20 Novembro 2019
As crises que explodiram recentemente na América Latina são políticas: desafiaram o poder. São sociais: estremeceram e polarizaram suas populações. São semelhantes a que explodiu na Nicarágua, em 2018.
O artigo é publicado por Revista Envío, Nº 452, novembro de 2019, Universidade Centro-Americana da Nicarágua. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Antes de contrastar o que vivemos na Nicarágua, desde abril de 2018 com o que estão vivendo países tão próximos, como Honduras, ou tão distantes, como o Chile, vale recordar que a “marca” da crise nicaraguense é uma massiva e sistemática violação de direitos humanos desde o primeiro instante dos protestos.
“Vamos com tudo!”, disseram. E a ordem foi obedecida sem trégua, entre abril e agosto de 2018. Quatro dias depois de iniciada a rebelião já eram 23 mortos. O desproporcional e contínuo uso da força letal causou um banho de sangue (328 mortes, nas quais precisa-se incluir a de 28 policiais, que saíram para matar ou morrer, cumprindo ordens emanadas do poder), milhares de feridos e aleijados, a ordem que se deu aos médicos do serviço público para atendê-los, as torturas nos cárceres contra centenas de presos...
A característica da crise nicaraguense é essa: uma massiva violação de direitos humanos contra os protestos, inicialmente pacíficos e que seguiram sendo assim majoritariamente. Se tornaram em um massacre do Estado, com os crimes de lesa humanidade, documentados por especialistas internacionais. À conta-gotas, a repressão e a sanha continuam sendo as características, um ano e meio depois, daqueles dias.
Característico também é a teimosia dos responsáveis em não reconhecer nada do ocorrido. Na crise de outros países há tudo isso, ainda que não se entrelaçaram tantas tragédias extremas.
A crise no Chile colocou todo o continente a pensar. “Trinta anos de democracia. Eleições competitivas e inquestionáveis. Respeito aos direitos humanos. Bom funcionamento das instituições. Crescimento econômico sustentável. Redução da pobreza...”, assim o Chile é descrito pelo sociólogo peruano Carlos Basombrío, chamando-o de “navio-almirante” do progresso na América Latina, e conclui que “está em chamas”.
Ainda que em comparação com a institucionalidade e o desenvolvido do “navio” chileno, a Nicarágua é apenas uma “panga”, “um barquinho”, há semelhanças entre ambas crises.
A rebelião de abril de 2018 na Nicarágua não teve uma direção, careceu de lideranças. A iniciaram manifestantes “autoconvocados”, palavra que se popularizou em semanas e ainda sobrevive em muitos discursos.
Em abril e em maio, e ainda depois, ninguém liderava, ninguém organizava, ninguém convocava, porém milhares se sentiam convocados para sair massivamente às ruas de todo o país reivindicando que, depois da faísca inicial – as reformas da previdência social que reduziam em 5% as pensões de idosos –, logo mudasse o governo. E quase de imediato, a indignação empática – assim nomeada por José Luis Rocha, atraia a mais e mais autoconvocados para encher as ruas e reforçar as dezenas de tranques que paralisaram o passeio público e as rodovias. Ver a repressão, ver pessoas caindo assassinadas e jovens feridos, mobilizou mais e mais jovens, e logo se convocou todo um país.
Algo muito parecido aconteceu na rebelião social do Chile. Iniciou-se com os estudantes mais jovens e depois se seguiu uma massiva explosão de autoconvocados incoformados, sem direção, nem liderança visível. A faísca, que fez explodir a ira que estava contida, foi o aumento de 30 pesos chilenos (4 centavos de dólar) na passagem do metrô, que três milhões de pessoas usam diariamente.
Depois, veio o resto: o rechaço a todo um modelo que gerou muitas classes médias e muita desigualdade. “Chile despertou” era o lema. As multidões o cantavam. Alguns traziam mais outros para as ruas e a ferocidade repressiva dos Carabineros – que não se compara a dos franco-atiradores e paramilitares de Daniel Ortega –, herança da ditadura de Pinochet, alimentou a indignação empática, que chegou a somar mais de um milhão de pessoas na gigantes marcha pacífica da sexta-feira, 25 de outubro, “ocupando novamente as ruas de Santiago”... e forçando o presidente Sebastián Piñera a pedir a renúncia de todo seu gabinete.
E depois de “despertar”, o Chile está vivendo hoje o que viveu a Nicarágua, em abril e maio de 2018: marchas massivas por todo o país, reprimidas com violência. O povo exige que Piñera saia do governo. “Que se vayan”, assim como gritávamos aqui. E lá, como aqui, todas as análises apontam: “O Chile já não é o mesmo de antes do 18 de outubro”. Como se dizia na Nicarágua: que nunca seria a mesma de antes do 18 de abril.
O contraste entre uns e outros autoconvocados, os chilenos e os nicaraguenses, é que os da Nicarágua se colocaram a protestar no país mais pobre do continente e os do Chile o fizeram no país apresentado, há algumas décadas, como o mais desenvolvido do continente.
