15 Mai 2020
"É certo que nossa democracia precisa com urgência de uma Unidade de Terapia Intensiva com muitos respiradores. Há um vírus a atacá-la e, ao que parece, já ocupa o sistema respiratório comprometendo a um só tempo sua força, agilidade e vitalidade", escreve Rafael Silva, professor da Universidade Federal do Ceará, doutorando em Sociologia pela UC e membro do Observatório de Políticas Públicas - OPP/UFC, em artigo publicado por Esquerda.net, 09-05-2020.
Desde que foi criada pelos gregos a democracia se caracterizou por suas possibilidades. Apesar de suas imperfeições e sempre inacabada, foi sendo instrumentalizada por diversas sociedades que a utilizaram enquanto respirador à cidadania. Não faltou quem lançasse mão dos seus aspectos para esconder suas tiranias, e até dela se aproveitar para engendrar o poder absoluto. Porém, quero crer a democracia como um ponto de partida e nunca como ponto de chegada.
A partida democrática no Brasil ocorreu há pouco mais de trinta anos e desde lá não cansamos de testar seus limites. Há cinco anos os testes estão sendo levados ao extremo. Como que presa a duas máquinas tensionadas por lados opostos, a democracia brasileira está a ser demasiadamente esticada. Eis aí a grande questão social do novo século.
Fosse possível propor uma cronologia recente aos testes, apontaria o primeiro para 17 de Abril de 2016, quando o congresso brasileiro aceitou o pedido de impedimento de Dilma Rousseff tendo como principal argumento a ausência de ambiente político para governar. Não bastasse tamanha abstração, em 2017 duas reformas sequestraram direitos sociais das massas. Uma rasgando as Leis Trabalhistas, e a outra, reduzindo via congelamento dos gastos públicos, investimentos em saúde, educação e assistência social. Se muitos grupos foram às ruas em 2013 denunciar a redução do orçamento na Educação que à época era de R$ 101 mil milhões o que fariam hoje sete anos depois com a execução orçamentária - da mesma pasta - ser de apenas R$ 91 mil milhões? O que teria a dizer da Medida Provisória que estabeleceu a famigerada carteira verde e amarela a obrigar os jovens ávidos pelo primeiro emprego à renunciar direitos de trabalho?
Outro teste à democracia é a indecência da farra do sistema financeiro onde a securitização dos créditos se revela na verdadeira sangria aos cofres públicos. Na prática, esse instrumento obriga o governo a tomar recursos emprestados do sistema financeiro às custas de vultuosos juros. No momento em que escrevo esse texto o Banco Central informa que no período de 10 anos, mais de R$ 1 trilhão de reais foram transferidos aos bancos privados via emissão de créditos públicos. É o rentismo em grau zero.
Some-se a isso o julgamento e prisão do ex-Presidente Lula da Silva, que mesmo longe de ser a liderança ideal ou possível, merecia como qualquer outro cidadão o direito de ser julgado de maneira justa. E não foi! Se quiséssemos enfrentar os porões da corrupção, não poderíamos usar a lei de forma corrupta. Afinal os fins justificam os meios? A midiática Lava Jato - que abortou Sergio Moro - foi mais um teste à democracia. Sabe-se que mesmo a despeito da opinião pública a operação não passava de um mecanismo eivado de erros conduzida sem a soberania da Polícia Federal, quiçá do Brasil.
A assunção de um governo frágil e débil deslocou para o congresso federal a pachorra de conduzir a reforma da previdência. De longe esta reforma foi eleita como a mais importante, pois aumentaria a capacidade do governo de pagar os juros adquiridos na farra das securitizações.
