15 Agosto 2019
O autor de "Tempo de Raiva", Pankaj Mishra, intervém sobre a crise da democracia liberal e relança uma utopia nunca realizada, "herdeira do cristianismo".
A entrevista é de Enrico Franceschini, publicada por la Repubblica,14-07-2019. A tradução é de Luisa Rabolini.
"Colocar sob acusação o liberalismo econômico". Para Pankaj Mishra, escritor e ensaísta indiano, precisamos partir de uma espécie de "crítica da razão pura" para poder salvar o que é bom na democracia liberal - hoje em crise em grande parte do mundo ocidental - separando-a dos excessos do capitalismo. "O qual, deixado por si mesmo, é uma besta capaz de destruir tudo", adverte o autor de Tempo de Raiva (seu ensaio mais famoso), nascido há 50 anos na Índia de uma família brâmane, filho de um trabalhador ferroviário e sindicalista, que se tornou um dos comentaristas mais respeitados do New Yorker e do New York Times.
A democracia liberal é obsoleta, como Vladimir Putin afirma, ou simplesmente não vai tão bem, parafraseando os irmãos Marx?
Meu problema com esse tipo de pergunta é: por que deveríamos responder a um autocrata brutal como Putin, que não apenas impede uma verdadeira democracia em seu próprio país, como também planejou comprometê-la na Europa, com as interferências no Brexit, na Itália e em outros países, e nos Estados Unidos, com a eleição de Trump? Não estamos mais no tempo da guerra fria, em que é preciso reagir a todos os movimentos do adversário.
Mas a saúde da democracia liberal, nos dias de hoje, é um problema que vai além de Putin: o populismo parece renega-la em muitas partes do Ocidente.
E, de fato, um debate interno do Ocidente, deixando Putin de lado, é certamente necessário. Vou começar esclarecendo um ponto: liberalismo é um rótulo ao qual diferentes significados são dados. Dois em particular, o liberalismo político, entendido como a defesa dos ideais de liberdade, e o liberalismo econômico, que se tornou a subserviência de tudo ao ideal de lucro. Dois liberalismos em conflito entre si.
Um conflito de longa duração.
Certamente. Tomemos John Stuart Mill, o grande filósofo que nasceu como ícone do liberalismo político. Mas quando percebe que está sendo cada vez mais ofuscado pelos mecanismos da economia de mercado, então seu pensamento se volta para o socialismo. Durante o século XX, a nobre ideia do liberalismo é gradualmente minada por uma forma de capitalismo que cria desigualdade, opressão, injustiça.
Na sua opinião, portanto, o capitalismo não seria o motor do progresso humano, mas o "vilão" que conduz a democracia liberal no caminho errado?
A relação entre capitalismo e democracia sempre foi contorcida. O capitalismo nasce como fé dos ricos. Não por acaso, inicialmente era contrário ao sufrágio universal. Até mesmo o Economist, o semanário hoje considerado bastião do liberalismo e, portanto, da democracia, em um editorial de Walter Bagehot, seu diretor mais famoso, era contra ao voto para todos. No liberalismo autêntico não havia espaço para a democracia de massa: somente as pessoas mais instruídas podiam votar.
O sufrágio universal, entretanto, aconteceu ...
Houve uma mudança gradual no plano político, mas cada vez mais, entretanto, o liberalismo aliou-se aos titãs da indústria e à aristocracia financeira, resultando numa relação difícil com a democracia. Vimos isso na Itália antes da ascensão do fascismo.
Mas no período pós-guerra o capitalismo permitiu a reconstrução e difundiu o bem-estar em toda a Europa.
A ideologia liberal nem sempre precisa de força para se afirmar. O que ela precisa é da expansão imperialista, realizada pelo Império Britânico durante a maior parte do século passado e com outros métodos pelos Estados Unidos quando se tornaram seus sucessores.
Hoje, a democracia liberal é ameaçada por populistas, soberanistas e nacionalistas. Diga-me pelo menos uma maneira concreta de defender os melhores valores.
A crise atual é uma crise que a democracia liberal criou com suas próprias mãos. Só pode ser enfrentada de uma forma, em minha opinião: com uma crítica rigorosa do liberalismo econômico. É preciso colocar sob acusação uma classe dirigente que deu via livre à economia de mercado, permitindo à extrema direita vencer consensos entre populações que se sentem abandonadas pela esquerda.
A resposta então é o socialismo?
O socialismo nasceu para mitigar os piores excessos do capitalismo. Neste sentido, é o verdadeiro herdeiro do cristianismo: mais do que uma filosofia econômica, na minha opinião, representa uma tradição moral. Por muito tempo foi identificado com a falimentar economia centralizada da União Soviética. Mas é no plano moral que sua mensagem ainda tem um significado e, por essa razão, muitos jovens hoje tornam a se dizer socialistas.
Então a história não terminou em 1989, ao contrário do que anunciou o agora famoso ensaio de Francis Fukuyama?
O fim da história era uma ilusão, pela simples razão de que o capitalismo, sem rivais, se torna uma besta: pode destruir tudo, do clima do planeta à harmonia social. É o que que estamos assistindo hoje no mundo.
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A crise da democracia liberal e a utopia, herdeira do cristianismo, nunca realizada. Entrevista com Pankaj Mishra - Instituto Humanitas Unisinos - IHU