Outro contraste: os episódios iniciais de violência destrutiva no Chile foram muito maiores que na Nicarágua – aqui está comprovado que foram forças estatais que provocaram a maioria de incêndios e roubos – e no Chile, ademais, havia muito mais infraestrutura para destruir. Algo, além da autoconvocação e a falta de uma liderança visível, une também ambas explosões: as feridas ainda não cicatrizadas do passado. Diante da convulsão social, da repressão e das torturas, as pessoas de mais idade evocaram as ditaduras que conheceram em ambos os países.
Trinta anos depois de finalizada a ditadura de Pinochet, a presença dos Carabineros nas ruas –ordem a mais desafortunadas das quais deu Piñera – recordaram os horrores causados durante anos pela instituição repressiva que serviu ao ditador.
Na Nicarágua, ainda que não haja guardas nacionais nas ruas – a GN desapareceu em 1979 –, há policiais de choque e paramilitares, as amargas recordações da ditadura de Somoza, derrotada há 40 anos, seguem presentes quando enfrentamos os crimes, a sanha e as torturas de hoje. E muito frequentemente o saldo é que “esse é pior que aquele”.
A crise latino-americana se dá na região mais desigual do planeta. A América Latina mantém, há décadas, o recorde de ser a zona do mundo onde existe um abismo profundo e imóvel entre os muito poucos que tem muitíssimo e os muitíssimos que tem muito pouco...
Apesar do crescimento econômico e da redução da pobreza que se conseguiu em alguns países do continente – Chile à frente –, esse abismo não somente permaneceu, mas também se aprofundou e “se sente” ainda mais nesse mundo interconectado, quando já todos podemos ver o que tem em outros países, como vivem em outros países... E todos podemos ver em tempo real como e porque explodem crises em outros países.
Ainda que o regime de Ortega tenha criado, à custo da milionária cooperação venezuelana, e de outras fontes ilícitas, ostentosas e de visíveis desigualdades, não foi exatamente a desigualdade econômica o desencadeador da revolta de abril no nosso país. Foi, principalmente, a desigualdade “política”, o esmagador controle social que exclui aqueles que não são “os nossos”.
A revolta popular no Chile tem a ver “com tudo”, porém, em grande medida, o que provocou foi a desigualdade econômica, que não se deve medir somente em cifras macroeconômicas ou em medianas, mas sim no rampante elitismo do modelo econômico vigente, o que mais se encaixaria no conceito de “capitalismo selvagem”, que provoca não somente miséria, como também indignidade.
O presidente Piñera viu “uma guerra” onde havia uma exaustão por tanta exclusão. Não pode entende-la. Piñera é um dos homens mais ricos do Chile, sua família é uma das 17 donas do poder econômico, e tiram vantagem de um modelo neoliberal em estado de “pureza”, o primeiro que se aplicou na América Latina nos tempos de Pinochet.
Durante anos apresentado como o milagre econômico do continente, no Chile o capitalismo extremo criou uma espécie de apartheid: para a elite, serviços de saúde e educação de Primeiro Mundo, e para a maioria, educação e saúde do Terceiro Mundo... o sistema de pensões era... de “quarto mundo”.
Piñera pertence à elite que, segundo a CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina), fica com 26,7% da renda nacional, enquanto que a 50% dos lares chilenos chega somente 2,1% dessa renda. Também confirma a CEPAL que metade da força de trabalho do Chile sobrevive com salário mínimo.
Dias antes da revolta, Piñera afirmava que o Chile era um “oásis”. Porém nesse oásis, desde a água – primeiro direito humano – até tudo o que deveria ser público, foi privatizado. Se disse que o Estado seria o regulador, porém as elites fizeram tudo, com as empresas privatizadas, e com o Estado esquecendo da responsabilidade de regular...
O modelo não funciona ou somente requer sérios ajustes? Já não bastam as reformas para compensar socialmente as desigualdades do modelo? E quais ajustes teria que se fazer? Com que respaldo das instituições financeiras multilaterais? Toda a América Latina se pregunta e ensaia respostas. Desde uma das sociedades mais educadas do continente, o chileno Cristian Warnken, professor de literatura e comunicador, vê a crise de seu país em um marco mundial mais estrutural...
“Estamos – diz – na sociedade líquida, que define Bauman. É o fim do Estado Nação como conhecemos... isso não é política, nem ideologia, isso não é marxismo. Não é contra a direita. Isso é a revolução que ocorrerá em todas as nações fruto da perda de valor das instituições clássicas, que caem como as folhas de árvores no outono. As igrejas se fizeram água no mundo. Os partidos políticos, os tribunais, as forças armadas...”.
“Este momento é o que os filósofos do nosso tempo chamaram de fim do Estado-Nação com todas suas instituições. Não sabemos o que virá. É o começo de algo ainda não definido. Somos testemunhas da mudança de fólio depois de mais de 200 anos das três grandes revoluções que mudaram o mundo: a inglesa, a francesa e a norte-americana. O planeta mudou e o melhor se salva assim”.
O professor não deixou de ser professor e de aconselhar: “Isso não é simples de parar... lhes convido a ler para entender”.
Entre as multidões que saíram às ruas de nossos países para exigir e reivindicar, quantos terão tempo e dinheiro para ler o que tantos pensadores pressentiam?
