05 Fevereiro 2020
José Luis Gordillo (1959) é doutor em Direito, professor de Filosofia do Direito na Universidade de Barcelona e especialista em movimentos sociais, desobediência civil e objeção de consciência, entre outras questões. Conversamos com ele a respeito do autoritarismo que está sendo implementado nos governos ocidentais, por meio de reformas legislativas, sua relação com os discursos da extrema direita e sobre os caminhos que os cidadãos têm para enfrentar um mundo cada vez mais conflituoso e violento.
A entrevista é de Patricia Simón, publicada por La Marea, 05-02-2020. A tradução é do Cepat.
Começamos falando sobre o fenômeno dos coletes amarelos na França e como confluiu na mobilização contra a reforma do sistema de pensões...
A mobilização dos coletes amarelos teve origem no aumento do preço do diesel, um detonante que será repetido no futuro porque temos a obrigação moral de mudar nosso modelo energético para combater a crise climática. A Agência Internacional de Energia advertiu que em seis anos haverá um declínio muito acentuado no acesso ao petróleo, tornando-o mais caro. Como consequência, surgirão novos conflitos porque toda a atividade econômica consome energia e, sem ela, nossas sociedades não funcionam. Será necessário impor um racionamento energético e isso será socialmente explosivo.
E como acredita que a resposta cidadã a esses novos conflitos irá evoluir?
Pode haver várias respostas. Uma, a do “nós sozinhos”: buscaremos nossa solução rompendo os laços de solidariedade. Seria a ética do barco salva-vidas do biólogo estadunidense Garret Hardin, que em inícios dos anos 1990 declarou que, diante da crise energética, os países terão que optar pelo salve-se quem puder. E mais, sustentou que não era necessário prestar ajuda emergencial às pessoas afetadas pela fome. Uma reação muito brutal que é o prelúdio do ecofascismo. Em um mundo de recursos escassos e esgotáveis, podemos distribuí-los igualmente e garantir um mínimo para o mundo inteiro ou lutar para monopolizá-los.
E os centros de poder ocidentais já estão conscientes de que existirão problemas e que é preciso se preparar.
Como estão se preparando?
Existe uma corrente que começa após o 11 de setembro de 2001, com o discurso de segurança versus a liberdade, por meio do qual são aprovadas medidas que aumentam o poder dos governos e da polícia e restringem as liberdades. É uma tendência geral em todo o Ocidente. A OTAN exige que os governos façam reformas legais neste sentido. Na União Europeia, aprova-se a definição comum de terrorismo e, a partir disso, tudo se justifica em prol da segurança.
É o discurso das ditaduras. Todas se justificam argumentando que defendem a ordem e a segurança, e que por isso restringem as liberdades. São discursos muito autoritários. Em prol de sua segurança, você precisa abrir mão de direitos e liberdades e atribuir maior poder de vigilância sobre suas vidas aos policiais.
É o retorno do direito penal de autor que pune pelo que você é, não pelo que faz. Por isso, são estabelecidos perfis de pessoas que são consideradas socialmente perigosas e que, portanto, precisam ser vigiadas e, eventualmente, reprimidas com antecedência, mesmo antes que façam algo.
É a Lei de periculosidade do franquismo, dos nazistas e de Stalin. Não se trata de que você tenha feito algo, mas, sim, de que sua etnia, ideologia, personalidade e religião são consideradas perigosas.
Após o 11 de setembro, há uma criminalização do islã por meio de um discurso muito esquemático: todos os muçulmanos são fanáticos porque o islã é uma religião de fanáticos e o fanatismo leva ao terrorismo. Ergo, cuidado com os muçulmanos porque todos podem se tornar potencialmente terroristas. Não é o que ainda declaram oficialmente os presidentes, mas é o discurso dos partidos de extrema direita, que têm em comum a islamofobia. Estamos voltando aos modelos penais dos anos 1930.
