02 Junho 2020
"Uma lógica algorítmica não pode retratar o modo como usamos os produtos ou como os produtos interagem com outros aspectos da nossa vida. Chorar, rir, pausar para beber, segurar as mãos da pessoa amada, consumir outros produtos, receber outras mídias, realizar multitarefas e assim por diante, fazem parte do modo como usamos serviços como a Netflix e que escapam ao conhecimento de algoritmos. Isso é consumo cultural como produção", escreve Ryan Service, em artigo publicado por Settimana News, 29-05-2020. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Uma entrevista de Antonio Spadaro lançou o Papa Francisco ao mundo em 2013. [1] Muitos analistas se viram diante de pistas culturais que nos ajudariam a navegar rapidamente pelas palavras e ações do líder carismático católico. Sete anos depois, pego-me refletindo sobre Michel de Certeau (1925-1986), citado por Francisco na entrevista, isso porque, com sua visão, o de Certeau se tornou um companheiro prático durante este confinamento geral.
Também jesuíta, Michel de Certeau ordenou-se padre em 1956. No entanto, ele é conhecido nos círculos literários e sociológicos do que nas faculdades teológicas. A primeira vez que tive contato com os seus escritos foi quando estudava a poesia de Elizabeth Bishop, sobre o movimento através dos espaços urbanos, especialmente em O Homem-Mariposa, cujas palavras, de 1935, ressoam quando emergimos provisoriamente dos nossos casulos domésticos:
“Mas quando o Homem-Mariposa
sobe à superfície, o que só faz raramente,
a lua lhe parece coisa bem diversa. Ele
emerge de uma abertura junto ao meio-fio
e põe-se a escalar, nervoso, as faces dos prédios.”
(Trad. de Paulo Henriques Britto)
Enquanto Elizabeth Bishop escreve figurativamente, de Certeau nos convida a perceber as paisagens da cidade sob novos ângulos. Essa sua contribuição assume um significado mais rico, dada a experiência atual de movimento restrito. Na medida em que começamos a subir a “superfície”, talvez “a lua” e muito mais, vai começar a parecer “coisa bem diversa” para nós. Se estamos atentos ou não fará toda a diferença.
É aqui onde de Certeau é fundamental. Em “Invenção do cotidiano” (Vozes, 2014), ele oferece uma maneira de interpretar os espaços urbanos a partir da nossa visão de pedestres. Analisa a forma como manobramos por entre as cidades, de modo que os caminhos que tomamos revelam narrativas: como os planejadores públicos definem as calçadas e praças onde as pessoas se encontram (ou não), como tomamos atalhos, escolhemos determinadas ruas, mas não outras, mudamos de ideia novamente, interagimos com um estranho, esbarramos em alguém ou onde alguns espaços públicos são frequentados pelos outros e não por nós.
Olhar a cultura dessa forma nos diz algo poderoso: essa cultura é comum. Por vezes, precisamos nos lembrar disso, pois muitos preferem que tal cultura permaneça totalmente outra. Continuamente, de Certeau explica que os discursos científicos tendem a ser circuitos fechados que precisam trazer “de volta à sua terra natal, a vida cotidiana”. Entendemos isso praticamente em nossos dias de pandemia.
As informações e as atualizações diárias, com um painel de especialistas, contrariando-se ou confirmando-se, nos aconselham sobre como devemos nos mover e operar fora do ambiente doméstico. O movimento de nossos corpos, como cumprimentamos, interagimos, velamos, celebramos, consumimos, comemos e bebemos, são tudo materiais de cultura. O verdadeiro significado do comum, que de Certeau já reconhecia, está subitamente entre nós.
De Certeau é sem dúvida mais convincente ao articular a lacuna entre os modelos que tentam codificar a realidade e a própria realidade. Olhando para o uso que fazemos dos produtos, ele desafia o modo como as aplicações especializadas do conhecimento técnico não reconhecem a nós – “a maioria silenciosa” – que consumimos os produtos e que, em nosso consumo, também somos produtores. Nossa atividade de consumo como produção permanece “não assinalada, ilegível e não simbolizada”, embora seja culturalmente significativa.
Um exemplo pertinente é como as plataformas de streaming, como a Netflix, gerenciam perfis com base em inscrições nas quais uma lógica algorítmica é programada para sugerir conteúdo visual. Todos sabemos o quanto aumentamos nossa visualização durante este período de confinamento. O que significa um filme corresponder 94% comigo? E um outro que corresponde a 95%? Como essa diferença é medida?
Dentro da lógica algorítmica, existe uma forma de feedback (os clientes assistem ao conteúdo recomendado) que convida a outro feedback (mais conteúdo recomendado), onde acabamos todos apanhados em uma rede de recomendações.
Estive assistindo a Netflix com de Certeau porque ele diria que esse feedback é parcial. A lógica algorítmica é apenas parte da história, pois as nossas histórias são mais completas, mais complexas, contraditórias e cambiáveis. Por mais que os algoritmos funcionem com êxito, as sugestões da Netflix continuam sendo sugestões.
Uma lógica algorítmica não pode retratar o modo como usamos os produtos ou como os produtos interagem com outros aspectos da nossa vida. Chorar, rir, pausar para beber, segurar as mãos da pessoa amada, consumir outros produtos, receber outras mídias, realizar multitarefas e assim por diante, fazem parte do modo como usamos serviços como a Netflix e que escapam ao conhecimento de algoritmos. Isso é consumo cultural como produção.
Desejo que, quando terminarmos de assistir compulsivamente e voltarmos ao novo normal, façamos isso tudo sabendo que somos produtores e consumidores de cultura. A vida cotidiana é comum, mas, como testemunhamos neste período de pandemia, o comum nunca pareceu tão novo.
[1] Confira “Entrevista do Papa Francisco”, disponível aqui.
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Assistindo Netflix com de Certeau - Instituto Humanitas Unisinos - IHU