No entanto, entre essas multidões são muitíssimos aqueles que já sabem de outras revoluções necessárias – a de gênero, a ecológica, a de novas relações humanas – e muitíssimos são aqueles que souberam há alguns meses que na Nicarágua o povo se levantou contra Ortega, que em Porto Rico multidões pacíficas em manifestações de vários dias conseguiram que o corrupto e insensível governador Ricardo Rosselló renunciasse, terão visto imagens da “revolução dos guarda-chuvas” em Hong Kong ou a dos “coletes amarelos” em Paris... “Lendo” as redes sociais começam a entender.
Nenhuma das crises latino-americanas, nenhuma, se entende sem o poder das redes sociais e dos smartphones que informam, alertam, convocam e explicam brevemente o que acontece no mundo, e ainda mais brevemente nos dizem algumas das razões de porquê acontece. Como o fogo no alvorecer da humanidade ou a roda muito depois, as novas tecnologias da comunicação mudaram nosso modo de pensar, de atuar, também de protestar.
Houve outras crises em países muito menos desenvolvidos que o Chile, que se parecem com as da Nicarágua. E houve com outros detonadores.
O questionamento, o rechaço, chegando a níveis de repúdio e de violência, de reeleição presidencial está presente hoje claramente no roteiro de três das crises do continente: Nicarágua, Bolívia e Honduras.
Ortega governa desde 2007 até hoje, depois de duas reeleições consecutivas (2011 e 2016). Para conseguir, reformou a Constituição com o argumento de que ser proibido de tentar a reeleição era violentar um direito humano. Na Nicarágua, onde ainda pesa a história de uma família, os Somoza, no poder durante mais de quarenta anos e sucessivas reeleições, a reeleição é um tema esparso. Não foi esse exatamente o motivo que incendiou a faísca em abril, mas sim continua presente na crise sem fim que o reeleito Ortega provocou na Nicarágua.
Na Bolívia foi esse o detonador. Evo Morales governou desde 2006 até hoje, e foi sua quarta reeleição, em eleição de duvidosa transparência e depois de um referendo em que a população lhe disse NÃO a sua pretensão. Foi a faísca que acendeu a crise no país andino.
Honduras é um país com uma população mobilizada intermitentemente em repúdio a um político que decidiu se reeleger.
Foi Honduras, em 2009, cenário do primeiro golpe de Estado do século 21 na América Latina... e até agora, o único e autêntico, pois cumpriu com os parâmetros de todos os golpes de Estado. O estamento militar, com o respaldo das classes mais poderosas do país, por suas armas tirou o presidente Manuel Zelaya do poder, em um cenário similar ao das tradicionais quarteladas latino-americanas do século 20...
Iniciou então a meteórica carreira política e econômica de quem era então dirigente do Partido Nacional e é hoje presidente da República, Juan Orlando Hernández, eleito em 2013, em pleito que cheirou a fraude. Seu governo, populista de direita, culminou com a imposição de sua candidatura à reeleição, violentando a Constituição hondurenha, que o proibia de disputar novamente.
Em abril e maio de 2015, milhares de hondurenhos indignados se mobilizaram massivamente e durante semanas ao clamor de “Fuera JOH!” com tochas acendidas em mãos. A faísca que incendiou essas tochas foi do comprovado roubo do seguro social para financiar a campanha eleitoral de Hernández. Aquele primeiro surto de mobilizações massivas teve um recesso, mas se reativou em novos protestos de ruas pela candidatura ilegal de JOH à reeleição.
Em novembro de 2017 se consumou um novo período presidencial para Hernández. Contra a contagem de votos, de denúncias, do informe da OEA, das mobilizações cidadãs e do rechaço de uma maioria da sociedade, o tribunal eleitoral, controlado por Hernández – como Ortega controlou o tribunal nicaraguense e como Morales controla o de seu país – o declarou ganhador.
Em meio a mobilizações, respondidas com uma feroz repressão, com dezenas de mortes, centenas de detidos e em um ambiente de terror, em janeiro de 2018, JOH iniciou seu segundo mandato. E até hoje está aí. Pouco se menciona essa crise permanente porque Honduras pesa muito pouco na geopolítica regional, menos ainda na internacional.
Na crise hondurenha, tão estendida no tempo, onde se fez mais visível a presença do narcotráfico. Na crise de outros países, o negócio da droga e do poder dos cartéis move a política, mas as análises geralmente não incluem o peso determinante que tem.
Em Honduras há um dissimulo. Por ser Honduras um território que, há dez anos, a droga atravessa, saindo dos países andinos rumo ao mercado dos Estados Unidos, hoje o país é classificado como “capital hemisférica da cocaína” e se aponta abertamente como exemplo mundial de “narcoestado”.
Juan Orlando Hernández é um narcomandatário. Envolta em mistério, e até agora incerta, a morte de sua irmã e colaboradora mais direta, Hilda Hernández, em dezembro de 2017, culpou, entre outras versões que procuravam encobrir os motivos, um ajuste de contas entre cartéis da droga, seguida um ano depois pela captura e entrega de seu irmão, Tony Hernández, às autoridades judiciais dos EUA, sob a acusação de ser um dos traficantes de drogas de mais alto nível na América Central nos últimos dez anos, inevitavelmente respinga em JOH.
