03 Março 2015
O clichê é que os norte-americanos têm memória curta, mas, desde o início de fevereiro, muitos de nós têm discutido sobre as guerras religiosas medievais e se elas têm alguma lição a nos ensinar sobre a violência de hoje no Oriente Médio.
A reportagem é de Jamelle Bouie, publicada pelo sítio Slate, 10-02-2015. A tradução é de Claudia Sbardelotto.
Para aqueles que ainda não sabem, esse debate começou depois dos comentários do presidente Obama no National Prayer Breakfast [um café da manhã anual de oração] onde - depois de condenar o grupo radical islâmico ISIS como um "culto da morte" - ele ofereceu um pensamento moderador. "Para que não sejamos arrogantes e pensemos que isso é único de algum outro lugar, vamos lembrar que, durante as Cruzadas e a Inquisição, pessoas cometeram atos terríveis em nome de Cristo. Em nosso país, a escravidão e Jim Crow, muitas vezes, foram justificados em nome de Cristo ... Portanto, isso não é exclusivo de um grupo ou de uma religião. Há uma tendência em nós, uma tendência ao pecado que pode perverter e distorcer a nossa fé".
É um ponto simples - "nenhuma fé tem um monopólio especial sobre arrogância religiosa" - isso tornou-se um ponto de inflamação partidária, enquanto conservadores criticam o presidente por "equiparar" as cruzadas cristãs a radicais islâmicos, acusam-no de crenças anti-cristãs, e se perguntam por que ele gostaria de mencionar um conflito de séculos atrás, mesmo que tenha algumas analogias aos dias atuais.
O que perdemos na discussão sobre as cruzadas, no entanto, é a menção de Obama sobre a escravidão e Jim Crow. Na revista Atlantic, Ta-Nehisi Coates coloca seu foco em justificativas religiosas para a escravidão nos EUA, e vale a pena fazer o mesmo para o seu sucessor logo após a Guerra Civil Americana. E já que estamos pensando em termos de violência religiosa, nossos olhos devem voltar-se para o espetáculo mais brutal do reinado de Jim Crow, o linchamento.
Na maior parte do século entre as duas Reconstruções, a maioria branca do sul dos EUA tolerava e sancionava a violência terrorista contra os negros. Em um novo relatório da Equal Justice Initiative no Alabama documenta cerca de 4.000 linchamentos de negros nos 12 estados do sul -Alabama, Arkansas, Flórida, Geórgia, Kentucky, Louisiana, Mississippi, Carolina do Norte, Carolina do Sul, Tennessee, Texas e Virgínia - entre 1877 e 1950, que o grupo observa é "pelo menos 700 linchamentos a mais nestes estados do que anteriormente relatado".
Para as vítimas, a máfia de linchamento conhecida pelo apelido "Judge Lynch" - nome dado pela jornalista Ida B. Wells pela semelhança com os julgamentos irregulares de Charles Lynch (1736-1796) - era caprichosa, impiedosa e bárbara. C. J. Miller, falsamente acusado de matar duas irmãs adolescentes brancas no Kentucky, foi "arrastado pelas ruas até uma plataforma rústica feita de barris", escreve o historiador Philip Dray em At the Hands of Persons Unknown: The Lynching of Black America [Nas mãos de pessoas desconhecidas: o Linchando da América preta]. Seus agressores o enforcaram em um poste telefônico, e ao mesmo tempo, "a primeira queda quebrou o pescoço (...) o corpo foi repetidamente levantado e abaixado, enquanto a multidão atirava com armas de pequeno calibre". Por duas horas, o seu cadáver ficou pendurado na rua, durante as quais ele foi fotografado e mutilado por espectadores. Finalmente, ele foi cortado e queimado.
Mais selvagem foi o linchamento de Mary Turner e de seu filho que estava em seu ventre, morta por protestar contra o assassinato de seu marido. "Diante de uma multidão que incluía mulheres e crianças", escreve Dray, "Mary foi despida, pendurada de cabeça para baixo pelos tornozelos, embebida com gasolina e assada até a morte. Em meio a esse tormento, um homem branco abriu a barriga inchada com uma faca de caça, e seu bebê caiu no chão, deu um grito, e foi pisoteado até a morte".
Estes linchamentos não eram apenas punições de vigilantes ou, como o grupo Equal Justice Iniative observa, "atos comemorativos de controle e dominação racial". Eles eram rituais. E, especificamente, eles eram rituais de evangélicos sulinos com os seus dogmas de pureza, literalismo e supremacia branca. "O cristianismo era a lente primária através da qual a maioria dos sulistas buscavam conceitos e tentavam dar sentido ao sofrimento e à morte de qualquer tipo", escreve a historiadora Amy Louise Wood em Lynching and Spectacle: Witnessing Racial Violence in America, 1890–1940 [Linchamento e Espetáculo: Testemunhando a violência racial na América, 1890-1940]. "Seria inconcebível que eles pudessem infligir dor e tormento nos corpos de homens negros sem imaginar essa violência como um ato religioso, carregado de simbolismo e significado cristão".