A União Europeia aprovou dois documentos em 2010 nos quais o Conselho Europeu, ou seja, todos os chefes de Estado, concordaram que é preciso vigiar, sem a necessidade de informar aquelas pessoas que emitiam discursos que incitavam o ódio, o radicalismo.
Mas isso viola o direito à privacidade das comunicações e à liberdade de pensamento e expressão ...
Sim, e em um documento anterior se especificava quem são as pessoas suspeitas: os grupos de extrema esquerda e direita, nacionalistas, religiosos e antiglobalização.
Na Espanha, também resultou na reforma do código penal de 2015, que inclui um crime de incitação ao ódio e ao terrorismo e coloca todo esse discurso de prevenção à radicalização ... Como você o previne, se é um fenômeno ideológico, sem controlar a ideologia das pessoas? São discursos muito liberticidas.
Um dos medos que está presente em lugares como o Chile é que a extrema direita aproveite os protestos para promover a necessidade de instaurar a ordem e, assim, aprofundar os cortes de direitos.
É a característica dos Estados de exceção. Todas as constituições preveem alguns pressupostos como o estado de alarma, exceção e guerra. A característica comum de todos eles é a suspensão de todos os direitos fundamentais. Na Espanha, foi aplicado o Estado de alarma, em 2010, com a greve dos controladores de tráfego aéreo. Suprimem deles o direito à greve e, em caso de desobediência, podem ser julgados por crime militar.
Todas essas leis antiterroristas são também uma maneira de normalizar a repressão própria de uma situação de exceção, sem a necessidade de declará-la.
Após os atentados de 2015, a França passou três anos em estado de urgência. Em 2018, incorpora ações anteriormente restritas ao estado de exceção a uma nova lei antiterrorista, como a de que a polícia pode entrar em casas sem ordem judicial e já não precisa mais declará-la. Isso na pátria dos direitos humanos. O espírito dos tempos caminha por aí.
Ver as ruas de Paris, Bruxelas ou Roma com uma presença militar diariamente ajuda nessa normalização do estado de exceção.
E isso também está nos tratados da União Europeia, que os Exércitos podem lutar contra o terrorismo dentro e fora de suas fronteiras.
Em termos de filosofia do direito, como descreveria essa tendência ao ecofascismo vislumbrada com o auge dos governos populistas de extrema direita?
Existe uma deriva autoritária, mas é difícil ver seu alcance porque as conquistas em termos de direitos serão mantidas enquanto as pessoas as defenderem. Na França, por exemplo, o estado de emergência permitia proibir manifestações, mas os cidadãos continuaram a convocá-las e, assim, reafirmando esse direito. É uma batalha de avanços e retrocessos. Os direitos se conquistam e se defendem porque não há conquistas para sempre.
É preciso ter em mente que os regimes ocidentais são oligarquias burocráticas com reconhecimento de direitos e liberdades e a realização de eleições livres periodicamente. Mas, desde 2001, cada vez mais se confere poder à polícia e se restringem direitos. Os prisioneiros de Guantánamo finalmente conseguiram recorrer a um tribunal, um direito que inicialmente lhes foi negado porque não estavam em território estadunidense. Tampouco lhes era aplicado o direito internacional porque os Estados Unidos diziam que eram combatentes ilegais, por isso a eles não se aplicava o protocolo de Genebra para prisioneiros de guerra. Guantánamo representa a arbitrariedade absoluta e é para onde estamos indo.
E como evoluiu o que se entende por violência nessas duas décadas de retrocesso autoritário? Como se conseguiu que queimar contêineres de lixo, como faziam os trabalhadores dos estaleiros ou os mineiros em seus protestos, seja considerado agora terrorismo?
O discurso da segurança conquistou os corações e mentes de boa parte das pessoas. Segundo a definição de terrorismo da União Europeia, a destruição massiva de propriedade pública ou privada, realizada com determinadas intenções, como destruir as infraestruturas econômicas e políticas, é terrorismo.