A condenação de Tony, em outubro de 2019, em um tribunal de Nova Iorque, aproximar seu irmão Juan Orlando a um final similar.
“Se não mudar as dinâmicas que originaram, há dez anos, o golpe de Estado – escreve na Envío o nosso correspondente em Honduras, o padre Ismael Moreno –, a rejeição a seu principal beneficiário, político e econômico, JOH, continuará viva, como o magma expectante de um vulcão ativo. E explodirá novamente contra o regime, esteja sob a liderança de Juan Orlando Hernández, ou quando ele já for processado e extraditado”.
O poder do narcotráfico na região e nas crises regionais foi revelado, escandalosamente, no México neste mês de surtos políticos e sociais que abalaram a América Latina.
Mas os que ocupavam as ruas mobilizadas contra o governo no México não eram cidadãos insatisfeitos ou jovens indignados. Eles eram traficantes de drogas do cartel de Sinaloa, exigindo a libertação de Ovidio Guzmán, um dos filhos reconhecidao por Chapo Guzmán, membro de dois dos poderosos cartéis de Sinaloa.
Ovidio foi preso em uma operação “improvisada e falha” – reconheceram as autoridades mexicanas – e para resgatá-lo, seus companheiros colocaram em xeque a cidade de Culiacán, capital de Sinaloa e bastião do cartel, durante horas de fogo cruzado – oito mortos –, nos quais o exército dos narcos demonstrou maior capacidade militar que o exército mexicano. Homens encapuzados e armados, capturando militares e suas famílias, provocando incêndios e ameaçando fazer algo similar em outros estados do país se não liberassem o “Chapito”, impuseram o terror, demonstraram abertamente o seu poder.
Andrés Manuel López Obrador teve que ceder e ordenou que liberassem Ovidio. Foi um golpe contundente a sua imagem. Demonstrou o que esse poder paralelo pode fazer, quando quer, e que permanece entrelaçado nos poderes institucionais de boa parte de nossos países, até que quando seus interesses estiverem em jogo, se revelam e mostram a sua força.
“A crise revelou o verdadeiro rosto do país que tínhamos” disse sobre a crise da Nicarágua o catedrático Ernesto Medina, em uma recente entrevista a Envío. “Éramos o país mais seguro da América Central, a admiração da região. E descobrimos de maneira trágica que era devido aos grupos criminosos fazerem parte do aparato de poder, que ao sinal dos seus chefes, se colocam em camionetas, empunham AK-47s e saem às ruas semeando terror e morte”.
Desconcertados pelos protestos massivos que os encontravam perdidos, surpreendidos por manifestações que surgiam como “do nada” – ainda que todas tenham raízes e razões –, os mandatários questionados por multidões – na Nicarágua, Bolívia e Equador – reagiram culpando as “conspirações”, as tempestades que os sacudiam, se negando a aceitar os ventos que semearam...
O regime da Nicarágua – os governantes e seus cúmplices – leva mais de um ano e meio em um patológico estado de negação, afirmando desde maio de 2018 até hoje, que foram vítimas de um “golpe de Estado que deu errado”. Negam qualquer evidência que os desmente e repetem em sua propaganda, em comunicados e em fóruns internacionais que os golpistas fabricados em seu delírio... “não puderam, nem poderão!”.
Na Bolívia, Evo Morales culpou também o repúdio a fraude da sua reeleição como um golpe de Estado da “direita”... Estranhos “quarteladas” de ambos países, protagonizados não por militares, nem por um grupo encrustado em instituições estatais, mas sim por massas indignadas e desarmadas.
No Chile, Piñera não falou de golpe, mas sim de um “vandalismo organizado” que o fez afirmar no primeiro: “Estamos em guerra”, somente para exacerbar mais a indignação para colocar a ele mesmo na mira dos indignados.
Como os outros governantes, no Equador, Lenín Moreno ficou surpreso com a fúria do protesto e sua massificação. Não houveram atos de violência no começo.
A faísca que acendeu o pavio no Equador também foi uma medida que aumentou o custo da vida das pessoas. Seguindo as prescrições do FMI, Moreno aumentou o preço dos combustíveis – especialmente o diesel, em 123% –, até agora altamente subsidiado, o que afetava o transporte público e os bolsos das pessoas mais pobres e pequenos produtores. Ele pretendia aliviar o déficit fiscal deixado por projetos de corrupção, desperdício e faraônicos no país por seu antecessor, Rafael Correa.
Moreno culpou as “forças das trevas ligadas ao crime político organizado e dirigido por Correa e Maduro, em cumplicidade com gangues e cidadãos estrangeiros”. Essa versão era um pouco mais provável do que a dos outros líderes: o “pescador” que estava mais determinado a tirar proveito do “rio agitado” dos protestos era o ex-presidente Rafael Correa.
Lenín Moreno chegou ao governo com a benção de Correa em 2017. Depois de se reeleger e governar por dois mandatos, com Moreno como vice-presidente no primeiro, Correa o considerou tão leal que o selecionou como seu golfinho e o herdeiro de sua “revolução cidadã” para que mantivesse “a cadeira” e depois se reeleger por um terceiro período. Esse era o plano dele.
Mas Moreno se distanciou de seu mentor, imediatamente assim que começou a governar. Correa o chamou de traidor e foi para a Bélgica. Moreno tocou em um dos arquitetos da mega-corrupção ocorrida durante o correato, seu vice-presidente Jorge Glas, hoje preso, e há um mandado de prisão contra Correa, que mora na Bélgica, terra natal de sua esposa.
A dez mil quilômetros de distância dos eventos, os tuítes enfurecidos de Correa mostraram que ele apostava forte na crise equatoriana. Vendo a repressão desenfreada que Moreno decidiu ordenar, chegou a propor como uma saída da crise a realização de eleições antecipadas, nas quais ele seria “candidato vencedor”. Foi então que Moreno aludiu que Correa estava liderando um golpe de estado com o apoio de Maduro, sem sequer aceitar a impopularidade e dureza da medida por ordens do FMI que ele impusera.
A variável singular na crise equatoriana foi estabelecida pelos povos indígenas. Como comunidades organizadas, muitas delas empobrecidas, humilhadas e ridicularizadas por dez anos por Correa e não respeitadas por Moreno – que lhes prometeu estancar a mineração, mas encheu seus territórios de concessões – decidiram participar, fazer ouvir sua voz, demonstrar seu poder.
A CONAIE (Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador) representa as 14 nacionalidades indígenas do país e um quinto de toda a população equatoriana. Seus líderes decidiram unir-se àqueles que em todo o país protestaram contra a medida imposta por Moreno e instaram suas comunidades a marcharem sobre Quito para exigir que o presidente revogasse o decreto 883, que estabeleceu o aumento no preço dos combustíveis.
Desde os tempos coloniais, a “indiada” que invadia a cidade era o fantasma dos criollos. Desta vez, o pesadelo tomou conta de muitas pessoas de Quito e o anúncio do CONAIE despertou um racismo que está sempre acordado e nunca dorme.
Milhares de mulheres e homens de todas as nacionalidades indígenas chegaram em caminhões e à pé a Quito com a reivindicação. Lá eles se misturaram com indignados de todas as cores e ficaram em Quito até Moreno, com medo, levar o governo a Guayaquil, para revogar seu decreto. Em seus comunicados, os indígenas se separaram dos grupos que agiram com violência nos protestos e afastaram-se claramente das pretensões de Correa.
“Não nos escutou em um ano”, disseram os líderes indígenas a Moreno, quanto estiveram frente a frente na mesa de negociação, na qual participou a ONU e membros da Igreja Católica.
Teve que escutá-los. Foram os indígenas, que assumiram a representação de “todos os descontentes”, aqueles que forçaram Moreno a voltar a Quito, os que o obrigaram a se sentar a negociar. E os que conseguiram que revogasse o decreto 883. Agora aspiram acordar um novo modelo econômico para enfrentar a crise que Correa deixou de herança ao país.
No Equador, a ancestral raiz indígena mostrou seu vigor. Na crise nicaraguense não deve se esquecer que foi a “raiz campesina” a qual desde 2013, cinco anos antes da explosão de abril de 2018, se alçou contra Ortega, em defesa de suas terras e da soberania nacional. Foram os camponeses organizados de todo o sudeste da Nicarágua, protestando em uma centena de marchas massivas em seus territórios contra o oneroso projeto do canal interoceânico, os quais anunciavam, sem saberem ainda, a rebelião de abril.
Pela singularidade da crise equatoriana marcada pela decisiva participação do movimento indígena, ampliamos detalhes em outro texto desse mesmo número.
"O que está acontecendo no Peru, Chile, Equador, Argentina, Honduras é apenas uma brisa, o que está por chegar agora é um furacão bolivariano", falou Diosdado Cabello, o número dois de Nicolás Maduro, durante um evento do Partido Socialista Unido de Venezuela (PSUV) no centro de Caracas. A crise havia acabado de explodir no Chile.
Três dias depois, Maduro declarou com um tom calculado de Sibylline: "Posso dizer ao Foro de São Paulo, da Venezuela: estamos cumprindo o plano, está em pleno desenvolvimento, vitorioso… Todos os objetivos que estabelecemos para o Fórum estão sendo cumpridos por por um lado ... não posso dizer mais nada, você me entende".
O Foro de São Paulo foi fundado pelo PT brasileiro em 1989, após a queda do Muro de Berlim, para reunir partidos e movimentos de esquerda, unir forças e repensar questões sobre a direção política da região no final do confronto Leste-Oeste. . Ao longo dos anos, o Foro perdeu toda a bússola crítica e foi cada vez mais dominado pelas visões mais abafadas da esquerda continental.
O governo de Cuba, com uma tradição de agir arduamente, mas sem falar muito, negou qualquer participação no que estava acontecendo no Chile e em outros países.
As informações tendenciosas com as quais a rede Rússia Today (RT) e Telesur de Venezuela cobrem e analisam conflitos latino-americanos buscam consolidar que a luta é entre esquerda e direita, entre o povo e o império. Eles nunca relataram a repressão selvagem do regime de Ortega, nem reconheceram o sentido libertador das multidões que se rebelaram na Nicarágua desde abril de 2018.