O Deus do Sul branco exigia pureza - encarnada pela mulher branca. Os sulistas brancos construíram a barreira com a segregação. Mas quando era violada, o linchamento era a maneira de consertar a cerca e afirmar a sua liberdade a partir da contaminação moral, representada por negros e mulheres negras em particular. (Embora, não se limitando a eles. Leo Frank, linchado em 1915, era judeu.) A percebida violação era frequentemente sexual, definida pelo mito do estuprador negro, um "demônio" e "besta" que saía para destruir a pureza cristã da feminilidade branca. Em sua narrativa do linchamento de Henry Smith - morto por causa de um alegado estupro e assassinato de um menino de 3 anos de idade, Myrtle Vance - o escritor P.L. James contou como "a energia de uma cidade inteira e do país voltou-se para a apreensão do demônio que havia devastado um lar e poluído uma vida inocente".
James não estava sozinho. Muitos outros defensores dos linchamentos entendiam seus atos como um dever cristão, consagrado como a vontade de Deus contra a transgressão racial. "Depois do linchamento de Smith", Wood nota, "outro defensor escreveu: "Não foi nada mais do que a vingança de um Deus ultrajado, dispensado a ele, através da instrumentalidade das pessoas que causaram a cremação". Como o professor emérito Donald G. Mathews, da Universidade da Carolina do Norte, escreve no Journal of Southern Religion, "A religião permeava o linchamento comunal porque o ato ocorria no contexto de uma ordem sagrada projetada para sustentar a santidade". A "ordem sagrada" era a supremacia branca e a "santidade" era a virtude branca.
Gostaria de salientar que os negros da época compreendiam o linchamento como enraizado na prática cristã dos sulistas brancos. "É extremamente duvidoso se o linchamento poderia existir sob qualquer outra religião que não fosse o cristianismo", escreveu o líder do NAACP, Walter White, em 1929, "Nenhuma pessoa que esteja familiarizada com os pregadores que batiam com a Bíblia, acrobáticos e fanáticos com o fogo do inferno, no sul do país, e que tenha visto as orgias de emoção criadas por eles, pode duvidar por um instante que as paixões perigosas são liberadas, contribuindo para a instabilidade emocional e que desempenham um papel no linchamento. E embora alguns líderes religiosos condenaram a prática, por ser contrária ao Evangelho de Cristo - "Religião e linchamento; Cristianismo e esmagamento, ardor e bênção, selvageria e sanidade nacional não podem andar juntos neste país", declarava um editorial de 1904 -, o consentimento esmagador dos brancos do Sul confirmava a opinião de White.
O único cristianismo sulino unido em oposição ao linchamento foi o dos negros norte-americanos, que tentaram recontextualizar o ataque como uma espécie de crucificação e as suas vítimas como mártires, mudando o roteiro e fazendo dos negros os verdadeiros herdeiros da salvação e da redenção cristãs. É este último ponto que deve ser destacado para mostrar que nada disso era intrínseco ao cristianismo: era uma questão de poder e da necessidade dos poderosos de santificar suas ações.
Ainda assim, não podemos negar que o linchamento - com toda a sua brutalidade grotesca - foi um ato de significado religioso justificada pelo cristianismo da época. Ele também foi político: um ato de terror e de controle social de cidadãos particulares, funcionários públicos e legisladores poderosos. O senador Ben Tillman da Carolina do Sul defendeu o linchamento no Senado dos EUA, e o presidente Woodrow Wilson aplaudiu um filme que comemorava o juiz Lynch e seus discípulos.
Isso tudo é para dizer que o presidente Obama estava certo. Os ambientes vastamente diferentes nos EUA antes da guerra civil e o moderno Oriente Médio desmentem as semelhanças substanciais entre a relativamente recente violência religiosa dos nossos antepassados supremacistas brancos e os nossos inimigos contemporâneos. E a atual divisão entre muçulmanos moderados e seus oponentes fanáticos é análoga à divisão do passado entre o cristianismo do norte e seu homólogo sul.
Isso não é relativismo, mas uma visão clara da nossa vulnerabilidade comum, da verdade de que as sementes da violência e da autocracia podem brotar em qualquer lugar, e do fato de que nossa posição atual na superioridade moral não é prova de intrínseca superioridade.
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Linchamento e tortura de negros no sul dos EUA: não apenas racismo, mas também ritual religioso - Instituto Humanitas Unisinos - IHU