Esta é a segunda parte de uma entrevista realizada com o padre jesuíta Hans Zollner, membro de uma comissão vaticana criada pelo Papa Francisco para a proteção dos menores.
A entrevista é de Shannon Levitt e Ines San Martin, publicada por Crux, 14-11-2019. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Encontrar face a face com sobreviventes de abuso sexual pode ser uma experiência desconfortável, mas é um passo necessário no processo curativo bem como para lidar com a crise de abusos sexuais pela qual passa a Igreja. Um encontro desse tipo é muitas vezes uma experiência transformadora, e os sobreviventes geralmente tiveram de se esforçar por anos para poder ter um momento na presença de membros da hierarquia. Mas isso pode estar mudando.
O padre jesuíta alemão Hans Zollner, um dos especialistas da Igreja que atua na prevenção de abuso sexual e membro da comissão papal para a proteção dos menores, contou ao Crux, no último dia 9, que se “surpreendeu” pela forma como muitos dos bispos locais estiveram acompanhando vítimas de abuso clerical em uma recente visita feita ao país de origem de Francisco, a Argentina.
“Realmente fiquei surpreso me porque basicamente não me lembro de ter me encontrado com uma conferência episcopal onde um número significativo dos bispos havia ficado impactado quando de um encontro com os sobreviventes”, disse Zollner. “Não posso dizer que isso vale para todos, mas a resposta geral foi muito positiva e eu falei sobre os problemas que sempre falo”.
Zollner explicou que as experiências recentes que teve no sul da África e na América Latina mostraram que, depois do encontro de fevereiro dos líderes das conferências episcopais e depois do motu proprio do Papa Francisco, Vos estis lux mundi (Vós sois a luz do mundo), os bispos veem “muito claramente que precisam dar um passo adiante”.
Na África, “seria impensável um ano atrás eles me convidarem para falar sobre prevenção, e então ter um segundo dia inteiro para discutir as questões canônicas”, explicou Zollner. Mas, na maioria dos lugares, essas ideias parecem estar aos poucos mudando. O religioso chamou este movimento de “uma caminhada” e espera ver mais encontros e diálogos com relação ao abuso sexual. Tal caminhada “não é tão rápida quanto gostaríamos, mas vejo sinais de esperança”.
O Crux conversou com Zollner em 9 de novembro, após o encerramento de um seminário sobre prevenção de abusos sexuais ocorrido na América Latina e organizado pelo centro interdisciplinar para a proteção das crianças, da Pontifícia Universidade do México, o Ceprome.
O senhor esteve na Argentina em um encontro com os bispos. Qual a sua impressão?
Estive no país por um dia junto de formadores vindos de cinco países, entre eles reitores de seminários e outros formadores, em um evento organizado por pós-graduados do instituto de psicologia e do Centro para a Proteção das Crianças, da Universidade Gregoriana, de Roma. O tema era “salvaguarda e formação”, e achei que os participantes estavam muito interessados e abertos.
No dia seguinte, fui para Pilar, lugar onde a conferência dos bispos se reúne, e encontrei ouvidos atentos. Encontrei reações muito interessantes, dúvidas que mostravam que aqueles bispos realmente haviam refletido sobre o assunto por bastante tempo.
Fiquei realmente surpreso que muitos dos bispos que compartilharam comigo pessoalmente não só mostravam que compreendiam a gravidade da situação e a seriedade do desafio de lidar com os casos de abuso e com o acobertamento, mas também que todos com os quais conversei pessoalmente – e foi um bom número dos quase 140 bispos que estiveram presentes – acompanham as vítimas de abuso, e eu pude sentir isso nas conversas.
Realmente fiquei surpreso porque basicamente não me lembro de ter me encontrado com uma conferência episcopal onde um número significativo dos bispos havia ficado impactado quando de um encontro com os sobreviventes. Não posso dizer que isso vale para todos, mas a resposta geral foi muito positiva e eu falei sobre os problemas que sempre falo. Descobri também três meses atrás no sul da África que o encontro das conferências episcopais, em fevereiro, teve um efeito claro e palpável, e que o novo motu proprio Vós sois a luz do mundo (Vos estis lux mundi) mostrou aos bispos muito claramente que eles precisam dar um passo adiante.