Se os mandatários afetados pelos protestos massivos atribuíram a conspirações o descontentamento dos seus povos, alguns políticos e analistas “de direita”, culpavam tudo, ou quase tudo, o que ocorria, e até o que ocorreu, a uma conspiração programada, e até financiada, por forças que combinam a experiência conspiratória do governo cubano e os recursos da Venezuela.
Essa visão simplista despoja de razões e de capacidades aqueles que se rebelam e magnifica os poderes e os recursos dos regimes desses dois países – que tem suas próprias crises.
Não são todos os anexos à “direita” os que caíram nessa simplificação. Alguns entenderam as razões e as raízes desses levantes massivos e se dão conta de que é hora de uma reflexão mais séria.
Vendo os distintos sinais ideológicos dos vários governos cercados por protestos, na Nicarágua, o bispo de Matagalpa, Rolando Álvarez, resumiu certeiramente o que acontece: “Os povos se cansaram do capitalismo selvagem e do marxismo antiquado”.
“Não somos de esquerda, nem de direita, somos a Nicarágua que está em fúria”, diziam algumas camisetas durante o abril rebelde de 2018. E isso era: uma irritação generalizada, inclassificável, impossível de perfurar um dos polos ideológicos. Muita dessa fúria sem apontamentos ideológicos é a que saiu às ruas no Equador e que seguirá saindo em Honduras, Chile, Bolívia... também na Venezuela.
Desde abril de 2018 a crise da Venezuela correu em paralelo à nossa, já que a relação entre o chavismo e o orteguismo foi muito estreita desde 2007 e explica muito do que pode fazer e desfazer Ortega em Nicarágua.
A crise da Venezuela está sendo a mais prolongada. Vem se desenvolvendo e agudizando em um processo de anos. Se exacerba com a morte de Chávez, o colapso do preço do petróleo, a vitória de Maduro em 2013 com eleições marcadas por sérias irregularidades, a acelerada crise econômica derivando em uma gravíssima crise humanitária com o êxodo de mais de 4 milhões de pessoas, algo nunca visto no continente... o clímax ocorreu em 2017 ao se impor Maduro na presidência em eleições fraudulentas e não reconhecidas internacionalmente.
A partir de então, a obsessão de Maduro e de seu círculo em se impregnar no poder se parece muito com a de Ortega. E ao longo do processo da crise, a violação de direitos humanos foi também tão notável ali como aqui. A leitura do relatório Bachelet estremece.
As semelhanças são muitas. Como Ortega na Nicarágua, Maduro diz defender uma “revolução socialista” e lutar contra “o imperialismo”. Ortega calcula seu imediato futuro olhando-se no espelho de Venezuela e Maduro aconselha o seu colega da Nicarágua, animando-o a aguentar pressões e sanções, com o ânimo que recebem ambos do governo cubano.
Durante meses e até hoje, a crise da Venezuela, localizada sobre a maior reserva petroleira do planeta, tiraram a atenção midiática e diplomática à da Nicarágua, que atesoura a maior reserva de água da América Central. Com o de Cuba, ambos regimes ficaram mais irmanados quando foram etiquetados por John Bolton, funcionário estadunidense já renunciado, como a “troika da tirania”.
Enquanto a crise venezuelana e a nicaraguense não se resolvem... em que terminarão essas revoltas sociais, classificadas em Caracas como “brisas” bolivarianas?
No Equador, os indígenas continuam organizados e não abandonam o papel de interlocutores que ganharam, enfrentando o racismo. No plano econômico que propõem pedem justiça social: um sistema de impostos no qual paga mais quem ganha mais. E justiça com a Mãe-Terra: a anulação das concessões para mineração em seus territórios.
No Chile as multidões nas ruas pedem uma mudança no modelo econômico, para que haja equidade e dignidade. Pedem uma nova Constituição, porque a que rege o país ainda é a da ditadura. Um manifestante pede “empatia” e o explica muito bem: “Porque um governo com empatia vai governar para o povo e não para eles mesmos”. Estão contra a elite política e contra e elite econômica e por isso pedem a renúncia de Piñera.
Na Bolívia, os que protestam pedem um segundo turno eleitoral com observação internacional, que demonstra que Evo Morales não tem o apoio da maioria do povo boliviano e que não ganhou as eleições.
A crise na Bolívia tem muitas semelhanças com as que causaram processos eleitorais fraudulentos na Nicarágua há alguns anos atrás. Atualmente, o que está acontecendo na Bolívia é de particular importância devido ao que poderia influenciar a situação pré-eleitoral da Nicarágua e a presença e participação da OEA na crise, como se espera que participe aqui.
Evo Morales chegou em 2019 à sua quarta reeleição, ignorando os resultados do referendo de 2016, no qual ele próprio se submeteu à consulta popular para poder fazê-lo. Com um resultado ajustado (51,30% vs. 48,70%), Morales evitou a recusa ao declarar o mais alto tribunal que proibir a reeleição violava seus direitos humanos, o mesmo argumento falacioso usado por Ortega anos antes.
