12 Fevereiro 2020
Paulo Lins não enxerga a violência quando olha para a favela. Na visão do escritor, professor, roteirista e pesquisador carioca, a “falta” é muito mais presente nas comunidades carentes do que os tiros, as porradas e as bombas trocadas entre traficantes e a polícia. Da criança criada na Cidade de Deus até o adulto que transformou o cenário e os personagens da favela num dos romances de maior sucesso do país, sobrou um cidadão consciente e ciente de que a criminalidade é uma política pública no Brasil.
Autor de quatro livros, ele entres Cidade de Deus, escrito em 1997 e que inspirou o filme homônimo dirigido em 2002 por Fernando Meirelles, Paulo Lins é fruto do trabalho social de Organizações não governamentais e de pessoas de bem inseridas na favela onde cresceu.
– Eu morei na Cidade de Deus e só virei escritor, entrei na faculdade e estudei porque vieram grupos trabalhar comigo na favela, fazer teatro, me levar para biblioteca, para o cineclube. É por isso que estou aqui”, diz.
Paulo Lins foi contratado pela ONG suíça Ameropa para escrever um livro sobre a origem do bairro de Mãe Luíza e o trabalho da entidade na periferia da cidade. A entidade atua em Natal há vários anos e tem projetos sociais espalhados pela América do Sul e África. De passagem pela capital potiguar, onde iniciou a pesquisa sobre a obra que tem previsão de lançamento em 2021, ele conversou com a agência Saiba Mais sobre o Brasil de hoje mergulhado num cenário de disseminação de ódio e em crise com Estado democrático de Direito.
A entrevista é de Rafael Duarte, com a colaboração de Aparecida Fernandes, publicada por SaibaMais, 08-02-2020.
Como integrar duas pontas tão separadas pela sociedade como a periferia e a cidade ?
Isso é natural, é assim desde que o Brasil é o Brasil. São os focos de resistência, até armada mesmo. A criminalidade é coisa política. Não é gente que nasce ruim, não são pessoas que nasceram para o mal. A elite e o sistema falam isso, mas não é. O sujeito só entra para o crime quando está no inferno e resolve dar um tapa na cara do diabo. Não vejo criminoso de favela como a escória da sociedade, ele é um resultado da política que o Brasil mantém desde que o Brasil nasceu. Não são pessoas que tem um coração de pedra, são vítimas de um processo de exclusão, um processo social escravocrata, não mudou muita coisa do tempo de escravidão pra hoje. Eu mesmo entrevistei duas pessoas em Mãe Luíza que me falaram que até cinco anos atrás trabalhavam em troca de comida. Uma falou: “ah, me dava de comer, a gente não tinha nada e ela dava comida para a gente”. Isso é escravidão. Então a gente vive num país de 400 anos de escravidão e tantos governos de direita. Os responsáveis pela criminalidade são os ricos e os governos de direita. A esquerda só esteve no Brasil durante 13 anos e mesmo assim levamos um golpe.
E a esquerda mesmo no poder precisou fazer muitas concessões…
Mas tinha que fazer. Não tinha como não fazer concessões. E mesmo assim o país levou um golpe. Imagine se não fizesse. Tinha que fazer concessões porque o sistema político é assim, o parlamento é assim. Você tem que governar com a maioria… o MDB mandando no Brasil e continua mandando até hoje. Você teve alguns governos de esquerda, mas o parlamento, esse sistema de barganha, de compra de voto, prometendo o que não pode, mentindo… num país de educação precária, de pessoas sem consciência crítica. Você mudar isso é muito difícil.
Um sistema que trata a pobreza como crime…
A pobreza sempre foi criminalizada no Brasil. Estou lendo agora sobre escravidão, colaborando com um trabalho na Rede Globo com a Maria Camargo…
Que trabalho é esse ?
Um defeito de cor, uma minissérie prevista ir ao ar entre abril e junho. É inspirada num livro da Ana Maria Gonçalves, que está sendo adaptado para a televisão. Nela sou um dos colaboradores com Bianca Almeida, Luciana Peçanha, Pedro Barros, Mariana Jaspi e Eduardo Azevedo. Vamos falar sobre a escravidão. Não é à toa que a maioria das pessoas que morre assassinada pela polícia são negros ou então descendentes de indígenas. É o Brasil que continua sendo isso…
O sociólogo Jessé de Souza defende a tese de que esse momento do país tem relação com o passado escravocrata até hoje não passado a limpo. Alguns analistas políticos acreditam que o governo Dilma começou a cair quando ela enviou para o Congresso o projeto que garantia direitos trabalhistas para as empregadas domésticas. Você concorda ?
Isso foi crucial. Ali foi que o copo começou a virar. É como se dissessem “vamos tirar essa mulher do poder porque ela está tentando acabar com o regime escravocrata”. Foi isso. Isso foi a principal coisa, essa coisa da ama de leite. Estava vendo aqui agora a empregada que dava leite para as crianças. Li uma tese de mestrado da Mônica Dias de Souza e faço uma análise em relação a isso. Só teve o golpe porque o PT passou a dar mais condições para o pobre ter acesso ao ensino, ter mais direitos, divisão de renda. Todo mundo sabe disso, eles sabem disso.
Você acha que os pobres que votaram no Bolsonaro têm noção disso ?
Eu fico com medo porque o pobre mesmo que votou no Bolsonaro não vai entender isso. E quando o pobre passou a ter acesso a mais informação e educação eles começam a falar mal do Paulo Freire dizendo que o Paulo Freire é um idiota, eles começam a falar sobre o comunismo e a gente sabe que não existe comunismo no Brasil, entende ? As pessoas não tem nem ideia do que é o comunismo. Quando “eles” falam de comunismo e socialismo citam as ditaduras comunistas e o pessoal pensa que é aquilo. O pessoal não sabe o que é um governo socialista, o que é distribuição de renda e não vai saber porque eles não vão deixar. Então eles vão criminalizar não só a pobreza, mas a cultura, todo o processo. Vão criminalizar todo e qualquer modo de informação e esclarecimento para que ninguém saiba que essa elite é criminosa, que esse governo é criminoso.
A elite brasileira é formada por bandidos. São pessoas ruins, que odeiam pobre, são pessoas burras que detém o poder há anos, desde a escravidão. Se você for ver a história do Brasil, com o advento da 1º e 2ª Guerra Mundial, esses caras chegam aqui sem dinheiro, só por serem brancos se acostumavam com o poder que os portugueses tinham… Acabei de ler um livro agora sobre o tráfico de escravos. Você vê as pessoas falando “ah, eu vou para a Europa porque lá é primeiro mundo…” a base da economia moderna foi feita através do tráfico de escravos. Foram 400 anos de tráfico de escravos. A questão é que só negros eram escravizados. Em todos os continentes os vizinhos brigavam, mas da África todos se aproveitaram das brigas entre etnias… temos só 520 anos. Eu tenho 60 anos, a escravidão tem 120 anos… isso não é nada em termos de história. É uma gota no oceano.
Você vê relação com o que acontece no Brasil e o que está acontecendo em outros países da América Latina ?
A elite nos países colonizados pela Espanha é (de origem) europeia. A elite da Venezuela é branca e europeia, a da Argentina e a do Uruguai também. Quando teve essa ascensão da esquerda… por exemplo, olha o que aconteceu com o Evo Morales agora: foi expulso. Olha o perfil da presidenta (Jeanine Añez) que assumiu a Bolívia ? É uma europeia. É a mesma coisa que aconteceu no Brasil. Então essa ascensão dos povos nativos no poder… a América do Sul não deixou e a Europa ajudou. É a elite branca. Não estou dizendo que são os brancos. A maioria dos brancos não são racistas no Brasil. Lembro de uma música que vi o Marcelo Yuka compondo. Ele dizia: “nós como povos temos poucas vocações para o mal”. O Brasil é um país bom, mas a elite que está no poder é racista, uma coisa terrível.
Por que o sujeito de classe média no Brasil que ganha um salário de R$ 5 mil se sente mais próximo do rico que ganha R$ 1 milhão do que do pobre que ganha um salário mínimo ?
Eu sempre falo isso. Por exemplo, esses advogados e médicos que ganham um salário de classe média são fantoches dos ricos porque eles pensam que são ricos. Mas são os palhaços dos banqueiros, da elite dos empresários. Eles dizem: “Ah, você pode se dar bem se você estudar, lutar…” isso é mentira. São pouquíssimos que entram. O exemplo do bem sucedido é uma coisa que não existe.
Mas o Bolsonaro não transformou pessoas boas em pessoa ruins…
Isso foi uma construção. Criaram um ódio contra o PT com muita informação falsa, muita suposição… foi se criando um ódio, é difícil você lutar contra os três poderes e a polícia. Foi o Executivo, o Judiciário, o Parlamento, a mídia. Então não tem como. Um grande acordo nacional.
O romance Cidade de Deus está completando 23 anos em 2020. O que mudou na sua vida depois do sucesso do livro, também impulsionado pelo filme ?