A COVID-19 interrompeu os testes à democracia? Não! Nem sequer a reduziu. Um bom exemplo é a aprovação do Orçamento de Guerra. O instrumento pelo qual o governo visa combater a pandemia, mas na prática autoriza o Banco Central a comprar títulos privados questionáveis (títulos podres). Testamos a fundo a funcionalidade de uma democracia quando sua população faz parte das decisões ou figuram na lista de prioridades. Definitivamente esse não é o caso. Basta ver o fluxo de recursos destinados a grandes empresas sob o pretexto de manter empregos comparada aos recursos destinados aos mais vulneráveis em função da Pandemia.
Enquanto o primeiro grupo recebeu seus recursos em 12 horas, passados 25 dias ainda há no último grupo, 19 milhões de pessoas a esperar os R$ 600,00 – pouco mais de 100 euros. Pasmes! O governo alega não saber que mais de 50 milhões de pessoas precisariam desse instrumento, e que sequer as conheciam. É o Estado a reconhecer seus reais interesses? Não sei ao certo, mas é certo que chegamos aos limites da democracia liberal pautada em conchavos e não em acordos, em leniências, e não em disputas.
Antes disso, em 2018, foi com o Supremo Tribunal Federal – STF e tudo, que ocorreu mais um teste a democracia. Ficou clara a anuência da justiça em não deixar Lula da Silva ser candidato, ainda que para tanto tivesse que rasgar a Constituição federal. Associada a isso, somam-se interferências e manipulações tecnológicas retirando da democracia suas principais características: o debate e o convencimento. Como resultado, tem-se a eleição do ex-capitão do exército ao poder a representar o ápice dos ciclos de testes.
Bolsonaro é notadamente uma figura desqualificada, tanto técnica quanto moralmente, para ocupar o cargo. É a síntese do Brasil colonial onde a elite açodava o império para tramar estratégias espúrias. É o resumo do atraso matizado na mente mais pueril e escravocrata que despida de qualquer vergonha se abraça a chibata e a corrente para manter viva a memória da tortura e do castigo. Nesse cenário, o medo é estabelecido. A tensão de uma ruptura traumática é constantemente alimentada, e as instituições são minadas até que a máquina do tempo se imponha.
Bolsonaro não é fruto do acaso? Não! Ele começa ser gestado muito tempo antes da sua eleição. Nasce um pouco quando os filhos do privilégio viram suas empregadas domésticas, antes ama de leite ou escravas sexuais, garantirem direitos trabalhistas e cidadania. Quando os negros e as pessoas empobrecidas acessaram as universidades. Quando o jaleco branco foi enfim usado pela filha da lavadora de roupas. Seria ele, então, a síntese maior do atraso? Sozinho, obviamente que não.
É preciso considerar a formação de uma complexa tessitura social e política. A ausência de uma verdadeira revolução, a falta que fez um profundo acerto social, nem realizado nas margens do Ipiranga, nem tampouco na lei de anistia de 1979. Bolsonaro é, portanto, filho da anomia democrática, ponto de encontro da escória tramada nos porões dos mais sujos esgotos da república. Resultado que é da dramatização articulada entre as milícias e a burguesia.
Frases como “...E daí? Vão morrer cinco mil” “Não sou coveiro” “é só uma gripezinha” não são apenas marcas de uma demência popular, mas os registros de um projeto b que estava guardado nos porões da ditadura. Trata-se da maior vingança puritana da elite por jamais consentir dividir a universidade, o consumo e a cidade.
Pois bem, após vários testes, é certo que nossa democracia precisa com urgência de uma Unidade de Terapia Intensiva com muitos respiradores. Há um vírus a atacá-la e, ao que parece, já ocupa o sistema respiratório comprometendo a um só tempo sua força, agilidade e vitalidade. Ao seu redor há um profundo conflito estabelecido entre aqueles que deveriam conduzir os aparelhos. É notória a ausência de liderança, não se discute aqui, sequer sua qualidade, visivelmente, não há liderança! O que há, fica claro, é uma mistura entre amadorismo e oportunismo a torcer para o definhamento do paciente. Um respirador é urgente e ele se chama impeachment.
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Um respirador para a democracia brasileira - Instituto Humanitas Unisinos - IHU