Acha que veremos outros encontros como o de fevereiro?
Com certeza. É uma caminhada. Uma nova legislação foi promulgada por um período de três anos, e acho que dentro de dois anos e meio teremos um feedback sobre como ela tem funcionado. Precisamos de certa clareza sobre algumas definições. Acho que o motu proprio é um grande passo para frente, mas precisamos mais.
Essa não é a parte mais arriscada, com as pessoas achando que “temos a legislação, realizamos o encontro”, agora vamos em frente?
Não. Honestamente, acho que o contrário é que está acontecendo. Na maior parte do mundo, as pessoas tomam ciência só através deste encontro, do que sai dele, e que a nova legislação não é um assunto que se pode ignorar, que o problema não vai embora e que chegará até elas também.
Em alguns países já temos lidado com isso há décadas, na Igreja e na sociedade. Mas na maioria dos países da América Latina e em todas as partes da África, Ásia e Oceania, o mesmo não acontece. Só agora é que se percebeu a seriedade do problema. Acho que o encontro de fevereiro foi um passo importante, exatamente como previu o papa quando o convocou: que a Igreja inteira entrasse no assunto. E vejo sinais disso.
Desde fevereiro, visitei diferentes países da América Latina e da África, me reuni com os bispos da Nova Zelândia e com líderes das ordens religiosas. O mais impressionante foi ver os bispos do sul da África falando sobre o tema. Seria impensável um ano atrás eles me convidarem para falar sobre prevenção, e então ter um segundo dia inteiro para discutir as questões canônicas.
Sempre vi o encontro de fevereiro como um chamado a despertar, mas também como o papa a falar aos bispos do mundo: “Se daqui a dez anos alguém acusá-los de acobertamento, não poderão dizer que ‘não sabíamos o que fazer’”.
Com certeza.
Parece que está funcionando…
Honestamente, acredito que o encontro de fevereiro contribuiu bastante para isso. Ele vem catalisando uma reação do lado dos bispos e superiores religiosos. Por exemplo, a União Internacional dos Superiores e das Superioras Gerais (a USG e a UISG), federações mundiais das ordens religiosas com aprovação canônica, estão trabalhando duro no sentido de prevenção em suas respectivas ordens.
Mas têm também outros aspectos, como o movimento #MeToo, que tem servido como um chamado em alguns países, para o fato de que o abuso sexual é generalizado. Acompanho a situação nos Estados Unidos e ultimamente vemos acusações contra todos os tipos de lideranças religiosas, de diferentes denominações religiosa aos escoteiros, mas também nos esportes, entre os professores e acadêmicos, médicos, psicólogos, polícia, forças militares, e assim por diante.
Acredito que tem havido um crescimento geral na percepção da gravidade do problema, mas estamos longe de chegar ao ponto de entender a sua profundidade na sociedade em geral e a extensão dos números de acordo com todos os especialistas. E a Igreja, evidentemente, faz parte disso.
Quando recentemente visitei a África, vi uma maior conscientização sobre os direitos das crianças. Celebramos 30 anos da Convenção sobre os Direitos da Criança. Depois de trinta anos falando e promovendo a questão, vemos como alcançamos um novo patamar de consciência. E isso é uma coisa que, creio eu, estamos trabalhando.
É lento, mas, em última instância, vai ser ajudar para uma mudança de atitude. Realmente, não é tão rápido quanto gostaríamos, mas vejo sinais de esperança. Depois do caso de Dallas, as coisas melhoraram na Igreja Católica, como vemos na queda das acusações desde então, mas quando recebemos as notícias do caso McCarrick e do relatório do grande júri da Pensilvânia, muitos se desiludem.
O senhor nunca se entristece com isso tudo?
Não, pessoalmente, não me entristeço. O que não significa que não tenhamos desafios.
Nem fica frustrado?
Os meus níveis de tolerância à frustração são altos. Acho que isso têm a ver com a minha formação de psicoterapeuta. Ela me permite entender que as pessoas não são “oito ou 80”, mas que existe uma variedade de níveis intermediários, e que elas têm mais ou menos consciência das razões pelas quais agem da maneira que agem. Quando olhamos para dentro da personalidade, da história, da vida das pessoas, podemos ponderar por que elas fazem as coisas que fazem.
