06 Mai 2020
"Terry e Pat, como muitos casais homoafetivos, trouxeram vida nova ao mundo através do cuidado um do outro, nutrindo outros relacionamentos, trabalhando para consertar este nosso mundo ferido e sendo uma imagem de fidelidade à comunidade onde estão inseridos/as. Estas pessoas são sinais do poder do perdão, da misericórdia e do amor incondicional, e fazem sacrifícios uns pelos outros que encarnam o amor altruísta ao qual o Evangelho nos chama", escreve Jamie Manson, mestre pela Yale Divinity School, onde estudou teologia católica e ética sexual, em artigo publicado por National Catholic Reporter, 05-05-2020. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Anos atrás, estive conversando com um grupo de católicos reformistas sobre o que considero a melhor parte da tradição católica: a nossa visão sacramental de mundo. Ou seja, a noção de que Deus está em toda parte, presente e trabalhando em toda a criação.
Quando a conversa voltou-se para os sete sacramentos da Igreja, alguém do grupo, reconhecendo jocosamente os meus anos de fúria contra a proibição de mulheres no sacerdócio, brincou que eu só tinha direito a seis dos sacramentos.
“Na verdade”, lembrei-lhes, “só tenho direito a cinco”. Um momento de silêncio se impôs de imediato sobre os que ouviam. Todos ali sabiam, evidentemente, que sou uma queer. Mas até os católicos mais liberais às vezes esquecem que as pessoas LGBTs estão excluídas de um dos sacramentos mais procurados da Igreja.
Embora sejam poucas e distantes, existem paróquias que tentam fazer com que as pessoas LGBTQs sintam-se acolhidas. Mas, por mais legais que sejam, às vezes estas iniciativas ocultam a profundidade da exclusão que enfrentamos. A realidade é que, por mais que a comunidade se esforce em ser inclusiva, nenhum casal homoafetivo poderá se unir em casamento dentro dos muros católicos.
Minha tristeza e fúria com esta situação me atingiu não uma vez, mas duas neste fim de semana.
No sábado, assisti ao novo documentário da Netflix “A Secret Love”, que conta a história de Terry e Pat, casal de lésbicas que viveram juntas 62 anos antes de se sentirem seguras o suficiente para dizer às respectivas famílias que eram mais do que apenas melhores amigas.
Quando as encontramos, elas estavam juntas há quase 70 anos. O filme retrata o amor profundo e a devoção duradoura de uma pela outra. Também mostra os sacrifícios que fizeram para ficar juntas, incluindo o adiamento do casamento por medo de que alguns membros das suas famílias as rejeitassem.
Depois, no domingo de manhã, li uma carta do arcebispo de Cincinnati, Dom Dennis Schnurr, explicando por que decidiu “não renovar o contrato de um professor de longa data e muito valorizado que lecionava em uma escola arquidiocesana”. Mesmo não o dizendo explicitamente na carta, Schnurr efetivamente demitiu o professor porque este se casou com um parceiro do mesmo sexo.
Como as dezenas de bispos que demitiram professores e outros funcionários de suas paróquias pelo mesmo motivo, Schnurr escreve a típica carta com alguns dos preconceitos já conhecidos, mas insistindo não se tratar de homofobia, afirmando que todos somos feitos à imagem e semelhança de Deus e que todo ser humano é inerentemente digno de respeito.
No entanto, diz ele, a Igreja Católica contém “a verdade sobre o desígnio de Deus para o florescimento humano” e, consequentemente, nem “todo comportamento deve ser tolerado”.
Em seguida, para enfatizar o ponto mais importante da carta, ele escreve usando o tipo de letra em negrito:
Aqueles comportamentos que não são erros indesejáveis, e sim escolhas de vida confirmadas, contrárias ao ensino católico, não podem ser apresentados aos jovens como um testemunho de fé, não importa quantos mais atributos extraordinários alguém possa ter.
A doutrina católica impede as pessoas LGBTQs de contrair o sacramento do matrimônio por ensinar que o nosso amor é fundamentalmente inválido e incapaz da bondade e santidade de uma união heterossexual. Os nossos relacionamentos são tão defeituosos que Deus não pode estar presente neles.
Infelizmente, muitos bispos não se contentam com isso. Segundo o sítio eletrônico New Ways Ministry, quase cem pessoas LGBTQs admitiram publicamente terem sido demitidas de instituições católicas. Os bispos que forçaram essas demissões o fizeram por acreditar que a decisão de contrair um casamento civil homoafetivo é uma declaração de apostasia.
Mas o que a hierarquia ainda não pode explicar propriamente é como se poderia negar a natureza sacramental de relacionamentos como o de Terry e Pat.
Claro está que argumentariam dizendo que, pelo fato de os casais homoafetivos não possuírem a “complementaridade genital” e, portanto, não procriam, logo “não existe fundamento algum para assimilar ou estabelecer analogias, nem sequer remotas, entre as uniões homossexuais e o desígnio de Deus sobre o matrimônio e a família”, como reitera o Papa Francisco em Amoris Laetitia (251).
Mas equiparar a procriação ao florescimento simplesmente não combina com a experiência humana.
Quantas heterossexuais conhecemos que engravidaram, mas não foram “frutíferas” em outros sentidos? E quantos casais homoafetivos conhecemos cujo relacionamento os ajudou a florescer enquanto pessoalmente e enquanto casal?
Terry e Pat, como muitos casais homoafetivos, trouxeram vida nova ao mundo através do cuidado um do outro, nutrindo outros relacionamentos, trabalhando para consertar este nosso mundo ferido e sendo uma imagem de fidelidade à comunidade onde estão inseridos/as. Estas pessoas são sinais do poder do perdão, da misericórdia e do amor incondicional, e fazem sacrifícios uns pelos outros que encarnam o amor altruísta ao qual o Evangelho nos chama.
Estas coisas são mais do que “atributos extraordinários”; são símbolos de santidade.
Qualquer um, hétero ou LGBTQ, que assista a “A Secret Love”, sairá do filme inspirado a aprofundar a própria fidelidade e devoção junto a seus parceiros. O relacionamento de Terry e Pat é sacramental em todos os sentidos.
No entanto, aos olhos de muitos líderes eclesiásticos, o amor delas jamais terá valor igual nem a validade de um casal heterossexual, simplesmente por causa de suas anatomias.
Uma ironia particularmente cruel, estampada na parte inferior do papel timbrado de Schnurr, é a frase: “Irradie Cristo”. Como pode a luz do Evangelho brilhar, quando pessoas boas são arrancadas de seus meios de subsistência e dos empregos que gostam por causa de quem amam? O que há de cristão em forçar os funcionários a viver com medo e em solidão e negar a si mesmos os benefícios espirituais e legais do matrimônio?
Se os bispos como Schnurr se preocuparem, de verdade, em ser testemunhos da fé, eles talvez desejarão reler suas teologias sacramentais e refletir sobre as formas como as ações deles próprios podem representar uma ameaça real ao futuro da educação católica.
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Novo documentário da Netflix mostra a sacramentalidade das relações homoafetivas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU