18 Abril 2020
"Na política, a atitude mais reveladora do fetichismo é tomar a institucionalização do poder como a fonte real do mesmo. Para Dussel, é na comunidade política, composta pelo povo, que se origina e da qual emana o poder. Ao abordar o fetichismo do poder, o filósofo argentino traz uma dicotomia de fundo que, em sua explanação, é decisiva. Para ele, o poder pode ser obediencial ou fetichizado. Diante da necessidade inevitável de que a comunidade política, que todos integramos, expresse-se por meio de representantes, estes podem exercer seu poder delegado de duas maneiras: obedecendo ao povo ou mandando no povo", escreve Gustavo Xavier, jornalista e produtor musical da Rádio USP, em artigo publicado por Jornal da USP, 15-04-2020.
Nestes dias de confinamento, voltei a um livro que traz um oportuno ângulo crítico em relação ao governo federal, especialmente à figura do atual presidente. Trata-se de 20 teses de política, do filósofo argentino radicado no México, Enrique Dussel. Um dos expoentes do pensamento crítico latino-americano, Dussel publicou esse livro pela primeira vez em 2006. E, é claro, não se referia à situação específica pela qual estamos passando neste momento. Mas suas reflexões são extremamente pertinentes. Penso mais detidamente nas suas considerações sobre o que chama de fetichização do poder.
No contexto tratado, o termo fetichismo, em língua portuguesa, remete à coisa feita. Sendo feita, subentende-se que se originou de mãos humanas. Apesar disso, a coisa é adorada como um deus, ocupando um lugar de absoluto, ou seja, o lugar de onde se originaria todo o resto. Nessa inversão, o feito se apresenta falsamente como aquele que faz, o criado que se mostra como se fosse criador, o contingente como absoluto e o produto humano como mecanismo de dominação que submete o humano que o criou. Eis aí a origem da ideia de fetichismo.
Na política, a atitude mais reveladora do fetichismo é tomar a institucionalização do poder como a fonte real do mesmo. Para Dussel, é na comunidade política, composta pelo povo, que se origina e da qual emana o poder. Ao abordar o fetichismo do poder, o filósofo argentino traz uma dicotomia de fundo que, em sua explanação, é decisiva. Para ele, o poder pode ser obediencial ou fetichizado. Diante da necessidade inevitável de que a comunidade política, que todos integramos, expresse-se por meio de representantes, estes podem exercer seu poder delegado de duas maneiras: obedecendo ao povo ou mandando no povo.
Aqui começam os nós desse emaranhado. E aqui entra o atual presidente do Brasil. Ele, que o tempo todo afirma tomar as atitudes que toma – ou ensaia… ou ameaça – como cumprimento de compromissos para o qual foi eleito, está mesmo agindo em razão de interesses mais amplos do que sua personalíssima vontade?
Ainda segundo Dussel, “o fetichismo começa pela degradação subjetiva do representante singular, que tem o gosto, o prazer, o desejo, a pulsão sádica do exercício onipotente do poder fetichizado sobre os cidadãos disciplinados e obedientes”.
O fato de que o representante, que em nosso caso é o presidente Bolsonaro, declare, frequentemente, estar honrando os votos que o elegeram não diminui o fato de sua dominação ou vontade de dominar. As reivindicações populares estão submersas sob uma agenda que não as beneficia. Além disso, a comunidade política que ele deveria representar não se resume aos votantes que o elegeram. Com o agravante de que sua plataforma eleitoral contou com propostas muito pouco sistematizadas. Por isso, mesmo se pensarmos apenas nos seus votantes, a amplitude de expectativas tão diversas impossibilitaria tradução política inequívoca.
Mas o que mais marca a fetichização do poder, em seu caso, fica explícito na constante atividade autorreferente. Suas ações, em posse do mandato que possui, concentram-se majoritariamente em beneficiar a si mesmo ou, quando mais do que isso, privilegiar seu pequeno grupo, que não é muito maior que uma família nuclear convencional. A ponto de, mesmo diante da pandemia em curso, o presidente causar um tempestuoso atrito com o ministro da Saúde valendo-se de desacordos não propriamente políticos, mas pessoais. O presidente, simplesmente, não aceita que outros apareçam mais do que ele, pouco importa se a questão realmente urgente está a anos-luz dessa picuinha vaidosa – e, ao que parece, ressentida. E assim vem sendo ao longo de seus 15 meses de governo, em seus atritos com o ministro da Justiça, com o presidente da Câmara, e até mesmo com vários de seus, agora, ex-aliados que foram rechaçados pelos motivos mais ordinários. Não se trata de fazer juízo de valor sobre aqueles com quem o presidente entrou em atrito, mas apenas sublinhar o alto grau de pessoalidade em suas dissensões.
Dussel destaca um ponto que, para nosso caso, é muito inquietante. “O próprio poder fetichizado, não podendo fundar-se na força do povo, deve apoiar-se sobre grupos que violentamente submetem ao povo.” Vamos lembrar dos recentes motins nos quartéis e dos indícios da ligação do presidente com bases milicianas, além da truculência de um setor de seus apoiadores mais fiéis nas ruas.
Dussel também pontua que para conseguir exercer um poder autorreferente é necessário debilitar continuamente o poder originário da comunidade, impedir o consenso desde baixo, criar conflitos na base da sociedade e, como lembra o ditado, “dividir para reinar”.
O governante passa a tratar o povo como se fora seu patrão. E o povo, dividido, debilitado em sua cisão profunda, é implicitamente convidado a se tornar servidor do representante ao invés de ser servido por ele. Quando essa divisão, estimulada pelo presidente, está estabelecida, suas declarações de fidelidade ao mandato não podem mais convencer. Não deveriam. Apenas deveriam escancarar uma autoidolatria que busca absolutizar seu próprio poder e que se evidencia na absolutização das próprias opiniões como se fossem, todas elas, pertinentes ao debate público. O poder deixa de ser meio para representar a população e torna-se finalidade pessoal. A inversão fundamental. Como diria Dussel, a corrupção primordial da qual derivam todas as demais corrupções.
Sua postura diária – digo, diária – é a busca de sua própria compensação. Seu ressentimento evidente, cozinhado por décadas de exercício parlamentar obscuro, mostra o fervor de sua quase completa incapacidade de agir de outro modo que não seja autorreferente. Sua claque diária de apoiadores no cercado do Palácio da Alvorada é a imagem lamentável dessa que é a mais completa personificação do fetichismo de poder que pudemos conhecer na história política recente. Quem sente a ilusão dessa aproximação com a autoridade máxima agarra a sensação de que obtém a força que a cisão social lhe retirou.
Desse cenário, só resta o simulacro de amizade entre o presidente-patrão e seus fiéis seguidores. Bolsonaro é a mais perfeita e didática materialização pessoal do governante que manda mandando, em oposição ao que manda obedecendo… embora diga o contrário.
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O fetiche do presidente - Instituto Humanitas Unisinos - IHU