O NÃO no referendo foi sua primeira derrota nas urnas em dez anos. Ele o alertou para as divergências que estavam sendo preparadas na sociedade, apesar da revolução cultural que ainda representa um índio aymara no governo de um país com 80% da população indígena.
Em 2016, Morales, promotor da maior mudança social e econômica experimentada pela Bolívia ao longo de sua história, já estava sofrendo uma erosão evidente devido à corrupção de seu governo e por um culto superlativo de sua personalidade, promovido por ele mesmo e incentivado por seu vice-presidente Álvaro García Linera (“ele disse que era Deus e Evo acreditou nisso”, dizem as pessoas).
Morales estava desgastado também por não ter preparado a sucessão em seu partido Movimento ao Socialismo. "Presidente, o que a votação boliviana disse no referendo é que não há pessoas essenciais, existem apenas causas essenciais", foi a mensagem do ex-presidente Carlos Mesa naquela ocasião.
Com o temor de se enfrentar resultados tão ajustados como os do referendo de 2016, Morales se preparou muito bem. No dia da jornada eleitora, quando a contagem rápida de mais de 80% dos votos já anunciava uma escassa diferença que havia entre Mesa e Morales, e que conduziam a um segundo turno, o sistema caiu durante 20 horas e quando voltou a funcionar tudo havia mudado e a diferença entre ambos já era de dez pontos, o que evitava o segundo turno.
Essa manobra fez a crise explodir na Bolívia, as ruas se encheram de protestos contra Evo e no país se estendeu uma inédita polarização.
A fraude de Bolívia em 2019 se parece com a organizada por Ortega nas eleições municipais de 2008 alterando atas para ficar com uma maioria de prefeituras. Também recorda ao que voltou a organizar nas presidenciais de 2011, ocultando informação quando se previam resultados apertados entre ele e Fabio Gadea – seu objetivo nesse ano era ficar com a maioria parlamentar.
Já desde seu regresso ao governo, em 2006, Ortega fraudou para evitar um segundo turno, ordenando que não fossem dadas informações sobre 8% dos votos. Finalmente, para se livrar desse fantasma que era enfrentar um segundo turno, no qual nunca ganharia, o eliminou na reforma constitucional de 2014.
Por mais semelhanças que haja entre a fraude de Morales e as numerosas fraudes de Ortega, os modelos econômicos em que ambos mandatários edificaram suas lideranças são muito distintos. As bases em que Evo construiu seu poder foram sólidas, nada parecidas com as quais se assentou Ortega em seu governo.
Evo nacionalizou o gás e o petróleo e não teve que mendigar o apoio econômico de Chávez, como Ortega. Evo conseguiu durante uma década construir bases endógenas para programas importantes de inclusão social, o que Ortega nunca conseguiu. O mal-estar nicaraguense inicia precisamente com o declínio da cooperação venezuelana.
Durante anos, Evo Morales conseguiu uma solidez econômica que lhe permitiu negocia com as elites de Santa Cruz, enquanto que Ortega aplicou a fórmula de Somoza com o grande capital nicaraguense: vocês façam dinheiro, que eu farei política... Outra fortaleza de Morales, que nunca teve Ortega, é a das poderosas raízes indígenas que o levaram ao poder e que o apoiaram massivamente... até agora.
Ainda que mais forte seu governo que o de Ortega, Morales temeu, como Ortega, o segundo turno, um risco que não quis correr, tão seguro estava de que não ganharia.
A tenção internacional à crise boliviana foi imediata. As fraudes de Ortega não tiveram em nenhum momento atenção midiática internacional.
A OEA, é claro, foi forçada a agir na Bolívia. Desde o início, a missão de observação da OEA indicou que nas eleições os princípios de "legalidade, transparência, equidade, independência e imparcialidade" haviam sido "violados por diferentes causas em todo o processo eleitoral". Referiram-se especialmente à falta de confiança na autoridade eleitoral e à falta de credibilidade na transmissão de dados. O mesmo que caracteriza os processos na Nicarágua há uma década...
Enquanto que a oposição reivindicava que o conflito se resolvesse com um segundo turno, a OEA decidiu finalmente por uma custosa auditoria que será realizada por uma equipe de especialistas durante duas semanas para concluir os resultados que serão “vinculantes”. A oposição não a aceita porque não foi consultada e com justiça, reivindica que participem auditores nacionais, melhores conhecedores das realidades que serão examinadas.
Com tantas atas e votos faltando, queimados, adulterados e depois de tanto tempo alterando "a cena do crime", é muito provável que, mais do que um diagnóstico, a auditoria nada mais seja do que uma autópsia e Morales permaneça no governo até 2024.
O ex-presidente da Bolívia, Jorge Quiroga assume. E ele teme o futuro: "Na Nicarágua, aprendemos", disse ele, "que quem viola a Constituição para ficar, depois mata as ruas de Manágua para se perpetuar".
O político liberal nicaragüense Eliseo Núñez vê Morales com uma chance de sobreviver a essa crise: "Ele não tem, como Ortega, um histórico de fraude e não perpetrou um massacre". Também se refere ao fato de que na Bolívia a institucionalidade não é tão destruída quanto na Nicarágua e o Exército boliviano é menos cooptado por Morales do que o da Nicarágua por Ortega.
Os olhos do mundo estão na Bolívia, pois não estavam nas sucessivas fraudes de Ortega. Agora, são os olhos da oposição nicaraguense que examinam atentamente o que acontece na Bolívia e qual será a ação da OEA para confirmar ou não sua falta de “garra” e projetar uma ou outra atitude da organização regional no que isso poderia acontecer na Nicarágua em um próximo concurso eleitoral.
A complexidade das próximas eleições na Nicarágua, adiantadas ou não, seja em 2021 ou mesmo nessa época, é descrita nas páginas subsequentes pelo cientista político José Antonio Peraza.
Terminamos esse texto enquanto no Equador o levante cidadão e dos indígenas, seguido de uma pronta negociação abriram uma transição com oportunidades de mudanças, no Chile a indignação continua nas ruas e na Bolívia está por se ver como a OEA se sairá nesse desafio.
Enquanto, aqui na Nicarágua continua uma repressão que não cessa: se profanam as tumbas dos jovens assassinados, se persegue suas mães, se impede qualquer expressão de protesto por menor que seja, se segue torturando nos presídios e a ditadura não fala de negociar nada porque os “golpistas” já fracassaram e tudo voltou à “normalidade”...
Nunca devem se comparar as dores, porém a tragédia da Nicarágua é desproporcional para o pequeno e empobrecido país que somos. Joel Hernández, relator para os direitos das pessoas privadas de liberdade da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, já disse que em dezembro de 2018 o regime da Nicarágua expulsou a CIDH do país. “Nossa região não havia nisto em muito tempo uma situação similar à da Nicarágua: que em tão pouco tempo tenha ocorrido tal número de violações aos direitos humanos do Estado contra a população”.
Meses depois, quando já não se matava nas ruas, mas sim que se “julgava” nos tribunais os presos políticos, que lotavam as prisões, disse: “Não tem precedentes na história recente da América Latina ver um universo tão grande de pessoas submetidas à prisão e a processos penais com tal cúmulo de violações ao devido processo”.
E ultimamente, diante da persistente negação dos responsáveis de tudo isso, se lamentou: “O silêncio do governo da Nicarágua diante de repetidas solicitações de solução é desolador. Na Nicarágua se vive um estado de exceção e um estado total de fechamento a todo tipo de solução. Todas as janelas se fecharam”.
A voz da Igreja Católica segue se levantando para apontar as chagas da tragédia nacional. Em 4 de novembro, a Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de Manágua, publicou uma mensagem que busca levar “consolo e força aos nossos irmãos na difícil situação que continua vivendo nosso país, submetido à violência, injustiças e roubo de seus bens”.
A mensagem diz que "a atual crise social, política e econômica que estamos enfrentando agravou a situação de uma sociedade empobrecida", onde parece que "o outro deixou de ter valor".
Refere-se à "alta taxa de desemprego, à falta de educação fundamental, à falta de um serviço básico de saúde" e à "aplicação de políticas econômicas e tributárias que visam fugir da crise atual e que não são uma resposta adequada à recessão econômica que estamos enfrentando”. Eles propõem "criar um ambiente de confiança, justiça e liberdade de expressão para conhecer as críticas construtivas de amplos setores da sociedade". Da mesma forma, alcance "a independência dos poderes do Estado para evitar a concentração de poder". E como nada disso existe hoje na Nicarágua, eles concluem que uma “nação não é construída assim, na base do medo e da pressão”.
A Nicarágua se vê hoje no espelho das crises que abalam outros países. Elas nos ensinam algo. Permanecemos paralisados em nossa própria crise por mais de um ano e meio, na véspera da publicação do relatório da Comissão, criado pela OEA para determinar em que ponto está o conflito político, social e econômico que se originou na rebelião de abril de 2018.
Como tudo segue igual – e, portanto, pior – à medida que o regime persiste em negar os direitos civis e políticos, de demonstração, de organização e de expressão. Como a repressão continua a cair à conta-gotas, mas não para por um único dia, porque o governo continua determinado a impedir qualquer manifestação pública de rejeição, resta apenas paciência e resistência.
Antes do poder ditatorial, a maioria social, que é azul e branca, aprendeu, não sem dor, que a luta cívica pela qual optou desde o primeiro momento – e esse é também o "selo" da rebelião de abril – exige paciência e resistência. Com seu silêncio, os governantes repetem "não vamos embora, ficamos", mas aqueles que os enfrentam nunca disseram "não podemos, estamos rachados".
A maioria continua a resistir como pode. E a liderança azul e branca continua trabalhando para a formação de uma coalizão unitária que deve recuperar as ruas e resolver três grandes desafios. Pressionando para ir às eleições em uma coalizão com um novo local de votação, um novo nome e novos símbolos e cores. O desafio de ganhar a Presidência e a maioria parlamentar nessas eleições para o FSLN. E um imenso desafio a médio prazo: permanecer juntos para governar por cinco anos, alcançando consenso sobre todas as reformas necessárias que tornam possível a democracia e a justiça. Que eles nos garantem que essa tragédia que não acabou não aconteça novamente.
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Nicarágua. A crise no espelho da crise latino-americana - Instituto Humanitas Unisinos - IHU