Além disso, a minha tese de doutorado em teologia foi sobre o discernimento espiritual de Santo Inácio, e isso também me ajuda a entender que existe uma caminhada em curso para descobrir o que Deus quer que façamos da vida.
Finalmente, estudei muito a história da Igreja. Venho de uma diocese, Regensburg, criada em 739 por São Bonifácio e que viu de tudo durante o período medieval, a Reforma e a secularização em 1803. O rosto visível da Igreja mudou muitas vezes, mas a Igreja de Jesus Cristo continua a viver como ele prometeu em Mateus 16.
Não digo que não existe crise, mas que o nível de agitação que percebi em algumas partes não nos ajuda a olhar, de fato, com soberba e, como diria Inácio, “indiferença” ou desapego pessoal a situação da Igreja. Não devemos puxar a brasa para o nosso lado, mas temos que tentar ver, da melhor forma possível, o que é preciso para que a mensagem do Evangelho possa ser percebida e vivida.
Se morasse nos Estados Unidos, provavelmente o senhor já teria perdido a paciência…
Concordo. Não podemos nos distanciar por completo da situação. Este ano estive duas vezes nos Estados Unidos, e voltarei ano que vem. Tive contato com a reação das pessoas aí. O que percebi nas duas visitas a lugares diferentes é que, assim que vocês alcançam um certo nível que ultrapassa a agitação, percebem que as pessoas buscam algo mais balanceado, rompendo entre os extremos.
Entre os casos do relatório do grande júri da Pensilvânia e de McCarrick, o senhor acha que as coisas melhoraram no país, depois de Dallas, ou acha que houve uma melhora somente superficial?
Não posso falar sobre isso porque desconheço a situação em cada uma das aproximadamente 200 dioceses dos EUA. Mas, para mim, esse é exatamente o tipo de expectativa de uma sociedade que acredita no efeito imediato de uma nova lei ou carta, isto é, que com a simples introdução de uma nova legislação, diretriz ou norma, as coisas mudarão por completo e para sempre, do dia para noite. Acho pouco realista pensar assim. Coisas complexas e grandes quanto a Igreja não mudam em um único dia. A expectativa de que todos farão absolutamente tudo de acordo com a norma apresentada é compreensível, mas também não é realista. Com certeza entendo a fúria pelo não cumprimento das normas.
Há alguns anos estudei as diretrizes em torno da salvaguarda introduzidas por universidades americanas. Se revisarmos os documentos, aprendermos sobre todos os departamentos que foram criados e contar todas as sessões formativas obrigatórias: meu Deus! Tudo está em perfeito estado. Mas, então, congelamos de repente, pois percebemos que algo do tipo é como tentar dar conta de cada detalhe e ter sob controle qualquer problema possível; em seguida, iremos correr o perigo de não conseguir compreender o todo, confiando somente no que se estabeleceu sem olhar para os grandes temas. Essa é a minha impressão, pelo menos.
É cultural. Faz vinte anos que moro em Roma, onde temos uma cultura bem diferente em se tratando da forma como aplicamos a lei. Mesmo os alemães, somos diferentes. Por exemplo, a cultura generalizada de processos judiciais que há nos Estados Unidos, em todas as áreas, não é exatamente o que gostamos de fazer.
O senhor está indo para o Peru. Há um caso sendo revisto na imprensa do país, que é a situação de Luis Fernando Figari e o Sodalitium. No entanto, não parece haver um interesse no sentido de um aprofundamento, temos até um bispo processando as vítimas. Qual a sua expectativa ao visitar o país?
Não sei o que esperar. Quando vou a um país onde nunca estive, tendo a me preparar para tudo. Vou a duas universidades: à Universidade Católica e à Universidade Jesuíta. Suponho que as pessoas aí estejam interessadas, se não estivessem, não organizariam estas palestras. Mas também tenho o convite para me encontrar com os bispos em janeiro.
Tenho o interesse de ver o que acontece, porque muita coisa tem ocorrido no Peru. O novo presidente do Celam é peruano, e eu falei com um bispo local que é membro do Sodalitium. Estou preparado para enfrentar uma situação que, com certeza, é difícil, e uma sociedade e Igreja que possuem divisões entre si, assim como uma conferência episcopal dividida.