na unidade do corpo dos bispos e, consequentemente, uma fratura no Corpo de Cristo, que é a Igreja.
Se o presidente do episcopado nacional, o arcebispo de Los Angeles, Dom José Gomez, quiser edificar a unidade da Igreja Católica neste país, precisará perguntar-se se este tipo de assessoramento que tem recebido de seu assessor jurídico ajudará ou dificultará o alcance deste objetivo.
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O sectarismo está no centro do imbróglio Dolan-Trump - Instituto Humanitas Unisinos - IHU