09 Novembro 2019
No dia 12 de julho de 2017, completaram-se cem anos do nascimento de Henry David Thoreau. Figura central do ensaísmo e da escrita americana, a ocasião do aniversário provocou notas e estudos, dentro de um campo já saturado. Após a Segunda Guerra Mundial, sua figura se inscreveu cada vez com maior força como influência central do movimento beat e do movimento hippie, com dois textos essenciais: Walden, livro que narra a sua vida em uma lagoa ou pequeno lago de Concord e um texto que acabou se chamando Desobediência Civil, no qual levantava a necessidade, por exemplo, de parar de pagar impostos, caso haja total desacordo com alguma medida do governo em exercício.
A reportagem é de Elvio E. Gandolfo, publicada por Clarín-Revista Ñ, 06-11-2019. A tradução é do Cepat.
No campo da cultura do século XIX, sua figura se uniu à de Ralph Waldo Emerson, que o apoiou e o guiou desde o início (apesar de nunca deixar de mostrar os lados mais ásperos de sua personalidade). No acúmulo de notas próximas ao segundo aniversário, destacou-se uma de Kathryn Schulz, publicada na revista The New Yorker. Polêmica até o estopim, começava descrevendo Thoreau contemplando um acidente marítimo brutal, o naufrágio do bergantim St. John, carregado de imigrantes que fugiam da fome na Irlanda, com destino a Boston. Empurrado pelo vento, colidiu com as rochas da costa. Muitos passageiros foram lançados sobre as margens, outros que viajavam no porão morreram afogados.
Diante deste espetáculo dantesco, disse a autora, a única coisa que ocorreu a Thoreau, então com 32 anos, quando se desviou de uma viagem entre Concord e Cape Cod para ver os restos, foi comentar que claramente preferia a paisagem que a enorme quantidade de cadáveres que continuavam procurando entre os restos. “No conjunto – escreveu -, “não foi uma cena tão impressionante como poderia ter esperado”. Essa grande cena trágica e sua insensibilidade é o marco que se coloca sobre a leitura de Thoreau, especialmente de Walden, para, por assim dizer, desconstruí-lo. Schulz não consegue entender como este livro permanece intacto como clássico, se, por exemplo, o primeiro capítulo tem mais de oitenta páginas e, em sua opinião, é quase ilegível.
A extensa nota se torna esmagadora. Sem dizer abertamente, tem muito de politicamente correto. A questão da provável insensibilidade também certamente a teria afastado de Tolstói, que certa vez lamentou ter chegado tarde a um incêndio, perdendo, assim, a extraordinária oportunidade de presenciar mortes por incêndio. De maneira impensada, Schulz acaba traçando uma imagem de si mesma, talvez mais nítida que o ataque a Thoreau. Por exemplo, não pode perdoá-lo por, em seu forte impulso de vida simples e longe de toda a civilização, rejeite o café junto com as bebidas. Na parte baixa da nota, pergunta-se: “Por que, dadas as suas invenções, incoerência e miopia, Thoreau tem sido tão apreciado?”. Lançada em sua crítica constante, deduz que é muito mais conhecido do que lido. De qualquer forma, resgata sua constante posição antiescravista, herdada de seus pais.
Naturalmente, a nota atraiu ganhou muito destaque e diferentes respostas. Em outra revista, The Atlantic, Jedediah Purdy escreveu uma resposta: “Em defesa de Thoreau”. Discute, por exemplo, as acusações de Schulz sobre a maneira como Thoreau contradiz seu suposto isolamento em Walden, indo para a casa de sua mãe, todas as vezes que se chateava, para levar a roupa para ser lavada ou ver amigos. Sem mencionar que esse suposto paraíso de isolamento era bastante frequentado, pois ficava a poucos minutos de caminhada da civilização, tão insultada por ele. Algo semelhante acontece com alguns leitores de Jack Kerouac, quando descobrem a forte dependência que tinha de sua própria mãe. Por certo, Thoreau não ocultou esses dados, ainda que destacá-los em excesso conduz à necessidade de encontrar defeitos, se não forem tratados com nitidez e profundidade.
Não é necessário ser um profeta para calcular que seu livro mestre (tão poderoso em sua força de impacto, como, por exemplo, O estrangeiro de Camus) continuará sendo reimpresso, muitas vezes, mesmo em espanhol. Nesse idioma, entre outros, há um prólogo útil e detalhado da editora Cátedra.
Agora, outro rebelde relativo, o filósofo Michel Onfray, muito irritado com os que chama de “professores de filosofia, em vez de filósofos” (Derrida, Lacan, Deleuze e um longo etc.), publicou, no ano mencionado (2017), um pequeno volume: Thoreau, el salvaje (Godot). Apaixonado, o tradutor Edgardo Scott se pergunta na contracapa: “Uma breve biografia?”. E responde: “Um manual de sobrevivência para um mundo estúpido”.
É provável que a nota de Schulz tenha impactado totalmente pré-convencidos. Ao contrário, o livro muito ágil de Onfray, provavelmente, estimule muitos de seus leitores a ler Thoreau. Faz isto com um estilo direto e criativo de imagens e metáforas contundentes. Começa pela pergunta: o que é um grande homem?, e enquanto cita compiladores de respostas como Plutarco (A Vida dos Homens Ilustres), Emerson (Homens Representativos) ou Carlyle (um favorito de Borges, e de Emerson, com quem se corresponderá até a morte), vai retratando uma imagem complexa e atraente de Thoreau, sem se esquivar dos espinhos de seu caráter. Também menciona as contradições de sua tendência à crítica talhante da civilização, começando com o amontoamento de pessoas, e seguindo com sucessivos passos rejeitáveis, que incluem a música e a diversão.
Protagonista constante de palestras e aparições televisivas (por conta de sua poderosa influência), Onfray também escolhe anedotas citáveis. Em uma delas, comenta como ficou responsável pela família e a casa de Emerson quando este viajou para a Europa. Disse, por exemplo: “Cuida da casa, mas também da Sra. Emerson e de seu filho. Ele não teria visto com maus olhos, se seu marido não tivesse passagem de retorno”.
A quantidade de nomes citados como fontes das leituras de Thoreau é enorme, mas bem acomodada no marco do texto. Destaca, além disso, o modo como a religião e a filosofia hindu o impactavam, bem como a Emerson e seu grupo de amigos e conhecidos transcendentalistas. Mais detalhada ainda é a lista de suas obras, que inclui milhares de páginas de um diário, e quase três mil páginas de um estudo da cultura indígena, contraposta à cultura branca. O trabalho não foi concluído em razão de sua morte precoce por tuberculose, bem antes dos cinquenta anos.
Com bom critério, Walden acaba sendo uma obra a mais dentro de uma constelação. Analisa com o mesmo cuidado a conferência que foi chamada antes de A relação do indivíduo com o governo e Resistência ao governo civil, até ser batizada como Desobediência civil. Faz o mesmo com sua etapa final, perto da morte, onde defendia diretamente a violência em sua Apologia do capitão John Brown.
Para encerrar, Onfray não foge do sentimento, nem dos lugares comuns: “Thoreau sabe que irá morrer. Está tranquilo, calmo, em paz. Assume as coisas com naturalidade. Está preparado. Um amigo se preocupa com o estado de seu espírito antes de abandonar este mundo por outro. Thoreau lhe responde: “Um mundo de cada vez”. Morre no dia seguinte, em Concord, às 9 horas, em 6 de maio de 1862. A manhã prometia toda a sua beleza. As macieiras estavam florescendo.
Thoreau, el salvaje, Michel Onfray. Tradução para o espanhol de Edgardo Scott. Editora: Godot, 92 pp.
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Thoreau e Onfray: trilhas de dois desobedientes - Instituto Humanitas Unisinos - IHU