Hoje eu vivo de escrever. Foi a partir dali que eu consegui, então foi uma mudança muito forte. Agora mudança no Brasil, dos anos 1980 para cá, teve uma inserção cultural… do hip hop, do samba, da música, de atores negros, muita produção falando da realidade. Eu chegava e via o Mano Brown cantando, B. Negão, via Cidade Negra, intercâmbio de produção, de feira de livro. Eu dizia para o (Marcelo) Yuka: “cara, a gente conseguiu!”. E aí veio vestibular para negros e pessoas carentes, bolsa família, cota para negros na universidade, Lula na presidência… pensava: “agora o Brasil vai ser mais justo”. O movimento negro avançou, a discussão avançou. E aí veio o golpe e esse incentivo à violência. Porque é um incentivo velado, mas existe contra negros, homossexuais. O idiota desinformado que está fazendo isso está sendo incentivado por um idiota formado e consciente.O que um cara como você, criado na favela, pensa quando escuta que a democracia está sob risco ?
O Brasil é um estado democrático, mas injusto. Quando o Judiciário não funciona, quando a corrupção e a maldade no judiciário prevalecem a democracia entra em risco. Quando a democracia é ultrajada com o apoio do judiciário… esse é o risco da democracia.
Mas e a democracia do dia-a-dia ? A polícia não pede licença para revista negros nem invadir casa de pobre. Existe democracia na favela ?
Só existe para a elite. Ninguém acredita mais no poder Judiciário. Nunca teve democracia né ? Ela só piorou. O judiciário mostrou agora aquilo que ele sempre fez. Rico preso começa no governo Dilma, quando a dona da Daslu foi presa. Quem começou a prender rico foi o PT. A Polícia Federal só começa a funcionar no Brasil com o PT. Foi por isso que a Dilma caiu. Mas as polícias brasileiras são como capitães do mato. São oprimidos que se colocam no lugar do opressor. Eu não confio em polícia, tenho pavor da polícia. Não podia fazer manifestação contra esse governo que polícia chegava batendo, jogando bomba. Quando era o contrário, manifestações da direita, os policiais batiam selfies com as pessoas. São capitães do mato, pobres e explorados.
O que o ex-morador da Cidade de Deus encontrou no bairro de Mãe Luíza ?
Vim para cá para ver um trabalho social. Só enxergo uma coisa que sempre acreditei. Eu sou fruto de um trabalho social. Eu morei na Cidade de Deus e só virei escritor, entrei na faculdade e estudei porque vieram grupos trabalhar comigo na favela. Fazer teatro, me levar para biblioteca, cineclube. Eu só conseguir chegar a Universidade Federal do Rio de Janeiro, fazer pós-graduação, escrever um livro porque quando na infância eu tive isso que esses meninos aqui de Mãe Luiza aqui recebem. Só por isso que estou aqui. As pessoas aqui são pessoas de boa vontade. Tem um texto de Antônio Cândido que fala que as pessoas de boa vontade são aquelas que se ajudam e ajudam aquelas que estão próxima de si, que lutam pela comunidade. E tem outro texto do Jean Baptiste Racine, um escritor francês, que diz que a situação mais confortável que um ser humano pode estar é quando ele está ajudando. Então as pessoa aqui são assim. E eu acredito nisso.
Em Natal, o bairro de Mãe Luíza ainda é associado à violência, especialmente pelas pessoas que não frequentam o dia-a-dia da comunidade. Isso é natural para você que também veio da periferia ?
Geralmente as pessoa associam comunidade à violência. Eu sou de comunidade, fui criado na favela. Eu associo favela à falta. E a falta gera solidariedade. Então eu fui criado na falta, mas sempre tiveram as pessoas de bem na Cidade de Deus. A própria igreja católica, a associação de moradores, cineclube, movimento negro, pessoal de teatro, sempre existiram as pessoas de bem, mas não com muita estrutura como essa que veio da Suíça. E não é nem tanto dinheiro assim. Se você pegar o que eles roubam, empacotam… dava pra fazer muito mais… é racismo, desprezo, preconceito, não querem que a sociedade seja mais igualitária. A direita brasileira é um câncer.
Além do seu trabalho como escritor e roteirista você continua viajando pelo Brasil acompanhando projetos sociais, como o de Mãe Luíza?
Tem mais dinheiro para isso não, o Bolsonaro acabou com tudo. Só estou aqui porque o dinheiro da Ameropa é da Suíça, nem do Brasil é.
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“O Brasil é um país bom, mas a elite branca que está no poder é racista”, afirma Paulo Lins - Instituto Humanitas Unisinos - IHU