A reforma do código penal de 2015 é brutal. Há um artigo que define a colaboração com o terrorismo, no qual se considera que uma pessoa que forneceu uma informação que possa servir posteriormente para cometer um ataque ... isso é muito amplo. Também são redefinidas as finalidades, porque o terrorismo são crimes comuns que se diferenciam pela finalidade. Antes era subverter o ordenamento espanhol e a paz pública. Agora, é estendido a obrigar um governo a tomar uma decisão, querer destruir as estruturas, aterrorizar uma população ... Desse modo, justifica-se o discurso de vigiar a radicalização daqueles que pregam essas finalidades.
E temos o artigo 579 sobre incitação ao terrorismo, que faz uma menção especial aos professores. Estou na aula, explico algo, alguém que me ouve sai e coloca uma bomba e, com isso, podem vir me buscar porque alguém disse que colocou uma bomba porque eu disse sei lá o quê. Isso é muito complicado.
E depois há o crime de incitação ao ódio que também é muito controverso.
É o mesmo, porque eu digo algo e as pessoas podem começar a odiar algo. Os penalistas chamam isso de crimes de sentimentos. É como a exaltação do terrorismo, outro crime que resulta em você fazer uma piada sobre Carrero Blando, no Twitter, e ser acusado de exaltar o terrorismo.
É preciso ter cuidado com os crimes incorporados a argumentos progressistas, como combater a discriminação racial, a homofobia ... Para a esquerda soa bem, mas tem um retorno e, por exemplo, um discurso sobre a luta de classes pode ser interpretado como incitação ao ódio. É preciso defender a liberdade de expressão e combater o racismo e a homofobia intelectuais pela via intelectual. E às agressões, policialmente. Rosa Luxemburgo dizia que a liberdade é sempre a liberdade de quem não pensa como você. E, além disso, é preciso permitir que os fascistas se expressem livremente, porque essa é a garantia de que você também possa fazer o mesmo.
Essa penalização de expressões é muito negativa, uma inclinação deslizante. Além disso, uma vez que você a inseriu na normativa, é muito difícil removê-la, porque você irá enfrentar a direita e determinados setores da esquerda.
Aqui, assaltava-se uma livraria nazista. Parece-me depreciável que vendam livros de exaltação do nazismo, mas é a liberdade de expressão. Enquanto fizerem isso...
Estamos entrando em uma década mais violenta que a anterior?
Em princípio, sim, estamos em um período histórico que pode ser muito agitado. As previsões sobre as consequências da mudança climática e da Agência Internacional de Energia nos dizem que será uma etapa muito conflitiva.
Também estão sendo redefinidas as formas de rebelião?
Quando você faz uma revolução, isso significa pôr em questão tudo o que existe. Se você vencer, se tornará um herói nacional. Caso contrário, fuzilam você ou prendem. Todas as revoluções foram consideradas golpes de Estado por seus inimigos e os golpes de Estado revoluções por parte de quem os apoia. Depende de qual lado você esteja e a quais interesses atingem.
E também estamos vendo novas formas de guerra nas quais nossos países participam sem que os cidadãos estejam cientes, muitas vezes sob a égide da luta contra o terrorismo islâmico.
Os soldados franceses estão no Mali sem que consideremos que há uma invasão. As guerras modernas não são declaradas. Juridicamente, a declaração é muito importante por causa de suas consequências legais, por isso é evitada.
E o que os cidadãos podem fazer diante desse cenário desalentador?
Recuperar os laços de solidariedade, a atividade comunitária, em que as pessoas confiem na capacidade de fazer coisas juntas, em saber conduzir bem as diferenças ... Para os tempos vindouros, é muito importante que os laços sociais não sejam rompidos, que não partamos para o individualismo extremo.
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“As guerras modernas não são declaradas”. Entrevista com José Luis Gordillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU