15 Julho 2017
"'Quem somos nós? Onde estamos?' Isso não soa como um homem com uma visão sentimental e simplista do eu. Sujeitos e objetos convergem enquanto Thoreau, possuído por 'esse Titã', sente-se absorvido no e pelo mistério material do universo. Os pronomes de primeira pessoa pluralizam-se; não é a absorção de um homem apenas. Ao mesmo tempo, Thoreau revela uma alteridade pelo menos sentida, uma distância entre sujeitos e objetos, que persiste mesmo em sua convergência".
O comentário é de Ryan Harper, professor visitante do Programa de Estudos Religiosos da Universidade de Nova York e autor de The Gaithers and Southern Gospel: Homecoming the Twenty-First Century, em artigo publicado por América, 12-07-2017. A tradução é de Luísa Flores Somavilla.
Já visitei Walden em muitas estações. Minha última visita ocorreu em um dia intenso de outono, quando encontrei alguns habitantes locais nadando na lagoa. Ao mergulhar o dedo na água, fiquei surpreso com a forma como os kettles mantêm o calor, mesmo em uma data tão tarde no ano. Nem todos os corpos conseguem isso.
Assim como muitos estadunidenses, a primeira que ouvi falar de Thoreau foi no ensino médio. O meu livro de estudos da linguagem trazia trechos das passagens famosas de Walden, ou A Vida nos Bosques: linhas sobre simplificar, ser diferente, caminhar na direção de seus sonhos. Ao mesmo tempo, eu estava mergulhando em todos os tipos de literatura do eu adolescente, este gênero de que tanto gostam os rapazes brancos estadunidenses que se consideram excepcionais, independentes e dignos de independência. Entre os textos canônicos estavam o poema de William Ernest Henley, "Invictus", os romances de Ayn Rand e alguns ensaios de Ralph Waldo Emerson.
Esta literatura pode encorajar jovens indecisos, porém promissores, a seguir sua opinião pessoal. Mas também pode atrapalhar o crescimento. Os volumes mais frágeis do gênero raramente discutem o processo de autocultivo (o que é preciso para nutrir a autoestima para se confiar) ou como equilibrar o individualismo e a piedade (como relacionar corretamente as opiniões pessoais de alguém e as raízes do seu ser). Considerando-a por sua utilização em livros didáticos, cartazes motivacionais e memes de internet, a obra de Thoreau pareceria frágil - e por isso prejudicial.
Os Estados Unidos têm uma grande parcela de pessoas que autoproclamam em alto e bom som acreditarem nelas mesmas - individualistas de carreira que falam de forma apenas trivial sobre o individualismo. De sua boca, a retórica da não-conformidade e da autossuficiência autoriza uma repugnante falta de atenção à história, ao meio ambiente e até mesmo a quem eles afirmam confiar. Se essas pessoas lessem, não é de se surpreender que a literatura do eu adolescente poderia funcionar para eles como uma literatura devocional bem no que se chama idade adulta. Se as palavras de Thoreau apenas decorarem as salas de jogos de crianças adultas, já passou da hora de enterrá-las.
Mas trabalhar com Thoreau exige grande dedicação - não apenas com as citações separadas, nem apenas Walden. Ainda que Walden nos ofereça muito para discutir por ser um trabalho autônomo, é importante lembrar que Thoreau queria ter uma vida plenamente integrada. Cada parte fornecia informações e complementava as outras. Nem tudo o que aconteceu durante a residência de Thoreau na lagoa - o experimento de Walden - apareceu em Walden. Durante o experimento, por exemplo, Thoreau concluiu o livro A Week on the Concord and Merrimack Rivers, foi preso por se recusar a pagar imposto comunitário e fez uma de suas longas excursões a Maine. Nos sete anos entre a conclusão de o experimento de Walden e sua publicação, Thoreau visitou Cape Cod e trabalhou como professor. Além de tudo, ele manteve seu diário, que funcionava como um lugar para testar ideias não desenvolvidas, mas também continha algumas das mesmas visões extravagantes que se encontram em suas obras publicadas. Thoreau estava sempre experimentando sob a visão parcial de seus vizinhos. Onde seus experimentos começavam ou terminavam? O que estava e o que foi colocado em Walden?
Thoreau está fazendo 200 anos. Eu estou me aproximando dos 40. Não sei dizer quantos anos meu país tem ou se está amadurecendo. Estou pensando sobre Walden, ou A vida nos bosques, e sobre o experimento. Estou recomeçando constantemente - não tanto abandonando o excelente trabalho literário de Thoreau como pesquisando a topografia mais ampla de Walden, em busca de todos os caminhos cultiváveis. Lendo as obras de Thoreau em paralelo, revelam-se aspectos de seus métodos e aspirações que geralmente estão latentes em qualquer trabalho solitário. Analisando dessa forma, seu empreendimento não se reduz a um olhar juvenil egocêntrico. O experimento de Thoreau, no todo, é um registro de autoconfiança junto com piedade. O homem está preocupado com o trabalho exigido de e sobre si mesmo: um indivíduo que trabalha as - e a partir das - suas conexões com pessoas, lugares e processos. Não é exatamente um trabalho solitário.
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Se Thoreau simplesmente idolatrasse sua própria visão - na linguagem emersoniana, fosse um "egoísta médio" - os episódios de desorientação não seriam tão importantes para seus relatórios. Por exemplo, os ensaios de Cape Cod de Thoreau têm muitos erros de cálculo. Os naufrágios estão em toda parte. Thoreau e seu amigo Ellery Channing são confundidos com dois ladrões que estão vagando pela península e Thoreau constantemente precisa prestar contas de sua verdadeira identidade, nunca tendo certeza se dará certo. O topógrafo Thoreau tem dificuldade em calibrar distâncias nas margens do continente; o oceano, a areia e as luzes se refratam mutuamente de maneira imprevisível.
Por mais que Thoreau tenha confiança em si mesmo em Cape Cod, talvez seja até arrogante às vezes, é uma confiança do não-apego - o tipo que permite que sua visão seja ajustada e corrigida. Ele não perde nada por estar confuso e não hesita em recorrer a valores maiores que suas medidas. Considerando as últimas linhas do ensaio "Highland Light", quando Thoreau está prestes a ter uma noite de sono em uma casa abaixo de um farol:
As lâmpadas do farol a poucos metros de distância brilhavam em meu quarto e tornavam-se tão brilhantes como o dia, então eu fiquei sabendo de absolutamente todos os movimentos do Highland Light por toda aquela noite, e eu certamente não estava alterado. Ao contrário, meio acordado e meio adormecido, olhando para as luzes acima da minha cabeça através da janela, quantos olhos sem sono lá longe na corrente do Oceano - marinheiros de vários países, girando suas cordas pelos vários relógios da noite - se dirigiam ao meu sofá.
Thoreau não parece nem um pouco incomodado, mas sim grato por sua noite ter se tornado mais dia. O momento comum, modificado por truques de luz, mantém a promessa de revelação para aqueles que estão dispostos a recebê-la. O indivíduo que nos diz em Walden "manhã é quando estou acordado e há amanhecer em mim", parece muito disposto, a qualquer momento.
Mas não se trata somente do momento de um indivíduo. A revelação de Cape Cod de Thoreau envolve outras pessoas. Thoreau descreveu os deveres do guarda do farol nos parágrafos anteriores; sabemos que outro homem ilumina o quarto de Thoreau. A luz do guarda direciona-se a Thoreau e uma ampla faixa de humanidade no mar, a quem Thoreau não vê tanto como sente, meditando sobre as luzes lá em cima. Chamando a atenção para o seu dever de observar a noite, Thoreau vincula implicitamente os marinheiros aos "vigias" proféticos das escrituras hebraicas: Isaías, Jeremias e Ezequiel. O Thoreau de Walden certamente está tentando colocar em prática uma vocação profética: estar completamente acordado, "acordar seus vizinhos". Mas nesta noite em Cape Cod, são outros que estão sem sono. Os marinheiros ultrapassam e escapam de Thoreau, o suposto profeta que nos diz que, ultimamente, ele tem estado meio acordado.
Thoreau não cede completamente seu próprio chamado profético a esses observadores plenamente acordados. Ele permanece um tanto convencido. Mas Thoreau está trabalhando seu chamado à luz dos outros. Os vigias testemunham seu lugar de repouso, chamando-o para a tarefa.
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Os "egoístas médios" não são sensíveis a um poder que não podem tolerar, cuja presença é esmagadora. Os profetas hebreus são novamente didáticos: encontros diretos com o divino geram angústia, confusão e medo. Aqueles que vivenciam uma autoexaltação simples são provavelmente falsos profetas. No ensaio "Ktaadn" de The Maine Woods, Thoreau está subindo a grande montanha e fica novamente desorientado:
Fico surpreso perante meu corpo, essa matéria à qual estou ligado tornou-se tão estranha para mim. Não temo espíritos, fantasmas, dos quais eu sou um... mas temo os corpos, tremo ao pensar em encontrá-los. O que é esse Titã que me possui? Conversa de mistérios! - Pense em nossa vida na natureza, - diariamente apresentados à matéria, entrando em contato com ela - rochas, árvores, vento em nossas faces! A terra sólida! O mundo verdadeiro! O senso comum! Contato! Contato! Quem somos nós? Onde estamos?
Em Cape Cod, Thoreau está um tanto convencido: quem mais nas Escrituras encontrou poder em uma montanha cuja presença ele quase não suportava? Mas, ao contrário de seu colega Walt Whitman, que tende a satisfação moral e deleite pessoal quando está inspirado por uma criação imensurável, Thoreau parece inquieto. Herdeiro espiritual dos Quakers do Atlântico Médio, Whitman acredita na bondade de toda a criação, o que suaviza o sopro da aparente dissonância em tais momentos. Whitman frequentemente impressiona; raramente é mortificado. Os antepassados espirituais imediatos de Thoreau são puritanos da Nova Inglaterra; a criação pode ser originalmente boa, mas a dissonância é substancial. Subindo Katahdin, Thoreau experimenta cada substância, até mesmo seu próprio corpo, como um enorme enigma. Ele se aproxima do terror.
"Quem somos nós? Onde estamos?" Isso não soa como um homem com uma visão sentimental e simplista do eu. Sujeitos e objetos convergem enquanto Thoreau, possuído por "esse Titã", sente-se absorvido no e pelo mistério material do universo. Os pronomes de primeira pessoa pluralizam-se; não é a absorção de um homem apenas. Ao mesmo tempo, Thoreau revela uma alteridade pelo menos sentida, uma distância entre sujeitos e objetos, que persiste mesmo em sua convergência. Thoreau é capaz de sentir conexões espirituais com a natureza, mas aqui sua relação com o mundo enquanto carne - "a terra sólida! o mundo verdadeiro! "- mostra-se angustiante, quase intraduzível. A encarnação é um mistério. "Contato! Contato!" - talvez uma celebração, um lamento, um comando, um sinal de angústia ou alguma combinação inexplicável. De qualquer forma, a autoanálise Thoreauviana é um reconhecimento com a terra, com corpos que tocam.
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Dessa vez eu visitei Walden novamente. A vários metros de distância da réplica da cabana, o Thoreau de bronze está olhando para a mão esquerda, afastando-se da sua morada. O ato experimental final de Thoreau foi a partida. Sua hipótese em Walden era que ele conseguiria manter o calor de sua casa no lago mesmo depois de sair dela. Ele conseguia manter o calor por causa do que ele havia acendido e do que ele se disciplinou a absorver - na solidão, não isoladamente, a independência junto com a piedade. O mesmo homem nos diz, em Cape Cod: "quando sua lâmpada está pronta para fornecer luz, é quando é mais fácil recebê-la". Duzentos anos após o nascimento de Thoreau, percebo que Walden é mais do que uma simples vida nos bosques. Em 2017, ouço Thoreau nos convidando a um individualismo mais conectado em sua solitude, mais atento às suas fontes. Cabe a nós assumir o trabalho de deixar para trás as questões infantis.
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É hora de recuperar Thoreau dos memes motivacionais - Instituto Humanitas Unisinos - IHU